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3. DA EFETIVIDADE NORMAS DO ARTIGO 170, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL,

3.1. A SOCIEDADE ECONÔMICA: DA SOCIEDADE DE PRODUTORES À

dessa sociedade de consumo.

Com relação à sociedade de consumo, importante esclarecermos, nesta sede preliminar, que nosso trabalho será desenvolvido com base em uma visão do consumidor coletivamente considerado, e não em uma visão do consumidor indivíduo, singularmente considerado. Estamos a tratar aqui de temas afetos ao Direito Econômico, em especial à própria norma mestra da ordem econômica brasileira (art. 170, CRFB), e o processo de consumo abordado em nosso estudo está atrelado ao princípio da defesa do consumidor no ambiente econômico – artigo 170, inciso V, da Constituição Federal, e não especificamente aos direitos e deveres do consumidor na relação de consumo (Lei Federal n. 8078/90).

Essas anotações possibilitarão, ao final, a constatação de que a norma do artigo 170, da Constituição Federal, ao ser visualizada no contexto da sociedade de consumo, enfrenta um déficit de efetividade: a comunicação social manifestada nessa sociedade impede a concretização daqueles preceitos normativos, pois conduz as ações dos agentes econômicos de maneira a não os ponderar nas relações privadas, construindo, assim, um processo econômico cujo objetivo único é assegurar um movimento circular de consumo e produção (retroalimentação).

3.1. A SOCIEDADE ECONÔMICA: DA SOCIEDADE DE PRODUTORES À SOCIEDADE DE CONSUMO

sucessão de substanciais alterações no corpo social e, por conseguinte, no conceito de sociedade. Com a consolidação dos valores destas revoluções liberais – e o surgimento de uma primeira geração de direitos fundamentais – a sociedade civil da Idade Média transformou-se em sociedade burguesa (civitas economica). Já no século XIX, tais alterações mostram-se pujantes e o aumento da complexidade social, advinda da crescente diferenciação entre os diversos subsistemas que passam a configurar a sociedade (político, ético, econômico, cultural), exige conceitos cada vez mais abstratos, isto é, operacionais, para possibilitar a própria concepção social.155

A grande transformação da sociedade econômica veio, sem dúvida, com a revolução industrial, que a converteu de uma sociedade agrária para uma sociedade de produtores, calcada especialmente nos valores de acumulação de capital e na apropriação da força de trabalho do trabalhador.

Não podemos ignorar que essa mudança na sociedade econômica foi impulsionada pelos valores liberais predominantes à época. Com efeito e conforme já visto quando do estudo da formação da ordem econômica, o afastamento da ingerência estatal da vida humana e, portanto, do fenômeno econômico, resultou no surgimento de um mercado sem freios, com a exacerbação da liberdade de iniciativa e da propriedade. Nesse panorama e em conjunto com os avanços tecnológicos e de maquinário que possibilitaram a guinada industrial na história, fácil mostrava-se o desenvolvimento e o crescimento de uma atividade econômica baseada na exploração indiscriminada da mão de obra, com o intuito do lucro. Produzir era o corolário lógico dos valores econômicos que imperavam então.

Sem olvidar todas as questões humanas que caminham paralelamente à revolução industrial – e que já foram devidamente analisadas no Capítulo 2 –, é certo que as transformações operadas a partir de então propiciaram o surgimento de uma nova forma de comunicação social, alterando as bases da sociedade econômica para transformá-la em uma sociedade de produtores.

Calcado na busca pela segurança a longo prazo – o que afastava, de certa maneira, a ânsia pelo consumo imediato de bens, propiciando o acúmulo de propriedades –, o modelo social da sociedade de produtores vigorou até meados do século XX156, quando, a partir da década de 1970, ele começa a declinar, dando lugar a uma forma de comunicação social que

155 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. 3. Ed., São Paulo : Atlas, 2009, p. 25. 156 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro :

associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades, mas sim a um volume e a uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que, por seu turno, implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-la.157 Surge a chamada sociedade de consumo, caracterizada por consumir para aumentar sua capacidade de consumo, e por produzir para aumentar sua capacidade de produção.

