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5 VINTE ANOS DE INICIATIVAS DE FORMAÇÃO DE

5.4 Quarto movimento: articulação interinstitucional

Nacionalmente, temos, em 2004, o lançamento do Programa “Brasil sem Homofobia”, pelo Governo Federal. O Programa “Brasil sem Homofobia” prevê ações variadas em diferentes setores visando à ampliação da cidadania das pessoas LGBTs assim como o enfrentamento da discriminação e da violência homofóbica. O Programa “Brasil sem Homofobia” se constituiu com a presença e a força dos movimentos sociais LGBTs. Em Belo Horizonte, um desdobramento desse Programa foi o Projeto Educação sem

[...] coordenado e desenvolvido pelo Nuh/UFMG (Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania Gays, Lésbico, Bissexual e Transexual da Universidade Federal de Minas Gerais) em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, Esportes e Cultura de Contagem, a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, o Centro de Referência GLBT de Belo Horizonte, o Grupo Universitário em Defesa da Diversidade Sexual - GUDDS!, o Instituto Horizontes da Paz e o Centro de Luta Pela Livre Orientação Sexual - CELLOS-MG e financiado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação - Secad/MEC. (Nuh/UFMG, s.d., p.1).

O Projeto “Educação sem Homofobia” marca o quarto movimento – articulação interinstitucional. Uma de suas características centrais, como aparece na citação acima, é a convergência de diferentes instituições para sua realização. Temos o movimento social LGBT, assumindo centralidade no processo, a presença propositiva da Universidade, a Secretaria Municipal de Educação tanto de Contagem quanto de Belo Horizonte – ampliando a abrangência territorial da proposta –, e o Ministério da Educação e o Governo Federal como financiadores e também direcionadores – já que o projeto se insere dentro das diretrizes de um programa de âmbito nacional.

Esse movimento de articulação interinstitucional só foi viável em razão de todo o caminho percorrido ao longo dos vários anos de iniciativas de formação de educadoras/es em sexualidade em Belo Horizonte. A existência desse histórico de atuação em sexualidade, que remonta ao início da década de 1990 com o movimento da articulação municipal, criou as condições para que, em 2007, acontecesse uma articulação de tantas vozes para promover um processo formativo para educadoras/es. Em 2007, a SMED-BH e o Conselho Municipal da Educação iniciaram a articulação em torno da temática da Diversidade Sexual após a “10ª Parada do Orgulho LGBT de BH”. Participaram dessa articulação várias entidades do movimento social e o Nuh/UFMG. Tal articulação culminou com a realização do “I Seminário sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero – Educando para a diferença”, promovido pela SMED-BH nos dias 3 e 4 de dezembro de 200768.

A realização desse seminário tensionou as normas heteronormativas presentes na SMED-BH. Segundo um de nossos entrevistados, participante do Núcleo de Relações Étnico-raciais e de Gênero, foi demandado à gerência financeira da Secretaria que respeitasse o nome social dos participantes nas reservas de hotel, mas isto não aconteceu

e alguns constrangimentos foram vividos. Também a circulação da comunidade LGBT nos elevadores e auditórios da SMED-BH gerou um burburinho que mostrou ainda mais a urgência do tema:

E foi um preconceito, que a viseira... do financeiro. Vai pagar e a fatura vai sair com um nome do registro civil... mas custava o tratamento ser com o nome social? Não custava nada, não ia atrapalhar em nada. O papel ia continuar com o nome civil... Mas, eu localizei isto para você ver como a homofobia está institucionalizada para todo lado, sabe? E foi um incômodo... – “Sai travesti!”. E os outros gritando: “Vai buscar uma travesti no hotel...” Aí o comentário rola solto. Todo mundo... Mexeu com as estruturas do prédio. (Professor José Wilson Ricardo, entrevista realizada no dia

25/02/2011).

O seminário de 2007 foi um marco que teve como desdobramento a realização, em 2008, da primeira turma de formação do Projeto “Educação Sem Homofobia”. Os objetivos do Projeto eram:

 Capacitar gestores, professores e demais profissionais da educação das

redes municipais de Belo Horizonte e Contagem;

 Considerar as especificidades por nível, etapa e modalidade da

Educação Básica;

 Criar mecanismos institucionais de controle social sobre a atuação das

secretarias no combate à homofobia, lesbofobia, transfobia e demais violências de gênero.

 Divulgar material didático e paradidático sobre as temáticas;

 Manter uma assistência que não termine na capacitação formal, mas

que possa se fazer presente no cotidiano escolar através de um programa de apoio aos profissionais da educação e aos alunos. (Nuh/UFMG, s.d. p.3).

Foram oferecidas 140 vagas para educadoras/es da Rede Municipal de Belo Horizonte e 100 vagas para educadoras/es da Rede Municipal de Contagem. O curso teve duração de 80 horas, sendo 60 horas presenciais e 20 horas vivenciais. Estas consistiram na participação na Parada LGBT, caminhada lésbica de Belo Horizonte e na visita às sedes de entidades ligadas ao movimento LGBT e movimento de prevenção à AIDS. É importante mencionar que eu participei, como aluna, dessa primeira edição do curso “Educação sem Homofobia”.

