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5. RETRATO SOCIOLÓGICO APLICADO AOS PENTECOSTAIS QUE ESTUDAM

5.1. Elaine Costa

5.1.3. Mudanças enquanto estava na universidade

Como foi dito na seção anterior, Elaine se preparou bastante para enfrentar os desafios que esperava enfrentar na academia e, talvez por isso, em comparação com outros entrevistados, ela foi pouco afetada por tais desafios.

A mudança mais significativa constatada nas entrevistas foi em relação às amizades. Antes da universidade, praticamente todos os amigos de Elaine eram evangélicos, pois sua disposição ao ascetismo se expressava não apenas em relação a práticas, mas também em relação a pessoas, ou seja, ela achava inadmissível amizade com “pessoas do mundo” e, como líder, várias vezes repreendeu seus liderados por causa de amizades próxima que tinham com tais pessoas.

77 Ela diz: “Não é que eu me afastasse da igreja, mas é, tipo assim, crente em casa, porque eu já não tava mais me identificando com a igreja”.

Contudo, com a frequência assídua à academia, Elaine passou a ficar mais tempo na universidade do que na igreja e, consequentemente, sua concepção sobre as “pessoas do mundo” começou a mudar. Por exemplo, ela diz que antes jamais pensaria em ter amigos homossexuais e que a imagem que ela tinha do homossexual era apenas “de um travesti”, depois da universidade, porém, ela diz que ter tal tipo de amizade é absolutamente normal e cita que dentre seus melhores amigos na universidade estão três homossexuais.

É importante ressaltar que esta mudança não se estende à sua concepção sobre a homossexualidade. Ela deixou claro, nas entrevistas, que ainda acredita que a prática homossexual seja pecaminosa, porém, isso não impede que haja uma amizade saudável entre evangélicos e homossexuais. Portanto, a vivência no novo contexto fez com que a disposição ascética quanto às amizades fosse abandonada e uma concepção mais flexível de amizade foi introduzida na experiência de Elaine.

A partir da sua experiência percebe-se como o contexto universitário lhe convidou a sair da condição de ascetismo e a relacionar-se com todas as pessoas, independente da fé, orientação sexual, ou qualquer outro fator de distinção, apesar da divergência de opinião. Em suas palavras:

Claro que tem ambientes que eles frequentam e eu não frequento, e tem coisas que a gente não discute no meio, pra evitar coisa, até porque eles sabem que a minha opinião em relação a isso é completamente diferente da deles, mas eu acho que foi isso, coisas que eu achava absurdas passaram a ser mais comuns pra mim por tar convivendo

Todavia, apesar de sua atual convicção de que não há problema em ter amizade com homossexuais, Elaine teme uma possível repreensão de sua igreja, pois ela não sabe qual seria a reação de seus líderes diante dessa questão. Ela faz questão de dizer que eles não têm jeito efeminado e também nunca os levou para a sua igreja, mas ainda assim, para ela, “os meninos além de se serem responsáveis, são amigos realmente, apesar de nem todos terem a mesma fé que eu, realmente são amigos pra vida toda”.

Outra mudança detectada nas entrevistas foi que, de acordo com Elaine, a experiência acadêmica fez com que ela se acostumasse com um padrão de discurso pautado mais na racionalidade do que na emoção e, por isso, ela reprova, atualmente, a atitude de pregadores pentecostais que apelam aos gritos e ao emocionalismo em seus sermões e os cultos que ela mais gosta são os de estudo bíblico e da escola dominical, porque são semelhantes ao

contexto acadêmico: “eu não gosto e tento evitar, por exemplo, círculo de oração, que tem muito esse tipo de coisa, na Assembleia tem muito. Evito, eu costumo ir mais pra doutrina e ceia que é aquele culto mais centrado, vamos dizer assim”.78

O fato de ter iniciado sua trajetória evangélica na igreja Batista e de nunca ter sido batizada com o Espírito Santo na Assembleia de Deus, podem indicar uma certa restrição ao emocionalismo na experiência religiosa de Elaine e, indubitavelmente, essa postura restritiva foi fortalecida a partir da experiência universitária.

O fato de estar semanalmente na universidade, ouvindo o discurso “centrado” dos professores, faz com que Elaine, ao voltar à igreja, nos fins de semana, não se adapte mais aos discursos emocionais do pentecostalismo. Por essa razão, ela evita os círculos de oração, que são onde normalmente as manifestações emotivas são mais frequentes, e, em contrapartida, ela prefere os cultos de ensino bíblico, cuja estrutura do discurso se aproxima mais do ambiente universitário.

