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A Sistemática de vinculação jurisprudencial no Novo Código de Processo Civil de

2.3 Os instrumentos de vinculação jurisprudencial no Direito brasileiro

2.3.2 A Sistemática de vinculação jurisprudencial no Novo Código de Processo Civil de

O Novo CPC de 2015 representou um bom avanço no pertinente aos mecanismos de vinculação jurisprudencial. Quanto aos mecanismos ligados à padronização decisória e julgamentos em massa (IRDR, IAC e outros), esses sofreram consolidação e alteração do que existia no regime anterior. Porém, a inovação mais relevante ficou com a sistemática de precedentes inserida no art. 926, o dever de fundamentação com precedente no art. 489 e os precedentes expressamente vinculantes do art. 927.

O códice foi o primeiro em nossa história a trazer em seu bojo um tratamento específico dos precedentes, o que se fez de modo geral no Livro III (Dos processos nos tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais), Título I (Da ordem dos processos e dos processos de competência originária dos tribunais), Capítulo I (Disposições Gerais) que compreende os artigos 926 a 928.

110 MEIRELES; WALD; MENDES, 2008, p. 709. 111Ibidem, p. 717.

Para uma primeira compreensão, pode parecer que o ponto central dos

precedentes reside no art. 927113 e sua listagem de decisões que devem ser obrigatoriamente

observadas pelos juízes e tribunais.

Quanto ao enfoque dado às súmulas nos incisos II e IV, além das críticas já feitas em tópicos anteriores deste estudo, acrescentamos a redação infeliz do códice em mencionar “os enunciados de súmula”, o que pode levar ao entendimento equivocado que esse se aplica diretamente, e não por intermédio do conteúdo dos precedentes que as deram origem.

Os incisos I e III apresentam repetições de vinculação já previstas em outros pontos, o efeito vinculante decorrente do controle concentrado já consta do art. 28, parágrafo único, da lei nº. 9.868/99, enquanto os efeitos do IAC e do IRDR estão presentes em diversos artigos do próprio código.

Por fim, temos como uma inovação o inciso V ao designar a vinculação “a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”, novamente a redação pode conduzir interpretações extremas que não condizem com o trato dos precedentes, pelo que se deveria fazer expressa menção que tais vinculações se dão enquanto no exercício de julgamentos singulares e de órgãos fracionários, além de ser necessário definir no que consistiria o termo “orientação”.

No parágrafo primeiro do mesmo art. 927, temos a menção ao principal conjunto de normas sobre precedentes no novo código, asseverando que “Os juízes e os tribunais

113 A redação do dispositivo é a seguinte: Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

§ 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º , quando decidirem com fundamento neste artigo.

§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

§ 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.

observarão o disposto no art. 10114 e no art. 489, § 1º115 , quando decidirem com fundamento neste artigo”. O ponto é essencial no sentido da construção do dever de fundamentação das decisões judiciais e do contraditório e ampla defesa, pois o artigo 10 trata da vedação à decisão surpresa, um dos elementos inovadores do CPC de 2015 relativo à promoção do contraditório, enquanto o art. 489 é dedicado ao dever de fundamentação das decisões judiciais.

O art. 926116, em seu caput, é um dos destaques do Novo Código, inserido por

sugestão de Lênio Streck117, tal protocolo estatui “Os tribunais devem uniformizar sua

jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.118 De fato, em nossa concepção, o

dever de seguir precedentes no CPC está inserido na combinação entre os artigos 926, 489,

parágrafo 1º, inciso VI e 11119. Isso ocorre quando o art. 489 estabelece como não

114Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

115 Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.

§ 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.

116 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.

§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

117STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC. Consultor

Jurídico, São Paulo, 23 abr. 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-abr-23/observatorio-

constitucional-jurisdicao-fundamentacao-dever-coerencia-integridade-cpc#_ftn1>. Acesso em: 26 maio 2019,

online.

118 A estabilidade, integridade e coerência como atributos de um sistema de precedentes serão objeto de estudo mais detido em outros pontos deste trabalho.

119 Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.

Parágrafo único. Nos casos de segredo de justiça, pode ser autorizada a presença somente das partes, de seus advogados, de defensores públicos ou do Ministério Público.

fundamentada a decisão judicial que deixar de seguir precedente invocado pela parte, sem demonstrar a ocorrência de distinguish ou overruling, enquanto o art. 11 é claro ao declarar que as decisões não fundamentadas são eivadas do vício de nulidade absoluta.

