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5. RETRATO SOCIOLÓGICO APLICADO AOS PENTECOSTAIS QUE ESTUDAM

5.1. Elaine Costa

5.1.2. Ingresso na universidade

O gosto de Elaine pela história começou na infância, quando sua mãe ia ao Recife comprar materiais pra os trabalhos artesanais e ela ficava encantada com as casas antigas. Isso gerou nela um grande interesse e admiração pela “história viva” do Recife e, por isso, na universidade, as matérias que ela mais gostava eram as que focavam Pernambuco e sua abordagem historiográfica predileta é a “nova história”, pela ênfase que dá ao aspecto cultural.

A despeito do gosto pela história, aos quinze anos Elaine começou a jogar vôlei profissionalmente no Sport Clube Recife (por insistência de sua mãe que, segundo ela, queria aproveitar de alguma forma a sua altura) e, a partir da inserção nesse novo contexto, pensou em fazer licenciatura ou bacharelado em educação física76, contudo, no cursinho preparatório para o vestibular ela teve um ótimo professor de história, que reascendeu nela o desejo de estudar esta disciplina.

Todavia, para ingressar no curso de história Elaine teve que enfrentar, pelo menos, mais dois desafios, além do vestibular: a pressão da família e seus medos. Quanto ao primeiro, ninguém a apoiou na escolha por história, pois toda família queria que ela fosse advogada, esta foi uma das razões pelas quais no primeiro vestibular ela tentou direito, mas foi reprovada.

Sobre o segundo desafio, antes de entrar na academia Elaine criou uma imagem muito negativa da universidade por causa de comentários de algumas pessoas da sua igreja: “eu queria história, mas eu tinha medo de mudar quando eu entrasse aqui, porque todo mundo diz ‘federal, tu vai mudar, não sei o que, e tu vai se afastar da igreja’ e mais história, o povo comentava muito”.

Na verdade, o medo de Elaine não era simplesmente em relação aos problemas intelectuais da fé, mas em relação aos seus problemas psicológicos. Como já foi dito, ela atribui a cura de sua enfermidade ao contato com a igreja e, por isso, só pensar na possibilidade de afastar-se da igreja já a deixava preocupada pela possibilidade dos problemas voltarem. Essa era sua principal preocupação quanto ao ingresso na universidade e é assim que ela descreve:

Eu já sabia das dificuldades do curso de história, meu tio falava a mim, mas no cursinho foi quando eu soube dos suicídios que aconteciam aqui, aí eu realmente acreditava que eu ia mudar quando chegasse aqui, que era coisa do outro mundo, o povo dizia que o CFCH tinha demônio, dizia trocentas coisas, aí nesse sentido eu tinha medo um pouquinho daqui, achava que era completamente outra coisa, mas mesmo assim eu quis fazer história, porque eu realmente gostava, não me via em outra coisa.

76 Apesar do ano que ela passou jogando vôlei, não se pode falar de uma disposição à prática de esporte. Embora gostasse do esporte, ela jogava apenas no desejo de conseguir uma bolsa de estudos e não tinha maiores interesses.

Esta fala resume o dilema de Elaine de querer comer o desejoso fruto do conhecimento histórico, mas correndo o risco de ser expulsa do paraíso da fé. Esta foi a outra razão pela qual no primeiro vestibular ela tentou direito (“eu já tava com medo de que eu mudasse quando chegasse aqui, porque era o que mais o pessoal falava sobre a quantidade de suicídio e na época a namorada de um amigo meu também se jogou daí, aí isso me fez ter um pouco de medo”).

Antes de ser aprovada, Elaine foi reprovada duas vezes no vestibular, porém ela entende estas reprovações como uma “ação divina” para que ela se preparasse para os desafios da academia. Em sua concepção, se tivesse sido aprovada no primeiro vestibular, os efeitos da universidade poderiam ser muito danosos sobre sua fé, mas ela vê a experiência do cursinho como um meio de amadurecimento.