Além destas, nenhuma outra mudança relevante foi detectada nas entrevistas. Ela afirma que se tornou mais crítica depois da academia, mas há pouquíssima expressão crítica em seu discurso. Pelo contrário, ela crê que a Bíblia é a Palavra de Deus, infalível, inerrante e autoritativa e, consequentemente, acredita na interpretação literal dos milagres e dos fatos descritos nela. Além disso, independentemente de qualquer mudança oriunda da experiência acadêmica, o fundamento da fé de Elaine parece inabalável: sua experiência de cura. Ela tem convicção de que experimentou um milagre divino e isso faz toda diferença nos momentos de dúvidas e questionamento:

Quem não tem a fé firmada, muitas pessoas que se diziam cristãs, mas não eram efetivas na igreja se tornaram ateias quando entraram na universidade aqui, mas eu acho que talvez pela minha experiência, pelo que eu passei, pelo que eu sei que Jesus mudou, aí eu acho que quanto a isso realmente eu não levo pra mim, não levo, como se fosse minha fé muito mais forte do que isso, [...] Experiência que eu falo é quando eu tive problema que eu fui melhorando, o processo todo, entendesse? Porque eu tenho amigos que passaram por coisas parecidas com as que eu passei, mas até hoje tomam remédio tarja preta e eu graças a Deus não precisei de nada disso, Deus me libertou mesmo em relação a isso, então eu tenho consciência de que isso tudinho foi mediante a Deus, então isso não faz de jeito nenhum com que isso atrapalhe a minha fé.

78 Ela diz que nunca simpatizou com pregadores que gritam muito, mas que devido ao fato de, há muito tempo fazer parte da Assembleia de Deus, tinha se acostumado com tais pregadores, mas depois da experiência acadêmica ela diz que sua visão ficou mais radical em relação a eles.

A experiência de cura de Elaine aparece em vários momentos de seu discurso e, sem dúvida, ela é um sustentáculo para sua fé.79 Não importa qual argumento seja suscitado conta suas convicções religiosas, ela tem a “experiência” com o sagrado e, como diz a máxima: “contra fatos não há argumento”. Para ela, afastar-se da igreja é ingratidão pela bênção que o divino lhe deu e se expor para que outros males lhe aconteçam.

Contudo, isso não significa que Elaine não questione nada. Pelo contrário, ela chega até mesmo a apresentar algumas dificuldades de acreditar em alguns relatos bíblicos, mas é sempre um “questionamento reverente”, ou seja, ela pensa que naturalmente tal relato seria impossível, mas imediatamente sua crença em Deus lhe faz acreditar no relato “aparentemente impossível”: “se a pessoa for parar pra pensar nesse sentido termina endoidando, é melhor relevar. Eu sei que no sentido histórico, aqui, nem sempre eu posso usar a Bíblia como fonte segura, [...] mas que eu acredito independente de qualquer outro tipo de coisa, eu acredito”.

Assim como em outros entrevistados, a disposição para crer também é bastante forte em Elaine e, como já foi dito, uma das bases de sustentação dessa disposição é sua experiência de cura. Ela realmente acredita na doutrina de sua igreja e se submete às exigências da tradição assembleiana, todavia, embora Elaine seja uma típica assembleiana (não usando calça, bijuteria, maquiagem, etc.), ela critica a postura de pessoas de sua igreja que discriminam outros evangélicos por causa do uso desses adereços. Seu discurso em relação a essas questões é bastante tolerante, evitando qualquer tipo de julgamento condenatório.

Para encerrar, trataremos sobre a forma como Elaine relaciona o contexto da igreja e da academia. Diante da disparidade que ela percebe entre esses dois contextos, uma de suas estratégias é dicotomizar sua experiência, ou seja, para que não haja conflitos consigo mesma e com os outros, ela tenta romper deliberadamente a continuidade desses dois universos em sua experiência biográfica.

Rapaz, eu tento... não é que não dá pra ser outra pessoa na igreja, ser uma pessoa aqui e outra completamente diferente lá, não dá né, mas eu tento, o possível, não envolver esses dois lados, [...] Eu sempre tentei não envolver esses dois lados, inclusive da doutrina, porque, sei lá, se eu for tá envolvendo vai terminar eu questionando demais e querendo sair. Eu acho assim, eu nunca fui de tar envolvendo

79 Embora esse tipo de “experiência” seja diferente daquelas relatadas por Álefe. Ao nosso ver, nela não há uma disposição à experiência mística, uma vez que a “experiência” aparece em seu discurso no sentido de prova de um milagre, que confirma a veracidade da fé.

muito demais não. Tipo assim, na universidade eu falo muito pouco sobre religião (só se for realmente necessário) e na igreja eu não falo sobre a universidade.

