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A sociologia à escala individual e os pentecostais no ensino superior

2. BERNARD LAHIRE E OS ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.5. A sociologia à escala individual e os pentecostais no ensino superior

Atualmente pesquisadores têm utilizado a sociologia à escala individual para analisar diversas realidades sociais. Nogueira (2004), por exemplo, analisou as múltiplas disposições presentes no processo de escolha do curso superior, Oliveira (2013) estudou as disposições que atuam nos indivíduos comuns que contribuem com práticas jornalísticas para um jornal local e Lima Junior (2013) analisou a experiência de jovens que abandonaram o curso superior de Física, sobretudo, as disposições que contribuíram para esse abandono.

Seguindo o padrão teórico-metodológico dessas pesquisas, o presente trabalho utiliza a sociologia à escala individual para analisar a experiência de evangélicos pentecostais que estão inseridos, como estudantes, na universidade. Devido à configuração teológica e ética das igrejas pentecostais brasileiras, entende-se que tais pessoas foram doutrinadas em um contexto religioso carismático-ascético e que, por isso, podem ter desenvolvido, em alguma medida, disposições para crer e para agir ligadas à religiosidade pentecostal. Todavia, em certo momento da trajetória biográfica destes evangélicos, pela ambição do conhecimento ou pela necessidade de uma profissão, eles foram para a universidade e lá encontraram um contexto cuja configuração era, em alguns pontos, bastante divergente do que até então tinha norteado suas crenças e práticas.

O ingresso no curso superior é um dos momentos da vida do indivíduo que Lahire (2004) classifica como “ruptura biográfica”, pois normalmente envolve um processo de mudança significativa na trajetória do indivíduo e, como tal, pode contribuir significativamente para que algumas disposições entrem em crise ou que saiam do estado de vigília e sejam reativadas. Segundo Lahire (2004, p. 43):

a vida de um indivíduo em uma sociedade, não só fortemente marcada pela divisão do trabalho, mas pela multiplicidade dos espaços ou dos princípios de socialização concorrentes, faz com que cada indivíduo singular raramente se proteja do contato mais ou menos duradouro com pessoas situações e instituições, cujas crenças e disposições para agir não são as que ele incorporou até o momento.

Aplicando esta compreensão aos atores da nossa pesquisa, uma vez que eles não entram na universidade blindados, é possível que alguma mudança tenha acontecido em seu patrimônio disposicional a partir da experiência acadêmica.

Quando inseridos na universidade, os pentecostais transitam semanalmente em dois contextos que em muitos aspectos são (não apenas diferentes, mas) antagônicos16. Em certo sentido, a consciência deles não foi afetada pela secularização, porém, eles vivem semanalmente em um espaço altamente secularizado; enfim, nos finais de semana participam dos cultos em suas igrejas e são exortados, pelos pastores, a viver uma constante experiência de fé, mas no decorrer da semana, na universidade, escutam de seus professores um discurso científico, muitas vezes oposto à proposta religiosa.

Nesta condição, os pentecostais universitários vivem, semanalmente, em duas culturas distintas, estão envolvidos em cosmovisões antagônicas e escutam (alguns) discursos excludentes, enfrentando assim o desafio de conciliar estas duas esferas da vida em sua experiência pessoal e social.

Portanto, tentamos compreender como esses indivíduos lidam com os autores e conceitos que desafiam suas crenças religiosas, como eles participam das discussões com colegas e professores sobre assuntos em que fé e ciência se confrontam e quais são os mecanismos usados por eles na tentativa de relacionar ou dicotomizar a experiência religiosa e o conhecimento acadêmico.

16 Teoricamente, o contexto da igreja lida com dogmas, enquanto a universidade lida com o questionamento contínuo; a igreja lida com o conhecimento revelado, enquanto a universidade lida com o conhecimento como fruto da pesquisa; Na igreja, as mudanças espirituais e sociais são atribuídas à vontade de Deus; enquanto na universidade, elas são atribuídas ao ser humano, que é transformado pelo conhecimento; e outras mudanças.

Os pentecostais universitários são “atores plurais” que, após terem sido socializados no contexto eclesiástico (onde receberam e compartilharam uma cosmovisão que salienta a fé em Deus, os milagres, a pós-existência da alma e o monopólio da verdade absoluta), entraram no contexto acadêmico, que privilegia o método científico como meio mais confiável na busca pela “verdade” (ou “verdades”). Enquanto a religião evangélica enfatiza uma verdade absoluta que desce do céu e impõe regras de fé e prática ao ser humano, a universidade destaca o indivíduo como aquele que, através dos métodos científicos, consegue descobrir os “mistérios” que antes eram atribuídos aos deuses.