Nesse período, Elaine elaborou um caderno com perguntas e respostas bíblicas para responder as objeções e críticas que ela esperava encontrar na universidade, leu alguns livros sobre apologética cristã e investiu mais em sua vida devocional. Para Elaine, esse preparo para a academia é fundamental ao jovem cristão. Respondendo à pergunta “Se você fosse aconselhar um jovem evangélico que passou no vestibular de história, o que você lhe diria?”, ela diz:

Se prepare. Antes de entrar ore bastante, procure bastante a igreja, vá fazendo um reforcinho pra quando chegar aqui já ter um extrazinho em relação à sua fé pra não ser abalada, porque que abala, no sentido, não só em relação a tar com vários tipos de pessoas, com vários tipos de crença, como também o tempo pra igreja vai diminuindo, aí a pessoa, consequentemente, muitas vezes vai esfriando, eu diria isso. Vá se preparando, vá sendo mais crente enquanto que não chegue o tempo de entrar na faculdade, feito eu né que passei uns oito meses pra poder entrar por ser a segunda entrada.

Percebe-se como Elaine, mesmo depois da experiência acadêmica, ainda reproduz o discurso do “medo da universidade”, entendendo-a como nociva ao cristianismo e, consequentemente, ela incentiva o jovem cristão a preparar-se intelectual, emocional e espiritualmente pra ingressar nela, sob pena de, possivelmente, perder a fé.

A partir da sua própria experiência, Elaine cita três desafios que a vida universitária apresenta para o crente pentecostal. A primeira é a influência dos amigos: a universidade não abre, para o aluno, apenas uma nova realidade intelectual, como novo contexto, ela apresenta novos atores, cujo patrimônio disposicional é bastante diferente dos atores cristãos, portanto, para aqueles que foram doutrinados em contextos bastante tradicionais e cercados por atores

que confirmavam sua “estrutura de plausibilidade”, o contexto universitário se torna desafiador.

Inserido no novo contexto, o jovem cristão pode ser influenciado pelos novos atores e desenvolver práticas e disposições antagônicas às que foram geradas na família e/ou na igreja. (“Hoje ninguém me chama pra nada não e até porque eu não tenho esse estilo de ir pra bar, esse tipo de coisa, mas no primeiro período tinha muito esses convites pra ir pra o bar [...] esse tipo de convite tem. Quem não tá firme, quem gosta desse tipo de coisa é capaz de se afastar”).

Ela relata a experiência de uma colega de classe que antes mesmo do curso começar já passou a frequentar algumas reuniões da turma, começou a ir ao barzinho com os novos colegas, assumiu a homossexualidade e abandonou a igreja. Por esta razão, as novas amizades são vistas por Elaine como um grande desafio para o jovem evangélico e, para vencê-lo, ela se policiou no desenvolvimento de amizades:

O meu grupo, que somos nove, o pessoal chama de grupo da fé (apesar de nem todos serem evangélicos), porque termina que os meninos acabam sendo estimulados por a gente e termina sendo um pouco diferente, a gente não vai pro bar, a gente vai pra pizzaria, pro cinema junto, visita a casa, todos os oito já foram na minha casa e eu já fui na casa deles, então a gente termina sendo um grupo mais fechado.

O segundo desafio relatado por Elaine é a multiplicidade de crenças: para aqueles que foram socializados em um contexto tradicionalmente cristão, a universidade apresenta o desafio de ter que lidar com diversos pensamentos divergentes. Por exemplo, ela diz que, de todos os professores que teve, apenas um era cristão (católico) e muitos eram ateus e agnósticos, mas, embora nem todos eles falassem abertamente sobre religião na sala de aula, sua influência pode fazer com que os universitários evangélicos associem a universidade ao secularismo e o cristianismo à ignorância (“eu acho que tem que ter cuidado com isso o jovem evangélico, porque termina achando que a igreja é algo ultrapassado, que é algo alienado, que é algo formado por pessoas que não têm nenhuma formação acadêmica, pessoas que têm no máximo uma ficha 19”).

Diferente dos estudantes da Fafica, Elaine não narrou nenhum embate na sala de aula por causa da religião, porém disse que, pelo fato de as pessoas se mostrarem mais abertas ao diálogo, nos primeiros períodos havia certa intolerância diante das religiões mais tradicionais. Por exemplo:

No primeiro período eu fique responsável pra ler um texto que a professora dividia e a pessoa tinha que apresentar já pra ir se acostumando falando, né, e a minha parte era de um padre que falava sobre como a igreja via os negros, aí ele usava um versículo que não era nem da Bíblia evangélica, era Macabeus, mas eu li o versículo e depois eu fui explicando a partir do versículo. Aí uma coisa que me incomodou foi isso, quando eu li o versículo, uma parte lá do fundão em peso começou a rir (de deboche), e era porque minha parte começava como o versículo, eu precisava ler o versículo. Aí essas coisas assim implícitas há um pouquinho aqui