Percebe-se que o não envolvimento dos dois contextos na experiência de Elaine não é apenas uma questão de manipulação de identidade e teatralização social diante de uma plateia (GOFFMAN, 1989), mas é, antes de tudo, uma questão pessoal, ela tem dificuldade em conciliar os dois contextos em sua experiência pessoal e, por isso, evita qualquer relação entre eles.

Para Elaine, o contexto eclesiástico e o acadêmico são radicalmente diferentes e, por isso, relacionar um ao outro pode resultar em prejuízos espirituais ou intelectuais. O contexto acadêmico, por exemplo, é profano e, por isso, o pensamento que opera nele, embora não seja antirreligioso, opera por um meio diferente da fé, que está presente na religião. O contexto religioso, por outro lado, é sagrado e nele se vive as mais profundas experiências de fé, por isso, levar o aspecto da racionalidade e da argumentação (presentes na academia) à igreja pode inibir que tais experiências religiosas sejam vivenciadas, na sua fala supracitada: “porque, sei lá se eu for tá envolvendo vai terminar eu questionando demais e querendo sair”.

A dicotomia entre os dois contextos é apontada por Elaine como o principal motivo pelo qual, segundo ela, não houve muitas mudanças em sua vida religiosa após o ingresso na universidade. De acordo com Elaine, pra quem ingressa na universidade a mudança é inevitável, mas a dicotomização dos dois contextos ameniza os efeitos de um ambiente sobre o outro. Nesse ponto ela reconhece seu próprio êxito: “eu sei dividir bem, porque é como se pra mim aqui fosse a parte mais, vamos dizer assim, teórica, a parte mais científica, mas que se complementa tanto a fé que eu acredito quanto a ciência, vamos dizer assim. Complementa, mas a parte que discorda eu não levo pra mim, nem pra igreja, nem pra minha fé não”.

5.1.4. RECAPTULAÇÃO DOS PONTOS DE ANÁLISE

A análise das entrevistas realizadas com Elaine Costa permitiu ressaltar os seguintes pontos:

1) A família de Elaine mostra a heterogeneidade que marca a influência disposicional de algumas crianças desde a primeira socialização. Longe de ser uma família “tradicional”, sua socialização primária foi, sobretudo, em convívio com seus avós. Seu pai é uma figura quase apagada em sua experiência, sua mãe casou e levou o

padrasto para a casa e seu irmão é fruto de outro relacionamento da mãe de Elaine, antes de casar-se com o padrasto.

2) Percebe-se como um problema psicológico levou-a a inserir-se na comunidade religiosa e como esta interferiu significativamente em seu patrimônio disposicional, sobretudo, fortalecendo sua disposição para o ascetismo.

3) A apetência da disposição ao exercício de práticas religiosas: como à medida que Elaine foi migrando de igreja as exigências eclesiásticas foram aumentando e como a disposição não apenas tornou-se rotina, mas está envolvida de forte apetência. Ela gosta de participar das programações da igreja, gosta de trabalhar com os jovens e sempre está se envolvendo com o serviço eclesiástico.

4) Os desafios do novo contexto: para pessoas que foram socializadas em um ambiente marcado pelo isolamento e por diversas restrições, como o pentecostalismo, os dois primeiros desafios descritos por Elaine são surpreendentes, pois desafiam pontos fulcrais da estrutura pentecostal. Percebe-se como ela saiu da condição de ascetismo extramundano e passou a se relacionar com todas as pessoas, independente da fé, orientação sexual, ou qualquer outro fator de distinção, apesar da divergência de opinião.

5) Influência da racionalidade acadêmica. Assim como outros entrevistados, Elaine tem sido afetada de segunda a sexta com uma nova forma de compartilhar o conhecimento, pelo discurso coerente e com baixo grau de emocionalismo, portando, ao voltar para a igreja, ela resiste ao discurso emotivo dos pregadores pentecostais e evita as reuniões em que tais manifestações emotivas são mais frequentes.

6) Dicotomia entre os dois contextos: o medo de relacionar dois contextos tão peculiares faz com que Elaine tente separá-los ao máximo em sua experiência, porém, como ficou claro na seção anterior, essa separação nunca é perfeita e marcas ligadas a um contexto são visíveis em outro.

5.2. FABIO RAMOS