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Interpretação e Aplicação: apontamentos sobre hermenêutica, linguística e papel

Cabe neste primeiro momento se aprofundar no estudo do conteúdo dos fundamentos, principalmente na perspectiva da interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, servindo-nos de uma visão mais ampla e interdisciplinar, para melhorar e aclarar o papel desempenhado pelo juiz na decisão judicial, partindo da relação entre texto legislativo e norma jurídica.

A hermenêutica tradicional parte da separação dos poderes como concebida em Aristóteles, Locke e Montesquieu para conceber funções estanques do Legislativo e do Judiciário, de forma a que o Legislativo teria o papel de elaborar as leis e o Judiciário de aplicá-las.

A teoria foi bem aceita na França do período pós-revolução francesa, com o intuito de que servia bem aos propósitos da época, visto que os revolucionários podiam controlar a elaboração das leis, mas sua aplicação seria realizada pelos mesmos juízes do período absolutista, que não poderiam ser todos substituídos imediatamente por questões práticas.401

A chamada Escola da Exegese, assim, se fincava na interpretação meramente gramatical e casava muito bem com o crescente positivismo jurídico influenciado pelo

racionalismo cientificista do período iluminista.402

Esta concepção vigorou durante muito tempo e pode-se dizer que ainda vigora, pois mesmo após o chamado giro linguístico da hermenêutica filosófica ainda se tem arraigada na cultura jurídica, principalmente no que concerne às decisões judiciais, o sentimento de que se interpreta o texto legal para encontrar-se a norma que lá jaz escondida,

guardando a vontade do legislador.403

Pode-se afirmar, inclusive, que nosso sistema de Estado de Direito concebe-se, fundamentalmente, na premissa de que viveríamos sob o império de uma legislação elaborada por representantes eleitos da sociedade e cujo conteúdo seria previamente conhecido por todos.

401 LACOMBIE, 2003, p. 50-70. 402 LACOMBIE, loc. cit.

O papel do juiz seria, então, eminentemente técnico de conhecimento da legislação criada pelo Poder Legislativo para aplicá-las aos casos concretos de acordo com o método da subsunção do fato hipotético previsto na norma posta em juízo. Ou seja, de modo algum o juiz estaria elegendo condutas no sistema, ou participando do sistema decisório da legislação do Estado, apenas aplicando-as, reproduzindo a vontade da lei.

Para que este sistema possa se mostrar possível, é necessário supor que o Legislativo elabora a norma de conduta por completo, pronta para incidir em casos concretos, e que o magistrado conheceria de seu conteúdo direta e objetivamente, aplicando-a tal qual

desejado pelo Legislador.404

A própria interpretação é vista, neste contexto, como algo pernicioso que deve ser evitado ao máximo, ficando patente essa posição no brocado desenvolvido pela escola de exegese: in claris cessat interpretatio (o que está claro não se interpreta). O Judiciário é visto como um “mal necessário”, que deve ser contido ao máximo por meio da farta legislação, o que leva, à época do auge da escola da exegese, à edição de Códigos Civis com dezenas de

milhares de artigos sob a proposta de tentar regular por completo a vida em sociedade.405

Pode-se observar que todo o ideário iluministas e faz fortemente presente nesta concepção pautada na crença exacerbada na racionalidade humana e de uma teoria da comunicação eminentemente objetiva, crendo na perfeição da comunicação escrita para transmitir a vontade legislativa (se é que se pode dizer que isso exista), através do tempo, ao

aplicador do Direito.406

Nesta teoria, há a coincidência biunívoca entre norma jurídica e texto normativo, o que já se tem por bastante demonstrada como falaciosa pela doutrina jurídica atual. Tal aspecto pode ser observado através de constatações linguísticas acerca do texto e sua

interpretação.407

Do ponto de vista da linguístico, a coincidência biunívoca entre norma e texto pressupõe a coincidência biunívoca entre signos linguísticos e coisas materiais. Ou seja, uma

concepção arraigada de uma linguística “designicionista”.408

A concepção “designicionista”da linguagem consiste em conceber essa como um constante ato de rotular coisas empiricamente constatáveis, ou seja, a linguagem seria sempre

404 GUERRA, Marcelo Lima. Competência da Justiça do Trabalho. Fortaleza: Tear da Memória, 2009, p. 20- 60.

405LACOMBIE, 2003, p. 50-70. 406LACOMBIE, loc. cit. 407GUERRA, op. cit., p. 20-60. 408GUERRA, loc. cit.

