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4.2. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais

4.2.1 Origem e Definição do Dever de Fundamentar

O princípio constitucional da obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais esteve, durante muito tempo, em um campo de grande indeterminação, principalmente devido ao descaso da doutrina processual clássica para com a revelação do real sentido e alcance desta garantia fundamental.

As definições da motivação trazidas nos clássicos não iam além de noções tautológicas, como a obrigatoriedade de revelar os motivos ou razões de decidir ou até o

processo lógico seguido pelo juiz para chegar à decisão.420

419 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Traduzido por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993, p. 10-30.

O estudo da decisão judicial como fenômeno de intensa complexidade é um desafio para os juristas, principalmente devido ao seu caráter inevitavelmente multidisciplinar, pelo que até os trabalhos publicados pelo processualista italiano Michelle

Taruffo421, pode se considerar que não havia tantos estudos esclarecedores, que realmente

explorassem com profundidade o tema da motivação. Sobre este desinteresse dos juristas

sobre as perspectivas não estritamente jurídicas, aponta Taruffo422:

[...] el acentuado desinterés del jurista en relación con los componentes no jurídicos de los problemas que enfrenta, termina por reducir considerablemente, mucho más de lo que se deriva de la intrínseca complejidad misma de los problemas, el peso de las soluciones que son propuestas en el plano mismo de la investigación jurídica. 423 Outro ponto, que gerou dificuldade no estudo da motivação, consiste na confusão feita por alguns entre o discurso justificativo, ou seja, o conteúdo escrito da decisão prolatada pelo magistrado, e o conjunto de percursos psicológicos pelos quais teria passado a mente do

magistrado até chegar à decisão.424

A perspectiva psicológica é extremamente nebulosa e quase impossível de ser determinada, além do que irrelevante para a finalidade de controle da decisão, pois o que se julga são a racionalidade e compatibilidade da mesma com o ordenamento jurídico, e não o

método psicológico utilizado pelo magistrado para chegar a este ponto.425

É este o cenário em que se encontrava o estudo da motivação das decisões judiciais até a década de 1970, desvalorizada enquanto instituição histórica e garantia constitucional e tida, não como um grande princípio constitucional do processo, mas como mera repetição da legislação infraconstitucional, servindo de mero guia para juiz no desenvolvimento de seu mister.

O dever constitucional de fundamentar as decisões judiciais, atualmente, é amplamente estudado tanto pela doutrina estrangeira como pela nacional, dentro do fenômeno de constitucionalização das garantias processuais, dentre as quais tem destaque como princípio geral e instituto democrático de legitimação das decisões do Poder Judiciário, visto

420TARUFFO, Michelle. La Motivación de la Sentencia Civil. México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2006, p. 6.

421TARUFFO, loc. cit. 422Ibidem, p. 14.

423 O acentuado desinteresse do jurista em relação aos componentes não jurídicos dos problemas que enfrenta termina por reduzir, consideravelmente, muito mais do que se deriva da complexidade intrínseca dos problemas, o peso das soluções que são proposta no plano próprio da investigação jurídica (Tradução nossa).

424TARUFFO,op. cit., p. 6.

425Um grande entrave a esta expressão do raciocínio é que nossa mente muitas vezes funciona por símbolos e imagens, e não por raciocínios lógicos propriamente ditos, como bem explorados por vários teóricos da sociologia e psicologia do imaginário, como Durand, Charles Taylor e Jung.

que age como garantia fundamental do cidadão em face do Estado em várias perspectivas. A

ideia apontada aqui é bem explorada por Gustavo Binenbojm426 nos seguintes termos:

É louvável o esforço das teorias contemporâneas sobre democracia e direitos fundamentais no sentido do balizamento de um âmbito próprio de atuação da jurisdição constitucional, que a torne compatível com o sistema de separação e harmonia entre os poderes. Mais do que meros corretivos liberais do princípio majoritário, os direitos fundamentais se afirmam, hodiernamente, como condições estruturantes da própria democracia; devem eles, por isso, ficar à margem das disputas políticas, sob proteção de um órgão independente e capaz de subordinar os demais poderes à autoridade moral e intelectual de suas decisões. Por evidente numa sociedade aberta e pluralista, tais decisões, embora definitivas, submetem-se, sempre, à crítica intersubjetiva, não apenas dos operadores profissionais do Direito como de todo e qualquer cidadão interessado.

