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2 EDUCAÇÃO EM SEXUALIDADE: CONCEITOS E

2.4 O conceito de sexualidade

Definir sexualidade e explicitar com qual conceito trabalhamos é essencial. Concordamos com Abromovay, Castro e Silva (2004, p. 29) quando afirmam que “sexualidade é um conceito em disputa, historicamente, e a depender do ator, do olhar informado, da área de conhecimento, dos atores em suas vivências e ideários [...]”. Assim, diferentes formas de conceituar e discutir sexualidade coexistem em nossa cultura. Um conceito que temos considerado adequado é o utilizado pelas mencionadas autoras que definem sexualidade como:

Uma das dimensões do ser humano que envolve gênero, identidade sexual, orientação sexual, erotismo, envolvimento emocional, amor e reprodução. É experimentada ou expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, atividades, práticas, papéis e relacionamentos. [...]. Envolve, além do nosso corpo, nossa história, nossos costumes, nossas relações afetivas, nossa cultura. (ABROMOVAY, CASTRO e SILVA, 2004, p. 29).

Esse conceito evidencia a amplitude da sexualidade. É comum encontrarmos definições que restringem a sexualidade ao ato sexual ou à reprodução. Esses conceitos embasam práticas educativas pautadas exclusivamente na prevenção. Quando as autoras incluem fantasias, pensamentos e identidade na definição, elas explicitam que sexualidade está além da relação sexual. Também é comum encontrarmos conceitos de sexualidade que negam seu aspecto público, restringindo a discussão ao seu aspecto privado. Como afirma Louro (2001, p. 9), nessa compreensão “a sexualidade – o sexo, como se dizia – parecia não ter nenhuma dimensão social; era um assunto pessoal e particular que, eventualmente, se confidenciava a uma amiga próxima”. O conceito acima reforça que sexualidade envolve a cultura, a história, os costumes.

Outro conceito interessante com o qual temos trabalhado, é o proposto por Figueiró (2006):

Sexualidade é uma dimensão ontológica essencialmente humana, cujas significações e vivências são determinadas pela natureza, pela subjetividade de cada ser humano e, sobretudo, pela cultura, num processo histórico e dialético. A sexualidade não pode, pois, ser restringida a sua dimensão biológica, nem à noção de genitalidade, ou de instinto, ou mesmo de libido.

Também não pode ser percebida como uma “parte” do corpo. Ela é, pelo

contrário, uma energia vital da subjetividade e da cultura, que deve ser compreendida, em sua totalidade e globalidade, como uma construção social que é condicionada pelos diferentes momentos históricos, econômicos, políticos e sociais. (FIGUEIRÓ, 2006, p. 42).

Percebemos a busca da autora por ampliar o conceito de sexualidade evitando posturas naturalizantes ou reducionistas. César Nunes, citado por Figueiró (2006), identificou cinco paradigmas de entendimento da sexualidade:

 A concepção médico-biologista que vê a sexualidade como uma

dimensão biológica e procriativa do ser humano e como uma força propulsora, natural e instintiva da procriação. Implica considerar a natureza como determinante da condição humana;

 A concepção terapêutico-descompressiva, na qual a sexualidade é

entendida como uma dimensão meramente subjetivista, psicologizante, individual e ligada a uma força natural, supostamente institintiva ou selvagem do corpo humano. Sua essência está centralizada no fato de ser vista, unicamente, como fonte de prazer e gratificação;

 A concepção normativa-institucional, que vê a sexualidade como um

conjunto de comportamentos socialmente permitidos, por um lado, e proibidos, por outro. Implica a necessidade de passar as normas reguladoras da sexualidade, que até então eram transmitidas pela família;

 A concepção consumista-quantitativa, que entende a sexualidade como

uma energia do indivíduo, passível de regulação e controle social, que, por sua vez, pode ser transformada em produtividade. Nela está inserida, por exemplo, a idéia da instigação ao sexo quantitativo, da alienação do afeto e do apelo de venda e marketing;

 A concepção dialética e política, que concebe a sexualidade como a

dimensão mais ampla da condição humana, como uma construção pessoal e social, em que o ser humano é visto como participante ativo desse processo, uma vez que influencia na construção de valores e normas sexuais e, ao mesmo tempo, é dialeticamente influenciado por eles. Implica que o indivíduo possa vir a ser sujeito de sua própria

sexualidade. (NUNES apud FIGUEIRÓ, 2006, p. 43) 30.

Fica claro, então, que a sexualidade precisa ser sempre analisada em seu caráter sócio- histórico e cultural, evitando naturalizações e essencialismos:

30 NUNES, César Aparecido. Filosofia, Sexualidade e Educação: as relações entre os pressupostos

ético-sociais e histórico-culturais presentes nas abordagens institucionais sobre a educação sexual escolar. 1996. 319f, Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas.

