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3.2. O precedente e sua sistemática no common law

3.2.4 A superação do precedente (overruling)

A superação ou sobreposição do precedente é denominada na doutrina de overruling e consiste em uma visão de que os precedentes são uma doutrina e uma regra geral a se seguir, mas que não significa que os precedentes vão se manter de forma inflexível. Essa regra é válida principalmente para as cortes superiores, que podem de forma mais livre rever suas decisões anteriores, criando novos precedentes sobre determinados temas. Desse modo, já ficou fixado pela Suprema Corte norte-americana:

A doutrina do stare decisis é de fundamental importância para a “legalidade material” (rule of law), (mas) nossos precedentes não são sacrossantos. Já sobrepusemos decisões anteriores nas quais a necessidade e a propriedade de fazê-lo foram definidas.343

Tal medida é reservada, todavia, aos casos mais extremos em que se faça realmente necessária a retirada do precedente do sistema. Caso utilizada corretamente a técnica de superação, assim como a distinção, promove o stare decisis e a força dos precedentes ao invés de enfraquecê-lo, pois permite a evolução e atualização do sistema. Na maioria das vezes, as cortes optam pela utilização da técnica do distinguish, considerando as

diferenças fáticas de caso, afastando o precedente anterior e emitindo novo juízo.344

Sobre a questão relativa à superação de um precedente e a garantia de previsibilidade, se faz necessário trazer à tona lição de Ravi Peixoto, ancorada na doutrina de

Jeremy Waldron345:

Para além da vinculação de precedentes, a manutenção de um entendimento jurisprudencial estabelece uma nova camada na concretização do princípio da segurança jurídica. Afirma Jeremy Waldron que não se trata apenas de garantir previsibilidade pela vinculação, mas sim de “conceder tempo aos jurisdicionados para se acostumar com a norma jurisdicional e a internalizar como base para a sua tomada de decisões”. Afinal, um elemento essencial no Estado de Direito é a estabilidade relativa do direito e para que um precedente possa servir como base para a tomada de decisões de longo prazo, ele deve permanecer em vigor por um certo período de tempo.

343 Ring v. Arizona, 536 U.S 584,587 (2001) apud FINE, 2011, p. 84. 344 Ring v. Arizona, 536 U.S 584,587 (2001) apud FINE, loc. cit.

Predomina o entendimento de que surgido o novo precedente, surgirão dois comandos dele emanados. O primeiro relativo à nova ratio decidendi que regerá os casos e o segundo relativo ao efeito do stare decisis que garantirá a eficácia do mesmo no ordenamento de forma que apenas a corte emissora ou outra superior a ela poderá promover nova superação. O caso de sua não aplicação por um juízo de instância menor pode se dar no caso da chamada superação antecipada (anticipatory overruling) ou poderá ser identificada como

um vício de fundamentação que pode levar à nulidade do julgado pelo error in judicando.346

A superação antecipada (anticipatory overruling) consiste em uma técnica aplicada por uma corte de instância inferior. A corte emissora antecipa a superação do precedente que já foi anteriormente sinalizado pela corte superior competente para a superação, negando sua aplicação no caso concreto sob a alegação de que logo que surja a

oportunidade, a corte superior promoverá a superação formal.347

Tal técnica parece ter sido abrangida pela sistemática da fundamentação com precedentes prevista no CPC de 2015, visto que no art. 489, parágrafo 1º, inciso VI, faz referência direta à possibilidade de “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte sem demonstrar a existência de (...) superação de entendimento”. Dessa forma, o juízo inferior poderia identificar, por exemplo, a superação do precedente através de outras decisões da corte superior que demonstrem a superação implícita do precedente, principalmente considerando que no Brasil ainda não há uma cultura de utilização expressa da superação no conteúdo decisório. Nesses casos, faz-se cabível a utilização da Reclamação Constitucional para preservação da autoridade das decisões, de forma a levar diretamente à corte superior a oportunidade para decisão final acerca da superação ou não do precedente.

A antecipação de superação, assim, pode consistir em um instrumento de explicitação dessa quando a corte superior tiver se utilizado da superação implícita ou furtiva (stealth overruling) do precedente, contribuindo para o aclaramento e a segurança jurídica, sendo possibilitada a reforma da corte superior de reformar a decisão, caso entenda que o precedente persiste.