referente as coisas que podemos constatar empiricamente e que damos nomes para nos

referirmos.409

Tal formato de linguística tem suas origens filosóficas no essencialismo Platônico, que concebe a dualidade entre mundo das ideias e mundo das coisas, e que é corroborada mais tarde pelas teorias do método científico cartesianas da dualidade entre corpo e espírito, que tanto influencia as concepções jurídicas positivistas e nos projetam um olhar da ciência pelo

método das ciências naturais. Esta passagem da obra de Santo Agostinho410 relata bem esta

teoria linguística:

Quando eles (os meus pais) diziam o nome de um objeto e, em seguida, se moviam na sua direção, eu observava-os e compreendia que o objeto era designado pelo som que eles faziam, quando o queriam mostrar ostensivamente. A sua intenção era revelada pelos movimentos do corpo, como se estes fossem a linguagem natural de todos os povos: a expressão facial, o olhar, os movimentos das outras partes do corpo e o tom de voz, que exprime o estado de espírito ao desejar, ter, rejeitar ou evitar uma coisa qualquer. Assim, ao ouvir as palavras repetidamente empregues nos seus devidos lugares em diversas frases, acabei por compreender que objetos é que estas palavras designavam. E depois de ter habituado a minha boca a articular estes sons, usava-os para exprimir os meus próprios desejos.

Esta perspectiva reducionista da linguística como mera rotulação de coisas foi superada pela constatação da autonomia das palavras para produzir atos no mundo e pela constatação de essas podem variar de significado de acordo com a situação em que são utilizadas, é a chamada corrente contextualista da linguagem.

O caráter autônomo das palavras é bem explorado por John Langshaw Austin em sua obra How do to things with words (Como fazer coisas com palavras). A crítica de Austin dirige-se à redução da linguagem à mera descrição de um estado de coisas (constatações) ou enunciação de fatos, que podem ser qualificados como verdadeiros ou falsos de acordo com a ocorrência no mundo dos fatos. Austin exemplifica situações como jurar, batizar e apostar em que a ação básica a que se refere a ação consiste em proferir palavras, ou seja, atos em que a “coisa” em si é a comunicação e que não operam segundo a lógica de designação da realidade empírica, sendo assim atos de fala "realizativos" (performative). Logo, o caráter arbitrário dos enunciados previsto por Austin se contrapõe à perspectiva de uma hermenêutica capaz de conferir soluções matemáticas às ambiguidades da linguagem, ou seja, nega-se a possibilidade

de objetivação abstrata de conceitos jurídicos.411

409 GUERRA, 2009, p. 20-60

410SANTO AGOSTINHO apud WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 171.

A expressão maior do contextualismo linguístico é, provavelmente, a obra do segundo Wittgenstein, principalmente seu livro “Investigações Filosóficas” em que divulga

sua teoria dos Jogos de Linguagem.412

Wittgenstein, nesta segunda fase, sai da perspectiva de buscar uma definição do que seria a linguagem para focar-se no funcionamento da linguagem, visto que “o sentido de

uma palavra é seu uso na linguagem”.413 Dessa maneira, o filósofo concebe o uso das palavras

no contexto de jogos de linguagem, cada um com suas regras específicas, que estabelecem o papel das expressões na linguagem naquele determinado contexto. O significado depende diretamente do contexto em que se insere e a palavra não teria, assim, significado autônomo.

Tendo em conta todas essas concepções linguísticas, que compõem a virada hermenêutica, temos que colocar em xeque a concepção meramente declaratória da atividade

jurisdicional. Sobre o tema, a lição de Humberto Ávila em prefácio na obra de Bustamante414:

Os estudos de Teoria Geral do Direito passam, especialmente no Brasil, por um momento crucial. Antigamente, era preciso saber se a interpretação era, ou não, construtiva; se a interpretação literal era, ou não, possível; se as normas poderiam, ou não, ser aplicadas mediante subsunção; se havia, ou não, mais de uma solução interpretativa; se a interpretação envolvia, ou não, um ato de vontade na escolha entre várias razões conflitantes. Essas interrogações precisavam ser respondidas. E foram: a interpretação é, sim, essencialmente construtiva, ponderativa e subjetiva. Restou, porém, o mais difícil: saber como e com base em que parâmetros deve ser construída a norma, devem ser ponderadas as razões e poder ser controlada a subjetividade no processo de aplicação do Direito. Sobre essas questões, que são essenciais, o jurista não pode emudecer.

Isso não significa, contudo, que o texto não significa nada e pode ser livremente moldado pelo aplicador, visto que há sempre um campo de determinação de algumas palavras que não pode ser atingido.