As temáticas abordadas no curso foram: (1) História do Movimento LGBT; (2) Sexismo, Homofobia e Instituição; (3) Desenvolvimento Psicossocial e Identidade; (4) Homoparentalidade e Famílias: novas configurações; (5) Construção da Sexualidade (Masculino, Feminino, Lesbianidade, Transexualidade e Travestilidades); (6) Escola e

as Políticas do Armário - o pacto do silêncio; (7) Redes articuladas das Políticas Públicas de BH e Contagem; (8) Análise Institucional: A instituição escolar; (9) Construção de projetos interventivos psicossociais. Os três eixos orientadores dos módulos foram: Direitos Humanos, Sexualidades e Metodologias de Intervenção. Em reportagem da revista Presença Pedagógica temos a seguinte descrição do curso:

Foram abordados temas como direitos sexuais, entendidos como direitos humanos, identidade de gênero, movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), novas configurações familiares e metodologias de intervenção. Essas metodologias buscavam capacitar os professores para analisarem a própria escola e detectarem tanto a diversidade sexual ali presente (mas que não aparece e deve ser reconhecida), quanto situações de homofobia e sexismo, que devem ser combatidas. Ao final do projeto, em dezembro último, foram apresentados às turmas jogos educativos, como um quebra-cabeça e um jogo de memória para crianças. Para

adolescentes, foi elaborado o jogo “E aí?”, com personagens típicos do dia-a-

dia dos estudantes vivendo situações nas quais a diversidade sexual é abordada de maneira lúdica. (REIS, 2009, p. 48).

A existência de um eixo sobre metodologias de intervenção, com o desenvolvimento de jogos educativos, reflete o esforço do projeto em integrar teoria e prática e auxiliar as/os educadoras/es na realização de atividades sobre os temas abordados.

Novas turmas de formação aconteceram nos anos de 2010 e 2012. No material de divulgação da segunda turma, explicitou-se a questão da atividade de conclusão de curso: “Como atividade de conclusão de curso, é obrigatória a execução de um projeto de intervenção em uma escola da rede pública ou na área de atuação profissional” (Nuh/UFMG, 2010). A exigência de um projeto de intervenção consolida a busca pela aplicabilidade dos conteúdos discutidos no processo de formação, visando à integração entre teoria e prática. Isto é reforçado pelo texto do Projeto “Educação Sem Homofobia”, produzido após o trabalho realizado com a primeira turma:

Temos também como um objetivo central a construção de propostas interventivas por parte dos educadores frente ao silenciamento das escolas sobre a diversidade sexual, entendendo que este silêncio sobre as homossexualidades na educação tem colaborado para que a escola como instituição seja cúmplice da violência existente e crie condições para legitimar atos homofóbicos e de humilhação no interior de suas práticas educativas. (Nuh/UFMG, s.d., p. 1).

Os formadores do curso tinham trajetórias diferenciadas: tanto eram acadêmicos com pesquisas no campo LGBT, quanto militantes e participantes dos movimentos sociais. A presença de militantes era uma forma de contribuir para

[...] romper o pacto do silêncio ao redor das homossexualidades. O silêncio do educador diante de ofensas, maus-tratos e outras formas de violência com conteúdo homofóbico legitima essas práticas. É necessário demarcar tais atitudes como inaceitáveis. (MARTINS apud REIS, 2009, p. 50).

No texto do Projeto “Educação sem Homofobia”, ressalta-se a parceria entre o poder público, a Universidade e os movimentos sociais como uma estratégia diferenciada na concepção de políticas públicas e propostas de formação. De fato, esse é um destaque desse Projeto. Obviamente, tensões e negociações entre esses atores aconteceram cotidianamente para viabilizar todo o Projeto. Mas concordamos que esse modelo de parceria

constitui-se como experiência modelo com muitas contribuições para a construção de uma nova forma de conceber e executar políticas públicas. Nesse sentido, os resultados extrapolam o nível da educação em Direitos Humanos, interpelando a ação do Estado brasileiro nas políticas públicas. (Nuh/UFMG, s.d., p. 2-3).

O Projeto “Educação sem Homofobia” viabilizou que educadoras/es tivessem acesso a experiências formativas e de sociabilidade com a comunidade LGBT. Essa proposta é semelhante ao que Zeichner (2013) apresentou da experiência de “estágios em comunidades” na formação de professoras/es em um programa da Universidade de Washington. Nesse programa, as/os professoras/es em formação são estimuladas/os a participar da rotina de organizações de base comunitária, visando a ampliar o conhecimento sobre a comunidade em que a escola se situa. O que os dados de Washington mostram é que os “estágios em comunidade” permitem à/ao professora/o em formação:

Desenvolver compreensões mais profundas sobre os alunos e as comunidades; desenvolver aprendizagens sutis sobre a diversidade; considerar a diversidade intragrupo; examinar as escolas a partir de uma perspectiva externa; e prestar atenção ao papel do contexto na aprendizagem. (ZEICHNER, 2013, p. 217)

A articulação entre as diferentes vozes e os distintos atores rompe lógicas cristalizadas e oferece possibilidades inovadoras. Claro que tensões acontecem nas “travessias de fronteiras institucionais” (ZEICHNER, 2013), mas é necessário buscar formas de construção horizontal de conhecimentos. O Projeto “Educação sem Homofobia” fez este esforço.

E a história continua...

Nosso recorte temporal finaliza em 2009. Com isto, nos dedicamos, neste trabalho acadêmico, apenas à primeira turma do Projeto “Educação sem Homofobia” e não detalharemos aqui as atividades que o Núcleo de Relações Étnico-raciais e de Gênero continua desenvolvendo e nem as ações atuais do Programa “BH de Mãos Dadas contra a AIDS”. É importante, entretanto, demarcar que essa história continua, essas articulações se movimentam e promovem novas atividades de formação. Belo Horizonte é um município com um histórico intenso, um presente ativo e um futuro promissor.

6. INICIATIVAS EM ANÁLISE: DISPUTA DE TERRITÓRIOS NA