Na visão de J.J. Canotilho, o princípio da motivação das decisões judiciais teria três funções principais: 1) controlar a administração judiciária; 2) evitar a arbitrariedade e o voluntarismo nas decisões judiciais e instituir a racionalidade argumentativa; 3) facilitar e

possibilitar impugnações em sucedâneo recursal às partes.427

Analisando as funções anteriormente mencionadas, podemos apontar dois grandes aspectos da motivação: um endoprocessual, que concerne às partes e suas garantias processuais durante o litígio, e outro extraprocessual, que diz respeito a um interesse democrático de toda a sociedade no controle dos atos do Poder Judiciário.

A história do dever de motivar confunde-se com o próprio nascimento da tarefa de julgar, no entanto, em estágios mais primitivos, a justificativa do julgador se respaldava, muitas vezes, na fé religiosa, em revelações místicas ou sabedoria de inspiração divina. Um exemplo clássico está presente na parábola do julgamento do Rei Salomão, no caso das duas

mães que disputavam a maternidade da mesma criança.428

A origem da obrigatoriedade de motivação é proveniente do Processo Civil Romano, mais especificamente do período denominado de Extraordinaria Cognitio (de 27 a.C. até a queda do Império), é durante esta fase que o processo judicial passa a ter caráter

integralmente público, através dos julgamentos realizados pelos magistrados imperiais.429

O ato de julgar, no processo romano, não era especialmente comprometido com uma fundamentação racional ou expositiva, mas uma manifestação da vontade do soberano e

426 BINEBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 118.

427CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 667

428 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: RT, 2001, p. 20-25. 429AZEVEDO, Luiz Carlos de; TUCCI, José Rogério Cruz e. Lições de história do processo civil romano. São Paulo: RT, 2001, p. 48.

do seu poder em primeiro plano. Contudo, com a instituição de um sistema judicial formal pelo imperador Otaviano Augusto, com a nomeação de magistrados que passavam a ser funcionários do Estado e investidos de poder delegado, surge o sucedâneo de impugnação recursal da Apellatio, buscando atingir a revisão do julgado por instâncias superiores. Em decorrência do surgimento do apelo é que se pode apontar em uma preocupação por parte dos magistrados em fundamentar suas decisões, tendo em vista a possibilidade de revisão

superior.430

No Direito Canônico da baixa Idade Média, também se pode identificar o dever de fundamentar na obrigatoriedade da motivação da sentença de excomunhão. Porém, o motivo da obrigatoriedade era de simplesmente levar ao conhecimento do excomungado seus

pecados, para que pudesse emendar sua conduta.431

Durante o restante da Idade Média, os indícios acima apontados não obtiveram avanço, e sim retrocesso, com a instalação do período absolutista na Europa, em que o governante era dotado de poder pela graça divina, o que não coadunava com qualquer noção

de satisfação de seus atos e decisões.432

Com a consolidação do Estado Moderno e das repúblicas europeias no século XVIII é que podemos observar o princípio da motivação das decisões como elemento

essencial da jurisdição no Estado Democrático de Direito.433

Na França revolucionária iluminista, o dever de motivação das decisões judiciais é instituído como forma de quebra com o antigo regime absoluto, assim como uma garantia de transição de regime, essencialmente externa ao processo, ideológica e estratégica, visto que ante a inviabilidade em se substituir todos os magistrados do antigo regime imediatamente, obrigá-los a fundamentar suas decisões possibilitava que fossem fiscalizados pelo comando

revolucionário.434

Por volta do mesmo período, em alguns dos Estados que no século seguinte iriam compor a Alemanha, passa a ser um direito das partes serem cientificadas acerca das razões de decidir. Entretanto, diferente do caráter ideológico que permeava o dever de motivar na França, a determinação alemã tinha nítido viés endoprocessual de direito concernente apenas

às partes.435

430 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 45-60. 431 GOMES FILHO, 2001, p. 50.

