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5 VINTE ANOS DE INICIATIVAS DE FORMAÇÃO DE

5.1 O primeiro movimento: articulação regional

Como já discutimos nos capítulos 2 e 3, a sexualidade é um tema silenciado na formação acadêmico-profissional do/a professor/a. Porém, trata-se de uma temática bastante presente no cotidiano escolar e que interpela as professoras e explicita o desconhecimento de maneiras de abordagem do assunto. Ao constatarem a própria inabilidade para lidar com alguns temas da sexualidade, várias professoras buscaram conhecimento em livros e com colegas.

Esse primeiro movimento começou com a percepção da impotência e do despreparo da Professora Vanda diante de uma cena de violência sexual:

Então, essa menina chegou muito machucada... ela tinha saltado um muro alto na casa dela... e me disse: “Dona Vanda, eu sei que você não é minha professora, mas o professor Rodrigo53 só trabalha à tarde, e meu pai tentou me estuprar...” e, então, eu chamei a mãe, mas a mãe tinha câncer de seio e foi uma história difícil de lidar... descobri que ele não era pai; era o padrasto, mas como era um segredo de família a mãe nunca contou... mas, no final, teve que contar, porque ele continuou perseguindo a menina. Na época, eu não tinha como lidar com essa situação, eu não tinha meios... então, eu fui muito inocente, eu chamei esse padrasto na escola e o ameacei, porque ele estava seguindo a menina na rua... eu consegui tirar essa menina da casa dela e colocá-la na casa da avó. Ela ficou morando com a avó, só que no caminho para a escola ele continuou perseguindo e... o projeto de sexualidade nasceu daí, por causa dessa história, porque eu bobamente denunciei para a polícia, me entreguei de corpo e alma, e eu não sabia como

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Os nomes de pessoas citadas por nossos entrevistados foram alterados e são fictícios, já que essas pessoas não autorizaram sua identificação.

agir. Aí, eu procurei pessoas que trabalhavam com sexualidade, procurei socorro, porque eu não estava sabendo como agir. (Professora Vanda Pereira,

entrevista realizada no dia 01/11/2010).

Diante da percepção de que seriam necessárias estratégias mais eficientes para lidar com esse tipo de situação, a Professora Vanda procurou pessoas da rede particular de ensino que desenvolviam atividades sobre sexualidade e organizou um seminário de formação, convidando as docentes das outras escolas da Regional Barreiro. Em 1991, o seminário de formação foi realizado na Escola Isaura Santos e teve como desdobramento a criação do GOSB do Barreiro54, que depois se transformou no Núcleo de Educação Afetivo Sexual.

O NEAS, uma iniciativa de escolas para formação continuada de seus profissionais baseada em estudos coletivos e na reflexão compartilhada sobre a própria prática, funcionou por meio de encontros semanais coordenados ora por participantes do grupo, ora por especialistas convidados. Nessas reuniões, as participantes liam textos e debatiam situações vividas na prática com os alunos.

E a gente começou a reunir toda terça-feira, de 14 às 17 horas, no Isaura Santos, para estudar [...] temas da sexualidade, ainda sem uma orientação de como estudar, porque era tudo novo para mim e para todo mundo. Enfim, começamos a contratar alguns profissionais da área como o Ricardo, a Bianca para darem... nos orientar nessas reuniões de estudo... o que gerou um grande projeto. (Professora Vanda Pereira, entrevista realizada no dia

01/11/2010).

Então, era um lugar que a gente assentava, estudava e dividia experiências... eu sabia tudo que acontecia nas escolas do Barreiro, experiências inéditas com crianças de três anos... quatro anos de idade... a gente fazia nessa época... 92/93... aí, a gente começou a saber de outras experiências que já existiam aqui em Belo Horizonte, na Rede... então, tinha o da Lívia – que era o Colégio Belo Horizonte... a Lívia tinha um trabalho que, talvez, seja antes do nosso, que era muito ligado ao Ricardo também... o Colégio IMACO tinha uma menina lá que chama Flávia que tinha um trabalho muito legal... então, tinham alguns focos, já na Rede Municipal, de trabalho e que depois que a gente começou... lá no Barreiro... a descobrir que esses trabalhos já existiam. (Professora Eliza Queiroz, entrevista realizada no dia 25/11/2010).

Tínhamos reuniões semanais. Éramos 12 escolas do Barreiro e tinha gente da educação infantil, que antigamente era o jardim de infância, até o ensino médio, e era a mesmíssima coisa... o que se fazia... todos os encontros tinha uma oficina, em cada encontro um era responsável... tinha que fazer oficina para os outros... (Professora Eliza Queiroz, entrevista realizada no dia

25/11/2010).

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A primeira reunião desse Grupo aconteceu em 12 de junho de 1991. O registro dessa reunião consta no ANEXO A.

O trabalho do NEAS produziu vários desdobramentos inclusive nas condições de trabalho das educadoras:

Então, tivemos muitas conquistas... como todos nós tínhamos... assim... essa disponibilidade de nos encontrarmos e todos faziam o trabalho dentro das escolas... a Regional começou a reconhecer e, aí, nós começamos a ganhar hora... a gente ganhava seis horas-aula para participar dos encontros. Não sei se era por mês ou se era por semana, mas a gente ganhava um tanto de horas-aula. Foi acrescido ao nosso salário, mas foi o que? Foi uma conquista, quase dois anos ali, a gente ia na Câmara dos Vereadores, brigava pelas coisas, brigava pelo projeto, foi muito legal essa época.

