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2. BERNARD LAHIRE E OS ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.8. Considerações sobre a pesquisa de campo

A presente pesquisa parte do pressuposto de que há algumas diferenças entre o contexto acadêmico e o eclesiástico e de que os evangélicos que ingressam na universidade relacionam, de alguma forma, as experiências e o conhecimento adquiridos nesses dois espaços de socialização. Além disso, entendemos que, pela natureza dos contextos, algumas disposições são mais ligadas à universidade enquanto outras são normalmente ligadas à igreja.

Diante deste quadro, algumas perguntas devem ser respondidas: as disposições ligadas à igreja são, realmente, geradas nos evangélicos entrevistados? Quando ingressam na universidade, estes atores adicionam algum tipo de disposição ao seu patrimônio disposicional? Se a resposta para essas duas perguntas for positiva, em que grau as disposições geradas na igreja são divergentes ou antagônicas às adquiridas na universidade? Como os evangélicos administram as disposições adquiridas nesses dois contextos? Outras disposições adquiridas na trajetória dos sujeitos analisados podem ser observadas? Há alguma relação dessas outras disposições com a experiência dos pentecostais no ensino superior? Em resumo: como os evangélicos pentecostais que ingressam no ensino superior conseguem conciliar a experiência religiosa com o conhecimento e a experiência acadêmica?

Para responder esses questionamentos nossa metodologia foi prioritariamente de natureza qualitativa por entendermos que os estudos que empregam esta metodologia:

Podem descrever a complexidade de determinado problema, analisar a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos, contribuir no processo de mudança de determinado grupo e possibilitar, em maior nível de profundidade, o entendimento das particularidades do comportamento dos indivíduos (RICHARDSON, 1999, p. 80).

Pelas razões apresentadas neste capítulo, optamos por trabalhar com a metodologia da sociologia à escala individual, sobretudo, no modelo descrito por Lahire como “retrato sociológico”, cujo método de entrevista biográfica permite que o pesquisador apreenda a gênese dos esquemas disposicionais que operam nos entrevistados, analisando a maneira como eles utilizam estes esquemas de tal forma que algumas disposições são atualizadas e outras suspensas.

Segundo Oliveira (2013), a metodologia utilizada pelo programa de estudo de Lahire leva o pesquisador a responder a, pelo menos, três perguntas, primeiro: “como a diversidade

das experiências socializadoras, muitas vezes contraditórias, podem tomar corpo no indivíduo?”; segundo, “como essas experiências são incorporadas de forma mais ou menos duradoura?”; e terceiro, “como elas aparecem nos diversos momentos da vida do ator social, determinando as suas práticas?”.

Como, descrito acima, estas perguntas são muito semelhantes às questões centrais que regem nossa pesquisa, referindo-se especificamente ao momento de ruptura biográfica, que é o ingresso do indivíduo na universidade.

Para a construção dos “retratos sociológicos”, o maior investimento da nossa pesquisa de campo foi no uso de entrevistas com seis estudantes do curso de Licenciatura em História, sendo três da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (Fafica) e três estudantes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) campus Recife.20 A ideia de pesquisar em

duas instituições se deu pelo interesse de analisar a experiência de pessoas que tivessem tido contato com, pelo menos, dois modelos de ensino diferentes, pois, uma vez que cada instituição acadêmica tem seu perfil, seria interessante não limitar a pesquisa a apenas um contexto. No decorrer da pesquisa, percebeu-se que esta tinha sido uma decisão acertada, principalmente quando algumas experiências começaram a se repetir.

Preferimos entrevistar alunos que estivessem próximos da conclusão do curso, uma vez que, por terem vivenciado diversas fases no curso, ao nosso ver, poderiam ter uma visão mais geral, completa e madura dos efeitos, desafios, possibilidades e contribuições da academia para a fé. Dois alunos da Fafica (Álefe e Karla) eram da mesma sala, enquanto Daniel era de outra. Nas entrevistas da UFPE, Fabio e Diego eram da mesma sala e Elaine era de uma sala diferente. Esse critério de escolha contribuiu pra que pudéssemos analisar mais de uma pessoa da mesma turma, que assistiu às mesmas aulas e teve experiências semelhantes, comparando à forma como elas enfrentaram e lidaram com as mesmas situações.

Nossa opção foi por entrevistas semiestruturadas porque, por serem flexíveis, possibilitaram que fossem exploradas outras questões que surgiam no decorrer das entrevistas, contribuindo para que aprofundássemos temas que, a princípio, não estavam em nosso objetivo.