432GOMES FILHO, loc. cit. 433GOMES FILHO, loc. cit. 434 TARUFFO, 2006, p. 304. 435 Ibidem. p. 305

Na Itália ainda não unificada, em meados do século XVI, em alguns Estados como Florença e Piemonte, já se encontram algumas regras referentes à fundamentação das decisões, que iam de uma inicial perspectiva endoprocessual, concernente apenas às partes, até tornar-se uma perspectiva ideológica e se estender por todo o território italiano no século

XVIII.436

O dever de motivar pode ser encarado sob duas grandes óticas, que já foram comentadas brevemente durante o início deste capítulo. Cabe, então, explorar um pouco mais sobre as vertentes que compõem este princípio dentro de nosso sistema jurídico.

O Estado Democrático de Direito expressa uma concepção sobre o exercício do poder estatal, que se expressa na sua limitação constante através dos direitos e garantias fundamentais, dentro de uma estrutura em que o respeito à legalidade, a separação dos poderes e a inviolabilidade dos direitos são objetivo central da ordem jurídica

constitucional.437

A concepção então demonstrada e vigente de Estado Democrático está intimamente ligada com a tarefa de expressar e publicizar as razões de cada decisão tomada pela autoridade estatal, de modo a possibilitar a verificação de compatibilidade com o sistema

de direitos, podendo ser identificado, inclusive, como o “Estado que se justifica”.438

Nesta perspectiva, a motivação das decisões judiciais é garantia política básica da conformidade da atuação estatal, exercida pelo Poder Judiciário, com os preceitos da ordem

constitucional. A lição de Gomes Filho439 é bem aceita e completa sobre o ponto:

Dito de outra forma, no Estado de direito os poderes públicos se exercem segundo um padrão de legitimação racional e objetiva, que transfere à apreciação da comunidade uma espécie de controle democrático e difuso sobre a racionalidade ou não-arbitrariedade do poder; daí ser possível afirmar que nesse tipo de Estado os poderes não estão apenas submetidos à lei, mas também e, sobretudo, são orientados por procedimentos que satisfaçam as exigências de uma correção argumentativa.

Podemos apreender que a legitimidade por justificação demanda um grau de consenso entre a atividade estatal e a opinião da sociedade sobre os objetivos e rumos que devem ser tomados.

Em verdade, o consenso é elemento essencial da formação de qualquer estrutura social em que haja um poder soberano na forma de Estado. Porém, há que se identificar a

436TARUFFO, 2006, p. 307 437GOMES FILHO, 2001, p. 70-80.

438 BRÜGGEMANN, 1995, p. apud GOMES FILHO, 2001, p. 75. 439 GOMES FILHO, op. cit., p. 76.

diferença entre esse consenso inicial de formação, denominado "consenso social", do consenso dado através da participação cotidiana da sociedade de forma democrática nos

rumos da nação, o "consenso político".440

É no contexto do consenso político, característico do Estado Democrático, que se expõe a garantia da motivação, pois é através dela que a sociedade poderá ponderar acerca da conformidade entre a decisão e seus fundamentos com seus anseios e objetivos, albergados pela Constituição Federal.

Tendo em vista que o consenso político nos demais poderes do Estado é advindo do sufrágio popular, o que não acontece com os magistrados, a legitimidade de sua atuação deve ser provada em cada uma de suas decisões através da demonstração de racionalidade e conformidade com o ordenamento jurídico contemporâneo.

É assim que, para assegurar a legitimidade e consequente validade da motivação das suas decisões, deve o magistrado, para realizar a cognição adequada ao processo e aos anseios da contemporaneidade, manter suas decisões rentes à realidade social, através de uma

visão global do momento histórico, social, econômico e cultural em torno da demanda.441

O dever de fundamentar também está intimamente ligado ao Princípio da Legalidade, visto que só através da motivação é possível verificar o julgamento através do uso das leis vigentes e conferir acerca do processo interpretativo perpetrado pelo magistrado para chegar às conclusões presentes na decisão, explicitando os elementos de valoração dados pelo juiz.442

São essas as linhas gerais que fazem da motivação das decisões judiciais uma garantia política do Estado democrático, assegurando o controle do Poder Judiciário, a harmonia entre os Poderes, a legalidade das decisões, além da certeza e estabilidade do direito.