Em resumo, os pentecostais universitários participam de dois contextos bastante distintos, um em que Deus é evocado como Criador soberano e outro no qual ele é concebido, muitas vezes, como uma mera criação humana. Tratando sobre as dificuldades enfrentadas pelos universitários evangélicos, Pearcey (2006, p. 68) compartilha sua própria experiência:

Muitos cristãos que freqüentam universidades seculares podem contar histórias horripilantes sobre professores darwinistas que ridicularizam os alunos porque crêem em Cristo. [...] nas ciências humanas e ciências sociais a idéia de verdade objetiva há muito ficou obsoleta, e o subjetivismo domina na forma de pós- modernismo, multiculturalismo, desconstrutivismo e justeza política. Dizem-nos que a verdade é relativa a comunidades interpretativas particulares, e que as afirmações do conhecimento são, na melhor das hipóteses, nada mais que jogos de poder. Quando eu era estudante universitária, o desafio mais difícil para minha fé recentemente encontrada ocorreu em uma aula de sociologia: a suposição do relativismo era tão influenciadora que foi difícil manter esperança na simples possibilidade da verdade objetiva, sem falar na crença de que só o cristianismo era verdade.

O pentecostal na universidade está longe das pessoas e dos símbolos de fé que legitimam e confirmam sua cosmovisão religiosa. O profeta do templo é substituído pelo professor da academia, a Bíblia é substituída pelos vários livros e teóricos, a fé é substituída pela dúvida e o fiel passivo se transforma em um pesquisador ativo em busca do conhecimento, discordando das correntes teóricas que não satisfazem suas exigências teóricas e metodológicas.

Segundo Lahire (2005), uma vez que as disposições para crer (crenças) estão constituídas, elas são mais ou menos confirmadas pela experiência corrente e sustentadas pelas múltiplas instituições. No caso dos pentecostais no curso de História, algumas de suas crenças são desafiadas e, possivelmente, novas disposições são geradas no indivíduo, contrapondo-se às disposições geradas no contexto religioso. Portanto, no decorrer do

trabalho analisaremos como se dá o processo de estruturação das disposições incorporadas no indivíduo que está em contato com a igreja evangélica e com a universidade, examinando a força com que estas disposições são interiorizadas e a capacidade que elas têm de transcender as “barreiras” que delimitam e ratificam seu campo típico de atuação.

Diante da condição de pluralidade desses indivíduos, duas questões levantadas por Lahire (2005, p. 17) são propostas em nossa pesquisa. Primeiro: “Como é que as múltiplas disposições incorporadas, que não formam necessariamente um “sistema” coerente e harmonioso, se organizam ou se articulam? e segundo: será que elas [as disposições] podem ser destruídas por um trabalho sistemático de contra-socialização?”

O objetivo é analisar como os universitários pentecostais conciliam suas experiências de fé religiosa com a perspectiva científica da universidade, observando os mecanismos usados por eles para aproximar e/ou dicotomizar as duas esferas de conhecimento nos dois contextos sociais em questão. Partindo da possibilidade de tais atores terem desenvolvido nos dois contextos disposições incompatíveis, busca-se entender por que e como eles utilizam os métodos de suspensão/ação ou de inibição/ativação de disposições na transição entre igreja e universidade, ou de que maneira (se acontece) algumas disposições incorporadas são transferidas de um contexto para outro.

Nesse ponto, evocamos a discussão feita por Lahire sobre a generalidade e transferibilidade das disposições. Se, por um lado, ele rejeita a ideia de que pela observação da ação do indivíduo em um único contexto podemos sempre detectar disposições gerais, por outro, ele não despreza a possibilidade de que algumas disposições possam ser transferíveis de uma situação para outra (LAHIRE, 2005, p. 27).

Nesta perspectiva, observamos se (e de que maneira) as disposições incorporadas na igreja chegam à universidade, através do (possível) discurso evangelístico, das (possíveis) reuniões para estudo bíblico, de (possíveis) discussões com professores e colegas de classe, etc.; e, por outro lado, se (e de que maneira) as disposições incorporadas na universidade alcançam o terreno da fé, através de tentativas científicas para respaldar afirmações de fé, de questionamentos sobre a verdade absoluta e outras mudanças de perspectiva em relação à fé e prática religiosa.

Em resumo, nosso trabalho está focado em três partes: 1) a gênese das disposições no contexto religioso; 2) a gênese das disposições do contexto acadêmico; e 3) a relação entre ambas (principalmente as disposições que são antagônicas). Contudo, embora nossa ênfase

esteja principalmente nesses dois contextos, analisaremos o universo dos atores, reconstruindo suas trajetórias de vida, na tentativa de compreender, de forma mais profunda, os esquemas disposicionais dos pentecostais universitários. Segundo Lahire (2005, p. 27):

raros são os trabalhos sociológicos que, de facto, colocaram como objectivo a comparação das práticas de um mesmo indivíduo (e não globalmente de um grupo de indivíduos) em esferas de actividades diferentes, universos sociais diferentes, tipos de interacção diferentes. Estudando os indivíduos em cenários particulares, no quadro de um só domínio de práticas [...] os sociólogos apressam-se muitas vezes, de maneira errada, a deduzir, da análise dos comportamentos observados nestes cenários, disposições gerais, habitus, visões do mundo ou relações gerais com o mundo.

Portanto, tentando fugir de tais generalizações, o presente trabalho analisa como as disposições geradas nos contextos sociais da universidade e da igreja se articulam na forma de pensar e agir dos atores que participam semanalmente desses dois contextos.