20 Preferimos trabalhar com entrevistas (ao invés do uso do questionário) porque nos oferece maior flexibilidade para esclarecimento das perguntas e nos possibilita captar as expressões corporais e a tonalidade de voz dos entrevistados (GIL, 1999)

O roteiro de entrevista era denso (a princípio com cerca de cento e trinta perguntas) e, na medida do possível, seguimos a sequência de questionamentos de Lahire, tentando captar os efeitos causados pelas grandes matrizes socializadoras nos indivíduos, sobretudo, a família, a escola e a religião. As entrevistas também contemplaram questões sobre trabalho, cultura, lazer, e outros temas, porém sempre a ênfase esteve na relação dos entrevistados com a universidade e com a igreja e na forma como eles administram, consciente ou inconscientemente, as múltiplas disposições que foram (ou não) interiorizadas neles nos processos de socialização desses dois contextos (Apêndice A).

A proposta inicial era que cada pessoa fosse entrevistada três vezes (porém, por causa da natureza flexível das entrevistas alguns foram entrevistados quatro vezes) com cada entrevista durando cerca de uma hora e trinta minutos. Após cada entrevista, era feita a transcrição e análise dos dados para que, dependendo da necessidade, novas perguntas fossem adicionadas ao roteiro, assim, antes de começar a próxima entrevista, alguns pontos da entrevista anterior eram retomados. Como já foi dito, fazer mais de uma entrevista permite que a ela não se torne cansativa e cria um vínculo maior de amizade entre pesquisador e pesquisado, contribuindo para o aprofundamento da pesquisa e favorecendo que pontos obscuros sejam aprofundados no próximo encontro.

As múltiplas entrevistas nos deram uma riqueza de detalhes tão grande sobre a trajetória social dos entrevistados que em uma das entrevistas, após ter feito alguns comentários sobre a vida de uma entrevistada, ela ficou impressionada e disse que eu já sabia sobre a sua vida mais do que alguns de seus amigos íntimos.

Segundo Lahire (2004, p. 33) “o sociólogo que realiza longas entrevistas é um tipo particular de confidente, aquele que desaparece depois de a confidência ter sido feita”. De fato, em nossa experiência no campo foi estabelecida uma relação de confiança muito positiva e os entrevistados falaram abertamente sobre suas experiências, sob a promessa do pesquisador de que seus nomes ficariam ocultos no trabalho final (Apêndice B).

A proposta inicial era que o espaço entre as entrevistas fosse de uma semana para que cada uma fosse concluída em um mês, mas, devido as intensas atividades dos entrevistados e do entrevistador, a maioria das entrevistas durou cerca de dois meses, sendo todas realizadas nos anos de 2016 e 2017.

Quanto à filiação religiosa-denominacional, os entrevistados da Fafica eram membros das seguintes igrejas: Álefe, da Igreja de Cristo Pentecostal do Brasil; Karla e Daniel, da

Assembléia de Deus Pernambuco.21 Quanto aos entrevistados da UFPE, todos eram membros de congregações diferentes da Assembleia de Deus Pernambuco, com exceção de Elaine, que ainda não era membro, mas estava migrando da Assembleia de Deus Abreu e Lima para a Assembleia de Deus Pernambuco.

Antes de finalizar este capítulo, trataremos sobre algumas dificuldades que enfrentamos no uso do dispositivo metodológico aqui empregado. Primeiro, na seção anterior foi dito que uma das dificuldades da elaboração do retrato sociológico é em relação à entrevista de pessoas estranhas. De fato, como já dito, este foi um desafio em nossa pesquisa, pois todos os entrevistados eram desconhecidos e o primeiro contato com eles foi (por telefone ou pessoalmente) para informar a natureza e o objetivo da pesquisa e convidá-los pra serem entrevistados. A despeito dessa dificuldade poucas pessoas se negaram a participar das entrevistas, entretanto, percebemos que na terceira entrevista havia se estabelecido uma relação de confiança e amizade e as informações fluíam mais naturalmente.

O ponto inicial para a entrevista se deu através de pessoas que indicaram possíveis entrevistados, a partir da descrição determinada (evangélicos pentecostais inseridos no curso superior de história). Na Fafica, o ponto de contato foi um amigo, professor do curso de história, que indicou o primeiro entrevistado, a partir dele foi mais fácil chegar aos outros. Na UFPE foi mais complicado, uma vez que não havia ninguém conhecido para indicar, mas visitando o diretório do curso de história tivemos oportunidade de compartilhar o objetivo da pesquisa e conseguimos a primeira entrevista, a partir daí, os próprios entrevistados indicavam pessoas que se enquadravam no perfil da pesquisa.