Por fim, temos o art. 926 como cláusula geral promotora da coerência sistêmica

dos precedentes, combatendo, assim, a jurisprudência lotérica120 e a invocação de precedentes

para todos os gostos.

Observa-se, então, através da leitura do dispositivo do art. 489, parágrafo 1º, inciso VI, que a menção é feita a todos os precedentes, que valerão como tal e terão caráter obrigatório, exceto quando demonstrada sua ausência de autoridade pela superação de entendimento ou a distinção entre o caso atual e o caso anterior. Não cabendo, assim, sustentar que os precedentes obrigatórios seriam apenas aqueles insertos no art. 927, cuja listagem servirá de guia para diminuir a carga argumentativa voltada à demonstração da autoridade do precedente e sua não superação, o que nos demais casos gera maior ônus argumentativo para a parte que invoca o precedente.

Estabelece-se, desta forma, que compete ao julgador a motivação racional e fundamentada das razões que o levaram a seguir, afastar, restringir, ampliar ou superar a aplicação de um precedente determinado, sempre devendo facultar às partes a oportunidade prévia de manifestar acerca da sua tese sobre o precedente e sua aplicação ao caso, conforme demandado pela vedação à decisão surpresa contida no já citado art. 10 do CPC.

Não se cabe admitir aqui a fundamentação que se limita a mencionar número e transcrever texto de súmula ou ementa, pois a aplicação do precedente tem como pressuposto a comparação analítica entre os fatos materiais do caso concreto que formou o precedente e os do caso sob exame.

Podemos afirmar, nesse sentido, que o CPC de 2015 estabeleceu o dever de consideração aos precedentes no âmbito da fundamentação das decisões judiciais. Isso não significa, entretanto, que o código estabeleceu um sistema de precedentes obrigatórios similar ao que ocorre no stare decisis do sistema anglo-saxão, pois tal aspecto só se dará caso o respeito aos precedentes seja de fato inserido na prática jurídica e tenha como produto um conjunto de decisões que formem de fato o sistema estável, íntegro e coerente que é o pressuposto de um efetivo sistema de precedentes. Por enquanto, podemos afirmar apenas que o Brasil adotou uma sistemática de precedentes obrigatórios cuja tendência seria a formação

120 A expressão jurisprudência lotérica é comumente utilizada há alguns anos pela doutrina para designar a situação da prática jurídica nacional em que a grande divergência jurisprudencial e pouca unicidade e coerência nos provimentos judiciais faz com que buscar o Judiciário tenha para o cidadão um fator de sorte, assim como na loteria.

de um sistema de precedentes, caso haja a conjugação de vários fatores que vão além da norma legislativa.

Sobre essas condições e requisitos para que se tenha a efetiva implementação de um sistema de precedentes no Direito Brasileiro, temos como importante a listagem de

requisitos apontada por Dierle Nunes121:

a) Necessidade de previsão de esgotamento dos debates acerca da tese jurídica antes de firmá-la como um padrão decisório (precedente judicial);

b) Busca de integridade e coerência na reconstrução da história institucional de aplicação da tese jurídica pelo tribunal (o que significa que cabe ao tribunal levar em consideração as circunstâncias históricas que levaram à formação da tese no passado);

c) Superação da ideia de que enunciados sintéticos de súmulas correspondem a precedentes judiciais que universalizam tese jurídicas a incidir sobre inúmeros casos concretos similares;

d) Reforço da importância da fundamentação da decisão judicial (ratio decidendi) na formação do precedente, em detrimento do dispositivo decisório; e) Fixação da ratio decidendi e dos obter dicta do precedente;

f) Garantia de estabilidade decisória dentro do tribunal (stare decisis com eficácia horizontal);

g) Aplicação discursiva do padrão (precedente) pelos tribunais inferiores (stare decisis vertical), o que acarreta a obrigatoriedade de observância das decisões dos tribunais superiores mediante a comparação da decisão-paradigma com as circunstâncias peculiares do caso concreto;

h) Garantia às partes de utilização de técnicas processuais destinadas à distinção (distinguish) e superação (overruling) do padrão decisório para que seja possível demonstrar que a tese jurídica não é aplicável diante das circunstâncias peculiares do caso concreto.

Acrescentamos à lista acima as questões relativas à mudança da mentalidade e da formação dos juristas, por parte de todos os atores processuais, que demanda a aceitação de uma cultura jurídica diferente, ligada à discussão do caso concreto e dos fatos da demanda como pressupostos para o desenvolvimento do case law e o combate à jurisprudência lotérica, que tanto prejudica a efetividade e igualdade do sistema judicial brasileiro.