(...) a passagem do século XVIII para o XIX foi dominada pela visão de homo

politicus, o homem natural e gregário que deu nascimento ao Estado-Nação; a do

século XIX para o XX pelo confronto capital e trabalho e a visão do homo faber, na expressão famosa de Hannah Arendt, para designar a pessoa como aquela que faz, fabrica, produz, um homem de vita activa (não contemplativa, como na Idade Média), um animal laborans, o homem trabalhador e comerciante; e que o atual

momento de passagem do século XX para o XXI é dominado pela visão do homo economicus, visão conhecida desde Adam Smith, como aquele que atua no mercado, que consome, que se define pelos produtos e serviços que tem acesso, pela informação e conhecimento que detêm, (...). E mais, nestes tempos pós-modernos, é um homem cultural, que caracteriza-se por suas influências e identidades culturais: um homo economicus et culturalis.158 – negritamos

Os processos globalizantes, por seu turno, impulsionados a partir da segunda metade do século XX com o desenvolvimento de meios que vêm propiciando a difusão cada vez mais rápida de informações, contribuíram para localizar costumes e valores inerentes às diferentes sociedades ocidentais, ao mesmo tempo em que os valores consumistas passaram a globalizar- se.

E o acesso fácil a algumas fontes de informação, o desenvolvimento dos meios publicitários, a rapidez na difusão de notícias, dentre outros fatores, provocaram o arrastamento de grandes massas de sujeitos econômicos, por imitação e até por inconsciente obediência, aos que têm prestígio ou fazem difundir as notícias. Se o comportamento dos sujeitos dominantes não é racional, também não o será o comportamento dos sujeitos dominados.159

Essa constatação vem de encontro com a doutrina de McCracken, festejado estudioso dos processos de consumo, para quem há um verdadeiro movimento de “caça e perseguição” na sociedade de consumo, caracterizado pela apropriação ou imitação de símbolos, estilo de

157 Id. Ibid., p. 44.

158 MARQUES, Claudia Lima. MIRAGEM, Bruno. LIXINSKI, Lucas. Desenvolvimento e Consumo – Bases

para uma Análise da Proteção do Consumidor como Direito Humano. In: PIOVESAN, Flávia. SOARES, Inês Virgínia Prado. Direito ao Desenvolvimento. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 213-214.

159 PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. 2. Ed., São Paulo : Revista

vida e bens materiais pelos estratos inferiores, ao passo que a elite segue diferenciando-se em busca de novos símbolos, estilos de vida e bens materiais.160 É dizer: a diferenciação e a imitação tornam circular a comunicação na sociedade de consumo. Essa circularidade é uma das principais características da sociedade de consumo e é, também, um dos fatores que mais traz implicações na questão da efetividade da norma jurídica.

Como corolários dessa nova forma de comunicação social – a da sociedade de consumo –, temos o aumento da impessoalidade e da descartabilidade nas relações econômicas e, na esteira do trazido supra, a construção de um processo econômico circular, baseado em uma singular forma de manifestação do poder econômico (que será objeto de análise detida adiante).

No que tange à impessoalidade, analisando-a sob um viés mais sociológico do que jurídico, ela traz consigo consideráveis efeitos. Produtos confeccionados com exclusividade perderam a importância (enfraquecimento/esquecimento da figura do produtor) e perderam público, o qual migrou para as grandes empresas de produção em massa, que produzem apenas para aumentar a produção e estimulam o consumo com o intuito de perpetuar a cadeia consumidora. A qualidade dos itens vendidos despencou, o que não deixa de ser reflexo dos valores da descartabilidade e da retroalimentação do sistema de consumo, ínsitos a essa forma de comunicação social.

A atividade do agente econômico que trabalha com a arte do ofício, produzindo itens únicos, está em extinção, pois ou não encontra espaço em meio ao comércio das grandes corporações, ou transformou-se em símbolo do luxo e da riqueza (como ocorre com determinadas marcas internacionais de itens de couro e de joias). Mesmo neste último caso, a impessoalidade também acaba se manifestando, ainda que de forma mediata: seguindo o raciocínio descrito por McCraken, citado acima, a partir do momento em que os estratos inferiores têm acesso à existência destes produtos – por meio da difusão das informações –, passam a almejá-los e eles perdem a característica que os distinguia, pois passam a ser produzidos em massa, com qualidade e preços inferiores aos originais, o que traz à tona a impessoalidade.

Com relação à descartabilidade, não apenas objetos palpáveis de consumo, mas também itens imateriais, como os sentimentos, passaram a ser facilmente substituíveis à luz da lógica do consumismo. Relacionamentos e vínculos fraternos fugazes e momentâneos são

comuns na atualidade, o que deu ensejo, inclusive, ao cunhar da expressão “relação de bolso”, como uma forma de fazer referência ao tratamento dado às relações afetivas na contemporaneidade, isto é, são guardadas no bolso, para que o indivíduo possa lançar mão delas quando lhe convier.161

A insatisfação constante no ser, típica dessa sociedade econômica, faz com que o ato de consumir e o ato de produzir visem apenas ao aumento do consumo e da produção, respectivamente. O indivíduo tem a necessidade de, frequentemente, atualizar seu arsenal de propriedades e de possibilidades para que possa se sentir aceito no núcleo dentro do qual quer estar inserido. E duas das formas mais bem sucedidas de perpetuar a insatisfação e incentivar a descartabilidade dos bens de consumo é ou desvalorizar o próprio bem de consumo tão logo seja ele transpassado ao patrimônio do consumidor, ou colocar à disposição do consumo bens que originam mais consumo.