A segunda dificuldade foi encontrar pessoas que tivessem disponibilidade de tempo para ser entrevistadas em três ocasiões distintas. Duas pessoas que foram procuradas na UFPE se dispuseram a participar da pesquisa, mas, ao serem informadas da proposta das múltiplas entrevistas, desistiram alegando indisponibilidade de tempo. Também foi um pouco

21 Embora dois entrevistados da Fafica façam parte da mesma denominação, eles não freqüentam a mesma congregação. Daniel é membro de uma congregação em Caruaru e Karla é membro de uma em sua cidade, que fica cerca há 50 quilômetros de Caruaru. Álefe também mora em outra cidade próxima a Caruaru. Entendemos a importância de o leitor saber especificamente as cidades que os entrevistados moram e as congregações em que congregam, mas pelo fato de serem cidades pequenas, preferimos omitir os nomes para preservação da identidade dos entrevistados. O objetivo dessa omissão foi não expor os entrevistados e, talvez, prejudicá-los por causa de alguma informação. Por exemplo, a seguir veremos que nas entrevistas Karla tomou algumas posições contrárias à sua igreja e, quando questionada se “Você teria coragem de dizer isso na igreja?”, ela respondeu: “Nunca. Deus me livre. Nesse dia ia fazer pior do que aquele tempo de bruxa. Ia fazer uma roda e mandar tocar fogo”.

complicado adequar a agenda de alguns entrevistados que estavam no processo de finalização do curso ou de disciplinas, escrevendo artigos e relatórios e alguns se preparando para o mestrado. Estes fatores fizeram com que algumas entrevistas fossem adiadas até por três semanas.

A terceira dificuldade foi em relação ao fato de que no processo de entrevistas havia muitas perguntas que não estavam diretamente ligadas ao tema, o que deixava alguns entrevistados um pouco receosos, principalmente porque estavam falando de sua vida para um estranho. Como já foi dito, o fato de serem múltiplas entrevistas contribuiu para que os entrevistados falassem com mais naturalidade, principalmente quando os pontos eram retomados nas entrevistas seguintes.

Apesar das dificuldades, o fato de os entrevistados serem acadêmicos e alguns já terem feito pesquisa de campo contribuiu para que eles fossem mais abertos em ajudar na pesquisa, compreendendo os desafios envolvidos em uma pesquisa de campo. Dessa forma, pudemos contar com o esforço na flexibilidade de seus horários e com a paciência nas respostas, sobretudo, nas retomadas dos pontos anteriores.

Embora fosse perceptível em alguns entrevistados o esforço para manter um discurso sempre coerente, as múltiplas entrevistas também ajudaram a detectar algumas variações disposicionais diacrônicas e sincrônicas, bem como os processos de ativação e inibição em relação aos diversos contextos sociais.

Quanto à descrição do material, cada entrevista começa tratando sobre os aspectos gerais, nos quais são descritas, resumidamente, as primeiras experiências de socialização dos entrevistados e, em seguida, os tópicos variam de acordo com suas diversas experiências, porém, todos os “retratos sociológicos” terminam com uma recapitulação dos pontos de análise, em que são descritos os aspectos salientes do retrato aplicado, focando nas mudanças e permanências do patrimônio disposicional.

Para finalizar este capítulo, faremos algumas breves considerações sobre a metodologia empregada na coleta de dados utilizados na construção do próximo capítulo. Neste, descreveremos alguns aspectos do perfil dos alunos do curso de licenciatura em história da Fafica e da UFPE, a partir de dados coletados no mês de outubro de 2017, por meio de um breve questionário que foi aplicado na sala de aula (Apêndice 3).

A unidade de análise desta pesquisa, como já dito, foram os estudantes dos cursos de licenciatura em história da Fafica e da UFPE, e a nossa opção metodológica foi pela

amostragem não probabilística com utilização da técnica de amostra por conveniência, que consiste em selecionar uma amostra da população que seja acessível e os indivíduos não são selecionados por meio de um critério estatístico, mas porque eles estão prontamente disponíveis

.

O procedimento metodológico consistiu em duas visitas a turmas de cada período (em dias distintos da semana) para que a fração de amostragem possibilitasse maior aproximação do marco amostral e, nessa visita, era distribuído um questionário entre os presentes. No período da pesquisa havia 83 alunos matriculados no curso de história da Fafica, destes, 66 responderam ao questionário. Na UFPE, a quantidade de pessoas foi proporcionalmente menor, pois havia 314 alunos matriculados e apenas 120 responderam.

O objetivo do questionário foi descrever algumas características básicas dos estudantes de história, a fim de compreendermos um pouco mais do contexto em que os sujeitos “retratados” participam. Por isso, era um questionário curto, com perguntas simples e básicas, com ênfase, sobretudo, no aspecto religioso dos estudantes.

Tendo feito estas considerações sobre a presente pesquisa e, sobretudo, sobre os aspectos teóricos e metodológicos da sociologia à escala individual, no próximo capítulo analisaremos os contextos dos quais os sujeitos dessa pesquisa participam e nos quais interagem.

3. UNIVERSIDADE E PENTECOSTALISMO: CONSIDERAÇÕES SOBRE OS