Não há que se confundir, contudo, a técnica de superação antecipada, que exige o ônus argumentativo relativo à demonstração do fluxo jurisprudencial em torno de uma superação iminente, com a atitude de ignorar ou negar efeito vinculante ao precedente. Uma das técnicas possíveis ao juízo inferior para apresentar inconsistências no precedente que

346 PEIXOTO, 2018, p. 203 347SUMMERS, 1997, p. 398-399.

demandem sua superação é a disapprove precedente, em que fundamenta seu entendimento a contrario sensu, mas se curva à autoridade do precedente. Conforme prevista no próprio Enunciado nº. 172 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) que assevera não

ser contraditória a decisão que aplica o precedente com ressalva de entendimento.348

Tal aspecto apresenta utilidade em dois pontos principais, o primeiro de possibilitar ao vencido levar a causa à instância superior, buscando a superação do precedente utilizando-se do argumento do magistrado de piso e, segundo, servir de termômetro acerca da aplicação prática do precedente (workability) para que o tribunal superior avalia a necessidade de superação.

A superação do precedente pode se mostrar justificada, na concepção de Robert S. Summers, em três grandes tipos: 1) quando a inovação tecnológica ou melhorias sociais de caráter geral tornam os precedentes obsoletos; 2) quando as mudanças sociais e o crescimento moral de um sociedade indicam a necessidade de superação do precedente para a compatibilização direito com o fenômeno social subjacente; 3) quando a experiência com precedente mostra erros substanciais e de concepção em sua formação que indicam a

necessidade de sua superação.349

A Suprema Corte dos Estados Unidos, em seus próprios julgados, os chamados precedentes sobre precedentes, tem indicado alguns dos fatores que os juízes daquela corte consideram mais relevantes no momento em que se cogita a opção pelo overruling:

1. As regras mostram-se impossíveis de aplicar na prática.

2. A regra está sujeita a um tipo de condicionante que trará uma dificuldade ou iniqüidade se for revogada.

3. Um princípio legal sofreu tantas mudanças que transformou a regra antiga em nada além de uma “reminiscência de uma doutrina abandonada”.

4. Os fatos mudaram tanto, ou passaram a ser interpretados de forma tão diferente, que a norma original perdeu uma aplicação ou justificativa significativa.350

Portanto, percebemos que a distinção é técnica diretamente ligada à manutenção da integridade e coerência do ordenamento jurídico em sua perspectiva interna e na sua relação com as mudanças que ocorrem na sociedade, as quais demandam revisão e compatibilização da normatização jurisprudencial com as práticas sociais.

A preocupação com a alteração dos precedentes e seus impactos na segurança jurídica e previsibilidade das relações sociais, em países que seguem a tradição jurídica insular, é tão presente que as cortes construíram a prática chamada de superação prospectiva (prospective overruling), similar à técnica de modulação dos efeitos da declaração de

348PEIXOTO, 2018, p. 205. 349 SUMMERS, 1997, p. 396-397.

inconstitucionalidade em nosso ordenamento351, em que a nova decisão só será aplicada ao caso em exame e aos casos futuros que surjam após a publicação do novo precedente,

persistindo a normatividade do precedente superado para os casos anteriores.352

A superação prospectiva, entretanto, não é aplicável para todos os casos, sendo a regra sua aplicação retroativa, se fazendo necessário a presença um conjunto de fatores para sua aplicação prospectiva, que foram explicitados de forma clara em um precedente paradigmático da Corte Distrital de Nova York (Ceres Partners v. Gel Assocs., 714 f. Supp.

679 – S.D.N.Y, 1989)353:

1 the holding must establish a new principle of law, either by overruling clear past precedente on which litigants may have relied or by deciding na issue of first impression whose resolution was not clearly foreshadowed;

2 the merits and demerits in each case must be weighed by looking to the history of the rule in dispute, its purpose and effect, and wheter retroactive operation will further or retard the rule’s operation;

3 retrospective application must create the risk of producing substantially inequitable results.354

Estando um tanto quanto suficiente o esboço feito do sistema de precedentes nas experiências do common law inglês e norte-americano para as finalidades do presente estudo, parte-se então para o próximo tópico, em que esperamos tirar conclusões gerais sobre os precedentes e sua relação direta com a ideia de igualdade perante a lei, previsibilidade e segurança jurídica.