(Professora Eliza Queiroz, entrevista realizada no dia 25/11/2010).

Outra conquista e reconhecimento, advindas por meio de luta, foi o convite para que algumas integrantes do NEAS fizessem parte do CAPE e implementassem lá o Núcleo de Sexualidade, que começou a funcionar em 1992.

O NEAS buscou o posto de saúde próximo às escolas para uma parceria, em um esforço de intersetorialidade, em uma época em que esse conceito ainda nem era tão discutido:

Fizemos parceria com o posto de saúde do Tirol... a proposta foi a seguinte: nós demos curso para todas as pessoas da unidade de saúde e a ideia era, nas escolas envolvidas, o pessoal da unidade de saúde entrar na escola e fazer se conhecer, então, teriam encontros em todas as salas, em todos os turnos... tudo dividido, tudo montado... o processo era muito legal! Mas, começaram as vaidades... as brigas... diretor a brigar com diretor da unidade de saúde que brigava com não sei quem... (Professora Eliza Queiroz,

entrevista realizada no dia 25/11/2010).

O NEAS representou, então, um esforço de coletivização da formação de educadoras/es em sexualidade em Belo Horizonte. Já com Cláudio, por exemplo, que atuava em outra Regional, suas buscas por formação foram mais individualizadas:

Então, eu dei uma garimpada aqui e ali, estudando por acerto e erro, vendo o que tinha e muito guiado pelo que tinha nos livros didáticos que, infelizmente, é muito limitado. É muito sexista, machista, homofóbico, mas foi o ponto de partida que eu tive. (Professor Cláudio Alves, entrevista

realizada no dia 29/10/2010).

As ações de formação entrelaçavam-se com a realização de atividades sobre sexualidade nas salas de aula. Ainda muito identificadas com os professores de Biologia, as atividades educativas eram realizadas junto às feiras de ciência ou aproveitando a divisão das turmas para as “aulas de laboratório”:

...os projetos eram diferenciados por faixa etária e por série e a gente usava as aulas de laboratório, que na época era uma espécie de maneira alternativa de trabalhar o conteúdo, porque a gente tinha mais professores que turmas, naquele cálculo 1,5... ou alguma coisa assim... de forma que se tinha o laboratório que era muito bem equipado e ficava metade da turma na sala e metade no laboratório, porque o laboratório não comporta todo mundo e para uma prática de laboratório funcionar você tem que ter uma atenção diferenciada. Então, as turmas lá eram na média de 35, por aí, então, iam 15 ou 18 para o laboratório e 18 ficavam na sala. E com esses 18 que ficavam na sala é que a gente entrava com o projeto de sexualidade. Então, tinha uma sintonia, a gente tinha reuniões semanais que planejavam o mês... são quatro segundas feiras... o que vai ser realizado nessas quatro segundas feiras... na verdade, era quinzenal, porque metade estava numa atividade e a outra metade no laboratório. (Professor Cláudio Alves,

entrevista realizada no dia 29/10/2010).

Ao relatarem as experiências que viveram em suas escolas de origem, os professores entrevistados contaram algumas situações semelhantes: uma proximidade com os alunos como uma característica prévia ao trabalho com sexualidade e a questão dessas/es educadoras/es tornarem-se referências nas escolas nas temáticas sobre a sexualidade:

...porque eu era a única pessoa que trabalhava, na minha escola... então, tiveram casos assim: “aluno beijando no pátio,,, Chama a Eliza...”.

(Professora Eliza Queiroz, entrevista realizada no dia 25/11/2010).

A gente ficava conhecido. Era assim “o pessoal da sexualidade”. “Ah, procura o pessoal do sexo”. Então, a gente era uma referência dentro da própria escola. O fato de ser referência, eu acho muito importante, porque dá uma certa visibilidade... que é aprendizagem para a gente e permite essa troca com aluno... porque só o fato de você ter um canal aberto para que o aluno chegue perto de você e se coloque, se posicione, às vezes, você não tem que falar nada, só de você ficar ali escutando, acho que já dá uma diferença enorme. E isso influi no processo de aprendizagem, a relação do professor com o aluno. (Professor Cláudio Alves, entrevista realizada no dia

29/10/2010).

...porque criou-se confiança de que eles podiam me procurar... isto é muito importante... o diálogo, ele era real; não era um diálogo autoritário. Era um diálogo... não era um debate. (Professora Vanda Pereira, entrevista realizada

no dia 01/11/2010).

Em 1993, a Professora Vanda Pereira foi convidada para trabalhar no CAPE, especificamente no Núcleo de Sexualidade. Ao aposentar-se, ela convidou a professora Eliza Queiroz para assumir seu lugar. A criação de um Núcleo de Sexualidade, no Centro de Aperfeiçoamento do Profissional da Educação da Secretaria Municipal de Educação, institucionalizou a formação das/os educadoras/es em sexualidade de outra maneira. Existia agora um espaço municipal para a discussão da temática. Com isto, há o desdobramento para o segundo movimento: articulação municipal.