A sociedade de consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a não- satisfação de seus membros (e assim, em seus próprios termos, a infelicidade deles). O método explícito de atingir tal efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido promovidos no universo dos desejos dos consumidores. Mas outra forma de fazer o mesmo, e com maior eficácia, permanece quase à sombra e dificilmente é trazida às luzes da ribalta, a não ser por jornalistas investigativos perspicazes: satisfazendo cada necessidade/desejo/vontade de tal maneira que eles só podem dar origem a necessidades/desejos/vontades ainda mais novos. O que começa como um esforço para satisfazer uma necessidade deve se transformar em compulsão ou vício. E assim ocorre, desde que o impulso para buscar soluções de problemas e alívio para dores e ansiedades nas lojas, e apenas nelas, continue sendo um aspecto do comportamento não apenas destinado, mas encorajado com avidez, a se condensar num hábito ou estratégia sem alternativa aparente.162

Para ilustrar, analisemos a questão com base no exemplo dos aparelhos de telefonia móvel (sem olvidar a miríade de objetos que poderiam ser utilizados aqui), cujo valor de mercado permite sua aquisição por diversos estratos da população, além de ser responsável pelo comprometimento de 7,3% (sete vírgula três por cento) da renda mensal do cliente das empresas de telefonia móvel163, o que demonstra sua importância na vida social do cidadão. É fato certo que o lançamento de um telefone celular no mercado, especialmente dos

161 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro : Zahar, 2004,

p. 36.

162 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro :

Zahar, 2008, p. 64.

163 GOMES, Helton Simões. Brasileiro é o 10º em gastos com celular. Folha de S. Paulo. Caderno Mercado, p.

chamados smartphones, desperta imediato interesse na grande maioria dos consumidores e eleva, em um curto espaço de tempo, o número de vendas daquele aparelho. E, no que diz respeito especificamente aos smartphones, sabemos que um dos principais chamativos para sua aquisição é o rol de suas funcionalidades e de seus “aplicativos”, que permitem ao usuário o acesso rápido e ágil não apenas ao correio eletrônico e às redes sociais, como também a informações referentes até mesmo ao rastreamento de pacotes remetidos por correio.

Não obstante o custo envolvendo a criação e a fabricação de um aparelho com tamanha tecnologia, pouco tempo depois de sua aquisição pelo mercado consumidor, já lhe é ofertado outro aparelho, da mesma ou de outra marca, com dispositivos mais atraentes e design diferenciado.

O que temos nesse pequeno relato é justamente a realidade da sociedade de consumo: a promoção de venda de um bem a partir das possibilidades de consumo que suas funcionalidades trarão (promoção de consumo para aumento do consumo) e a imediata desvalorização de suas funções tão logo este mesmo bem seja colocado à disposição do consumidor, criando o desejo de consumir novamente.

Outro exemplo muito interessante é o dos aparelhos de televisão. Dada a grande alteração tecnológica que os televisores vêm sofrendo desde o final do século XX e início deste século XXI, a troca constante de aparelhos tornou-se algo comum, especialmente após o advento da chamada “TV digital”. Conforme dados de recente estudo feito nos Estados Unidos e divulgado pelo jornal New York Times, as televisões e os monitores que foram substituídos por aparelhos mais modernos transformaram-se e vem se transformando em resíduos sólidos sem qualquer perspectiva de aproveitamento ou reciclagem, especialmente os aparelhos de tela plana, que usam luz florescente com alto teor de mercúrio tóxico. Caberia às empresas, nesse cenário, a adoção de programas de reciclagem dos produtos obsoletos e, de fato, vinte e dois Estados norte-americanos possuem legislação nesse sentido. No entanto, dada à ausência de fiscalização, as próprias fabricantes simulam, por meio de “contratos de gaveta”, transações comerciais envolvendo a reciclagem dos aparelhos descartados e continuam a estimular a troca periódica de aparelhos, sob o fundamento de que há uma “nova tecnologia” disponível (vide o caso das televisões “3D”, v.g.).164