A visão de sexualidade como construção histórica pressupõe a existência de uma ampla diversidade de modos de pensar sobre as forças culturais que modelam a sexualidade e a forma pela qual o fazem. Assim, comportamentos idênticos podem adquirir significados sociais inteiramente diferentes, em função de diferenças culturais, econômicas ou históricas. (TUCKMANTEL, 2009, p. 214).

Cada contexto, cada escola, cada momento merecem análises cuidadosas específicas, evitando compreensões deturpadas. Falar de sexualidade, buscar conceitos e teorias significa percorrer um caminho sócio-histórico e cultural, problematizando certezas e essências. Somente assim será possível compreender – mesmo que parcialmente – o que tem sido construído como sexualidade em cada momento e em cada contexto.

Uma distinção que se faz necessária também é entre sexualidade e gênero. Embora sejam conceitos extremamente relacionados e imbricados, gênero e sexualidade possuem distinções. O conceito de gênero foi utilizado pelas militantes feministas como uma forma de dar visibilidade às construções culturais subjacentes às diferenças biológicas existentes entre os sexos. Nas palavras de Louro (2011),

[....] o conceito de gênero surgiu pela necessidade de acentuar o caráter eminentemente social das diferenças percebidas entre os sexos. Apontava para a impossibilidade de se ancorar no sexo (tomado de modo estreito como características físicas ou biológicas dos corpos) as diferenças e desigualdades que as mulheres experimentavam em relação aos homens. O conceito levava a afirmar que tornar-se feminina supõe uma construção, uma fabricação ou um aprendizado que acontece no âmbito da cultura, com especificidades de cada cultura. Portanto, as marcas da feminilidade são sempre diferentes de uma cultura para outra; essas marcas se transformam, são provisórias. Inscrevê-las num corpo supõe, também, lidar com as marcas distintivas do seu outro, a masculinidade. Percebe-se, então, que ao falar de gênero estamos nos referindo a feminilidades e a masculinidades (sempre no plural). A potencialidade do conceito talvez resida exatamente nesta noção, a de que se trata de uma construção cultural contínua, sempre inconclusa e relacional. (LOURO, 2011, p. 63-64).

É importante destacar, novamente, que sexualidade e gênero se aproximam por serem construções culturais feitas cotidianamente por inúmeras pedagogias de gênero e sexualidade (LOURO, 2001). Essas pedagogias instauram hierarquias e subordinações em que algumas performances de gênero e de sexualidade são mais valorizadas e legitimadas que outras. A educação em sexualidade emancipatória precisa explicitar essas pedagogias, problematizando as relações de poder que as sustentam.

Butler e Haraway, citadas por Azeredo (2007), nos ajudam a resistir à tentação de definir gênero produzindo uma dicotomia com sexo. Elas alertam que há um lugar

comum que polariza essas conceituações sobre as diferenças entre os sexos, definindo sexo como os fatores biológicos e gênero como os fatores culturais. Essa dicotomia empobrece a compreensão das diversas formas não-coerentes de relações entre sexo e gênero que se constroem performativamente no cotidiano. Nesse sentido, concordamos com Azeredo (2007) que, baseada em Butler e Haraway, propõe uma virada no conceito de gênero que possibilite

[...] ser pensado, não como um simples atributo, ligado ao sexo que, hoje em dia, pode ser visto nos primeiros meses de vida do bebê através do ultrassom,

mas como sendo “performativamente produzido” por práticas reguladoras

permanentemente reiteradas. (AZEREDO, 2007, p. 89).

Com clareza da performatividade, podemos tanto analisar as relações de poder que são reiteradas nas normas de gênero como produzir performances afirmativas. As relações de poder são o ponto central de nossa compreensão do conceito de gênero, como afirma Weeks (2001):

O gênero não é uma simples categoria analítica; ele é, como as intelectuais feministas têm crescentemente argumentado, uma relação de poder. Assim, padrões de sexualidade feminina são, inescapavelmente, um produto do poder dos homens para definir o que é necessário e desejável – um poder historicamente enraizado. (WEEKS, 2001, p. 56).

Esse poder historicamente enraizado de que nos fala Weeks (2001) pode ser traduzido como o patriarcado que orienta boa parte de nossas relações sociais. E, como afirma hooks (2000), o patriarcado subjetiva homens e mulheres. Assim, as questões de gênero deixam de ser compreendidas como relativas apenas às mulheres e as intervenções educativas passam a ter como foco toda a sociedade. A definição de hooks (2000, p. 1) para o feminismo é uma busca de ampliar o entendimento em relação ao gênero: “feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, a exploração de bases sexistas e a opressão”. Assim, não estamos diante de uma discussão que visa exclusivamente questionar os papéis atribuídos a homens ou a mulheres em determinada cultura, ou insistir na necessidade de homens e mulheres terem igualdade. Buscamos uma discussão que tensione o patriarcado instituído e reiterado performativamente nas relações sociais, explicitando as relações de poder que são subjacentes a esse processo.