Em sua perspectiva processual, a motivação é requisito formal de todo e qualquer provimento judicial de cunho decisório, relacionada diretamente com os direitos das partes internas ao processo e a paridade de armas.

Um de seus objetivos mais intuitivos é a garantia da clareza, imparcialidade e conteúdo real da decisão judicial, permitindo que seja bem delimitada a extensão e objeto da coisa julgada, como também a fiel execução, espontânea ou forçada, do mandamento

440 WEBER, Marx. Economia e Sociedade.Vol. 2. Brasília: UNB, 2004, p. 14-67. 441WATANABE, Kazuo. Da cognição no Processo Civil. São Paulo: DPJ, 2005, p. 46 442TARUFFO, 2006, p. 351.

impresso no provimento, ou até a possibilidade de recurso contra a decisão atacada em respeito ao princípio do duplo grau de jurisdição.

É com a devida fundamentação que se pode aferir a real atuação do princípio do contraditório no processo, visto que poderá ser explicitada a análise das versões fáticas e jurídicas apresentadas pelas partes pelo magistrado, uma vez que a consideração real das razões das partes é elemento nuclear do contraditório substantivo. Sobre o tema, a visão

apontada por Ramires443:

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, através de voto proferido pelo Min. Gilmar Mendes no âmbito do Mandado de Segurança 24268/MG, já registrou que o dever de fundamentar as decisões deriva diretamente da obrigação de considerar as razões apresentadas, conforme já havia reconhecido o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (BVerfGE 11, 218). Na ocasião, o Min. Gilmar discorreu sobre a importância e a dimensão do princípio do contraditório a partir de uma análise da jurisprudência do Bendesverfassunggericht (BVerfGE 70, 288-293) sobre a chamada “pretensão à tutela jurídica” (Anspruchaufrechtliches Gehör), apontado que a garantia em questão (que no Brasil corresponde àquela insculpida no artigo 5º, LV, da CF) contém os seguintes direitos: a) direito de informação (Rechtauf Information), que obriga o julgador a informar sobre os atos praticados e sobre os elementos do processo; b) direito de manifestação (Rechtauf Äusserung), que assegura à parte que se manifeste sobre os elementos constantes do processo; c)direito de ver seus argumentos considerados (rechtauf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo para contemplar as razões apresentadas. O voto faz lembrar que a obrigação de conferir atenção ao direito das partes “não envolve apenas o dever de tomar conhecimento, como também o de considerar séria e detidamente, as razões apresentadas.

É também através da motivação que pode ser verificada a objetividade do julgamento realizado pelo magistrado, aferindo a existência da independência e imparcialidade do juiz perante os litigantes e a causa, garantindo que a decisão está balizada

pelo ordenamento jurídico.444

Mostra-se com esses apontamentos que o sistema jurídico baseado na lei escrita foi cunhado com vistas a garantir a segurança jurídica e a possibilidade de controle da atividade jurisdicional através de postulados de seguimento obrigatório pelo juiz. No entanto, através de um olhar mais profundo, possibilitado pelas evoluções no estudo da hermenêutica, que mostram o caráter criativo da atividade de interpretar, mostram esse sistema como falho para a garantia do que estava a buscar.

As constatações, contudo, vão mais além e apontam, que, em verdade, os objetivos de certeza e segurança buscados pelo meio de barrar a interpretação são ilusórios e inalcançáveis. É neste sentido que parece que a defesa de um sistema de precedentes por evitar a interpretação parece contraditório, em termos hermenêuticos, pois onde anteriormente

443RAMIRES, 2010, p. 43. 444GOMES FILHO, 2001, p. 98.

se via interpretada a norma legal estará, inevitavelmente, frise-se novamente, a se interpretar o precedente judicial, gerando incertezas ainda maiores.

As evoluções do constitucionalismo contemporâneo fazem com que a aplicação do direito sofra influências decisivas de outras fontes que não apenas o antigo modelo de norma regra que dita conduta, mas de princípios jurídicos de textura normativa aberta, da jurisprudência, da doutrina jurídica e até de máximas da experiência ou do senso comum. Em tal cenário que se mostra tão aberto aos eventuais excessos do julgador, a motivação das decisões é a garantia que reside entre a medida da hermenêutica e a segurança jurídica pautada no respeito ao sistema jurídico.