A despeito de fruir imensa tutela pelo sistema jurídico brasileiro, o consumidor (coletivamente considerado, frise-se), nesse panorama, passa a ser uma marionete: pelo fato

164 URBINA, Ian. Unwanted Electronic Gear Rising in Toxic Piles. New York Times. New York, p. A1,

de pertencer a essa sociedade de consumo, ele é levado a adquirir bens talvez supérfluos. Aliás, abrindo-se um aparte para a análise da situação individual do consumidor na sociedade de consumo, estas notas sociais – especialmente as duas formas acima citadas utilizadas para impulsionar a descartabilidade de produtos e serviços –, permite-nos visualizar condutas que ofendem diretamente os direitos do consumidor, ainda que praticadas sob o manto de uma euforia consumista.

Isso porque ao se colocar no mercado de consumo bens que dão origem a mais consumo está-se, em verdade, tolhendo a liberdade de escolha do consumidor (art. 6º, II, Lei federal n. 8.078/90), em uma prática que se assemelha, e muito, com a nefasta “venda casada” (art. 39, I, Lei Federal 8.078/90). O consumidor, inserido na ótica de consumo, adquire determinado bem ou serviço, para que possa, com sua propriedade, ter acesso a mais bens e serviços. Volvendo ao exemplo dos smartphones, é o caso dos “aplicativos” virtuais, comercializados por meio do próprio aparelho de telefonia móvel e acessíveis apenas por meio daquele modelo de celular; com isso, a inserção do indivíduo em determinado círculo social oriundo do uso daquele aplicativo (como determinados programas de postagem virtual de fotografias, que criam redes sociais de contato e troca de experiências individuais) depende da prévia aquisição daquele específico aparelho celular.

Ainda, a partir do momento em que o agente econômico desvaloriza o seu produto ou serviço logo após tê-lo disponibilizado para consumo – isso com o intuito de promover comercialmente uma nova versão daquele mesmo produto ou serviço –, ele está afrontando os direitos básicos do consumidor à informação e à transparência e boa-fé (art. 6º, II e III, Lei Federal n. 8.078/90), pois essa conduta demonstra que o consumidor, em um momento anterior, foi levado a erro ao adquirir um produto ou serviço sem saber que, em pouco tempo, poderia ter acesso à sua nova versão.

Essa breve análise da posição do agente econômico na sociedade de consumo será retomada ao final, porém sob um aspecto mais relacionado à efetividade dos princípios da ordem econômica brasileira nas relações horizontais (agente econômico – agente econômico). O que importa, nesse momento, é demonstrar que, embora não integralmente, nossa sociedade econômica atual é uma sociedade de consumo, e que práticas contrárias à ordem econômica e ao seu regramento infraconstitucional (do qual a Lei Federal n. 8.078/90 é exemplo) vêm sendo levadas a cabo amparadas que estão nessa comunicação social, cujos valores estão permeados por intenso individualismo, de modo que a figura do outrem – seja

como agente econômico, seja como ser humano – também passa a ser pensada de acordo com a ótica da impessoalidade e do descarte.

Trazendo o debate para o panorama pátrio e interpretando os bens materiais como instrumentos de concretização da comunicação social de consumo165, não restam dúvidas de que a sociedade brasileira é uma sociedade de consumo, especialmente quando levamos em consideração estudos recentes, divulgados pelos meios de comunicação, que demonstram que a classe média brasileira movimentaria, no ano de 2012, cerca de um trilhão de reais. Para que tenhamos noção prática do que esse valor significa, caso esse contingente de pessoas formassem um país isolado, ocuparia o décimo oitavo lugar no ranking dos vinte países com maior consumo no mundo (“G20 do consumo”), segundo os dados do Banco Mundial.166

Outro dado interessante é aquele que traz a informação de que 42% (quarenta e dois por cento) dos menores com idade entre dez e quatorze anos têm telefone celular167, demonstrando a penetração dos valores consumistas em estratos cada vez mais jovens da sociedade.

Eis apenas duas das características sociológicas da sociedade de consumo – a impessoalidade e a descartabilidade. Além delas, mencionamos supra a existência de outro corolário da comunicação social de consumo, que apresenta maior e substancial relevo para nosso estudo, dadas as implicações diretas que traz à efetividade das normas jurídicas (in

casu, do conteúdo normativo do artigo 170, da Constituição Federal): trata-se da forma pela

qual o poder, especificamente, o poder econômico passa a se manifestar nesse cenário. É sobre o poder econômico na sociedade de consumo que nos dedicaremos doravante.

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