Além disso, na universidade Elaine também foi desafiada a olhar para as diversas manifestações religiosas pelo aspecto cultural, sem expressar preconceito religioso. Religiões que na ótica pentecostal são tidas como demoníacas, no âmbito acadêmico são analisadas primariamente pelo aspecto da manifestação cultural e humana e, por isso, Elaine se sentiu desafiada a olhar para tais religiões sob essa nova perspectiva, tendo que apresentar trabalhos explicativos sobre o candomblé, umbanda e outras manifestações religiosas bastante estigmatizadas pelo pentecostalismo. Como ela descreve:

Eu precisei apresentar um trabalho de maracatu, que falava muita, muita, muita coisa de candomblé, muita coisa mesmo, aí pra mim não teve problema nenhum de eu falar desse tipo de coisa, normal, tinha que fazer o trabalho, então nesse sentido eu sou um pouco mais neutra aqui na universidade, mas isso não influencia na minha opinião, mas o que precisa fazer eu faço. Mas, assim, nesse trabalho eu tava falando sobre rituais e deuses que na ótica evangélica são demônios, inadmissível. Inclusive ela marcou uma visita a um centro, aí isso eu não fui, não me senti bem pra ir, apesar de que eu tinha marcado com meus amigos um negócio no dia, um almoço, aí de qualquer forma eu não ia, mas mesmo se eu tivesse livre, esse tipo de coisa eu prefiro não ir, não me sentiria bem, foi tirada foto lá, aí não ia ser legal. Por menos já puxam a orelha da pessoa, quanto mais se visse uma foto minha lá, até o pai de santo lá ia estranhar, porque pela minha roupa já dá pra saber que é da Assembleia. E a professora já se tocou que a gente não ia, aí ela ficou perguntando a cada um “por que você não vai”, aí eu disse que tinha um compromisso, mas se eu não tivesse compromisso eu ia ter que dizer a verdade né, aí ia ser um pouco constrangedor, porque iam ficar dizendo que eu era muito rígida com as coisas, muito certinha, mas o pessoal achou que era mentira minha, só viram que era verdade depois que a gente postou as fotos no face.

O último desafio destacado por Elaine é o desafio da limitação do tempo: para ela, a universidade exige muito tempo e dedicação do estudante, modificando drasticamente sua rotina, sobretudo, para aqueles que estão acostumados com uma vida eclesiástica e ministerial ativa, como era o caso dela, que era presidente do grupo jovem e praticamente todos os dias frequentava a igreja e desenvolvia alguma atividade.

Como resultado das atividades acadêmicas, Elaine diminuiu drasticamente sua freqüência à igreja e, consequentemente, ela passou a não se ver mais como líder dos jovens e

entregou o cargo. Nesse ponto, o quarto período foi o mais difícil, pois ela ia muito pouco para a igreja, passou a não se identificar mais com a comunidade e chegou a cogitar o abandono total da igreja. 77

Pelo fato de aqui ser muito puxado, o curso de história requer muita leitura, e parece que é uma coisa, as cadeiras piores eles colocam na segunda pra o domingo eu passar ocupada lendo, aí se não tiver cuidado termina aos pouquinhos se afastando da igreja, recebe um convite vai, no domingo já não vai pra igreja, já vai mudando de amigos, aí isso tem que ter cuidado.

Em nenhum momento Elaine demonstrou arrependimento por ter escolhido o curso de licenciatura em história, mas, por causa dos desafios supramencionados, ela não indica o curso para todas as pessoas (“Eu não estimulo nenhum jovem que não tenha vocação e nem esteja firme a vim pra história, eu não estimulo não, porque realmente a situação é difícil, a minha turma é mais tranquila, apesar de ser bem eclética, mas tem umas que são bem complicadas”).

Mais uma vez percebe-se na fala dela o discurso do “medo da academia”. O curso de história é bom, mas não para todo mundo. Tendo exposto os primeiros contatos de Elaine com a academia e seus principais desafios, na próxima seção analisaremos os efeitos da experiência universitária em seu patrimônio disposicional.