Onde houver, entretanto, ambiguidade ou vagueza das expressões linguísticas utilizadas nos textos, dele poderá se retirar tantas normas quanto forem os significados possíveis das expressões. Assim, o juiz atuará escolhendo diretamente quais desses

significados fazem ou não parte da norma. Sobre o tema, disserta Perelman415:

Como o poder de decisão do juiz varia na mesma proporção da vaguidade dos termos da lei, é normal que ele se utilize deste poder para conceber o direito como aquilo que é efetivamente: um meio para realização de certas finalidades políticas e

412 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 150- 210.

413 Ibidem, p. 207.

414 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Argumentação Contra Legem: A teoria do discurso e a justificação jurídica nos casos mais difíceis. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 5.

415 PERELMAN, Chaïm. A Teoria Pura do Direito e a Argumentação. (20--). Trad. Cassio Scarpinella Bueno. Disponível em: <http://www.scarpinellabueno.com/images/traducoes/trad-1.pdf>. Acesso em: 30 maio 2019, online.

sociais. Se tal poder de interpretação é passível de limitação em certas matérias pelo órgão de cúpula do Judiciário, como se dá com o direito penal, por exemplo, é da maneira como aquele Tribunal compreende o papel do juiz no interior do sistema jurídico que depende a extensão deste poder. Não se pode negar que a concepção desta função tem se alterado muito nos últimos cento e cinquenta anos e que as Cortes de Cassação francesa e belga tomem em relação ao texto do Code Napoléon liberdades inimagináveis no início do século passado.

Outro ponto importante acerca da variação das palavras é a chamada estrutura radial de determinadas palavras, que é bem explorada pelo professor George Lakoff. Algumas palavras possuem uma categoria central de significado, mas também a ela se adicionam diversas categorias de significado que decorrem do núcleo da categoria central, mas constituem variações fáticas do seu significado. Tal ideia pode ser exemplificada com a palavra “mãe”, cujo caso central é a mãe que deu a luz à criança, que carrega sua carga genética e será por ela amamentada e criada. No entanto, muitos outros tipos de "mãe" são conhecidos hoje, como: a madrasta, a mãe adotiva, mãe genética, mãe de nascimento, mãe de

aluguel etc.416

Quando temos no texto normativo expressões de caráter radial como exemplificado com a expressão “mãe”, quais subcategorias estariam inclusas na norma gerada

e quais estariam excluídas, é algo que será objeto de escolha do magistrado.417

A comprovação de que o texto está sempre sendo interpretado e tendo uma construção normativa constante da qual os tribunais são parte integrante fundamental traz novas perspectivas de controle da decisão judicial.

Estas perspectivas revelam que o juiz faz escolhas no momento em que interpreta o texto e, assim, produz determinada norma que incidirá no caso concreto, emanada de um ato de vontade, que deve ser objeto de controle em um Estado de Direito levando a um campo

que podemos chamar de justificação da decisão.418

A atividade judicial vista desse modo põe em xeque a concepção de separação estanque dos Poderes, demonstrando a atividade criativa de participação do juiz na elaboração da norma, ou seja, o poder Judiciário está, por fim, exercendo atividade política e não meramente técnica jurídica, como queria demonstrar a Escola da Exegese. Tratando-se de

416 LAKOFF, George. Women, Fire and Dangerous Things. Chicago: University of Chicago Press, 1987, p. 91-115.

417 LAKOFF, loc. cit.

418 ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica, Perelman, Toulmin, Maccormick, Alexy e outros. São Paulo: Landy, 2000, p. 5-15.

atividade política, deve também responder por controles de legitimidade para manter-se de

acordo com os valores vigentes na sociedade.419

Essas afirmações levam à conclusão que, tanto o precedente judicial, como a lei escrita, consistem em textos que serão interpretados e só dessa interpretação é que será revelada a norma jurídica propriamente dita que regerá o caso. Dentro dessa atividade interpretativa, devido ao contexto ambíguo que é natural à linguagem, há um campo determinado, mas também há um determinado grau inescapável de indeterminação. Essa indeterminação será resolvida pelo aplicador da norma que, neste momento, realiza atividade criadora e esta escolha que dará fim à indeterminação é que merece controle para garantir sua pertença ao ordenamento jurídico. A própria legitimidade da decisão judicial, em um Estado Democrático de Direito, está diretamente vinculada a esta noção de demonstração, através da fundamentação, que as escolhas interpretativas não guardam coerência com o ordenamento.

O precedente não leva, portanto, qualquer vantagem em relação à lei escrita na questão de poder gerar uma interpretação unívoca sobre a aplicação do texto aos casos concretos, visto que ambos têm a mesma forma de comunicação, o texto escrito, que tem limites próprios para transmissão de conteúdo.