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2. BERNARD LAHIRE E OS ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.6. Aspectos metodológicos da sociologia à escala individual

Depois de expor as principais características teóricas da sociologia à escala individual e de explicar a nossa escolha teórica por esse tipo de análise na compreensão do tema que nos propomos estudar, nesta fase do capítulo analisaremos as características metodológicas dessa abordagem, destacando as vantagens e desafios de se trabalhar com retratos sociológicos e mostrando como os aspectos metodológicos desenvolvidos por Lahire foram utilizados em nossa pesquisa de campo.

A sociologia à escala individual exige uma metodologia diferenciada, que apreenda a variação social dos comportamentos individuais de acordo com os contextos de ação e que detecte em que medida algumas disposições são transferíveis de um contexto para outro e outras não, atentando para os mecanismos de suspensão e ativação das disposições nos contextos variados.

Talvez a forma mais eficaz de detectar as variações disposicionais e a relação entre disposições e contextos fosse acompanhar o indivíduo em todos os contextos em que ele interage e observar diretamente seus comportamentos, ações e reações nas mais diversas situações da vida, porém, uma vez que isso seria inviável em uma pesquisa sociológica da natureza aqui proposta, Lahire propõe que a reconstrução das disposições seja feita

indiretamente, através de entrevistas que contemplem as influências dos diversos contextos sobre o indivíduo e que atentem para sua heterogeneidade comportamental.

Segundo Martuccelli e Singly (2012, p. 91): “A entrevista permite estudar de perto o trabalho que o indivíduo faz sobre si mesmo; ter acesso às contradições que o ator vive devido à multiplicidade de cenários onde se desenvolve; abordar as relações que estabelece ou a dúvida sobre suas razões para atuar”. Por isso, embora esses autores afirmem que métodos quantitativos podem ser integrados a uma sociologia à escala individual desde que sejam mais sensíveis às diferenças do interior dos grupos sociais, eles concordam que a sociologia do indivíduo privilegia o método da entrevista como típico de sua análise.

É na entrevista que o pesquisador adquire os dados necessários para detectar a existência de disposições e para reconstruir seus princípios geradores. Uma vez que, como já foi dito, a ocorrência única e ocasional de um comportamento não é suficiente para caracterizá-lo como disposição, espera-se do pesquisador um trabalho interpretativo cuidadoso diante do nível de recorrência e de repetição que caracterizam as disposições.

A entrevista não é apenas uma recapitulação qualitativa de eventos, mas é também um momento de ruptura sobre si mesmo e, por isso, normalmente vem acompanhada de uma carga emocional, que pode diminuir se a pessoa já tiver formalizado sua experiência por tê-la compartilhado em outros momentos.

As manifestações emotivas na entrevista ilustram o fato de que no presente o ator reinterpreta seu passado, atualizando-o em função de suas experiências atuais. Esta foi uma das razões pelas quais optamos entrevistar apenas pessoas que ainda estivessem na universidade, uma vez que a saída do ensino superior e as novas experiências poderiam, de alguma forma, mudar os relatos das experiências vividas na academia.

Como será detalhado na próxima seção, a sociologia à escala individual (no modelo do retrato sociológico) exige do pesquisador um modelo de entrevista amplo, que possa contemplar diversos aspectos da vida do entrevistado no processo em direção ao foco da pesquisa. A razão disso é que embora os contextos sociais nos quais o indivíduo interage sejam distintos, é o mesmo indivíduo que está participando de todos os espaços e, por isso, em alguns casos, a maneira que ele age em um contexto elucida sua ação em outro sem nenhuma ligação aparente.

A análise individual dos entrevistados faz com que cada experiência seja explorada em suas particularidades, sem procurar necessariamente pontos de semelhança entre entrevistas

distintas, como é tendencioso fazer quando se analisa o coletivo, uma vez que se procura um padrão e as particularidades são evitadas e esquecidas.

Segundo Lahire (2004, p. 318), “como todo cientista, o sociólogo está em busca de coerências na complexidade do real” e, nessa busca, muitas vezes ele tende a enfatizar e trabalhar um único aspecto (que mais se destaca na entrevista, ou que serve a um propósito deliberado) da biografia do indivíduo, ignorando outros aspectos menos destacados, porém, nem sempre menos importantes.

Lahire compara essa postura sociológica aos livros infantis de Roger Hargreaves, que inventam personagens cujo princípio de ação é único e permanente, sendo até chamados pelo nome do princípio (“senhor nervoso”, “senhora prestável”, “senhora desastrada”). Para Lahire, portanto, uma metodologia que tenta simplificar a complexidade dos grupos e indivíduos particulares está mais próxima de uma literatura ideal do que da sociologia descritiva.

Sua conclusão, portanto, é que o sociólogo à escala individual não deve ficar procurando heterogeneidades e contradições nos entrevistados, ele apenas deve descrever a realidade observada, que geralmente é complexa. Em sociedades tradicionais a tendência é que a complexidade seja menor, porém, na análise de sociedades mais complexas não se deve fugir dos efeitos das multissocializações. Nas palavras de Lahire (2004, p. 321):

Não se trata absolutamente de ceder à ilusão positivista de poder apreender a totalidade de uma “personalidade” em todas as facetas de sua existência. Porém, evitar o apagamento ou a eliminação sistemática dos dados heterogêneos e contraditórios, cruzando os múltiplos dados de arquivo sobre o mesmo indivíduo, abordando-o por meio de aspectos muito diferentes de sua atividade social, em vez de simplesmente fazer seu retrato coerente como artista, rei, guerreiro, estadista ou religioso – sob o pretexto de que a ciência é forçosamente simplificadora e de que a reconstrução científica é inevitavelmente mais coerente do que a realidade ou de que a ciência põe necessariamente ordem na desordem relativa do mundo empírico – é uma maneira de renovar o gênero biográfico em história, fazendo dele um lugar experimental (no sentido de lugar de experiências, de testes) de reflexão metodológica.

A metodologia da sociologia à escala individual parte do pressuposto de que o ator social é uma “complexidade irredutível”, cujas disposições muitas vezes apresentam um grau elevado de descontinuidades. Estas, por sua vez, precisam ser analisadas em suas particularidades a fim de compreender com mais detalhes o complexo social que existe dentro da singularidade de cada indivíduo.

É importante ressaltar, mais uma vez, que a proposta metodológica de Lahire não consiste em interpretar o indivíduo como dessocializado. Embora o foco da pesquisa seja a escala individual, ele parte do pressuposto de que o social está no indivíduo e, por isso, o pesquisador deve explorar essas duas esferas nas entrevistas.

A metodologia da sociologia à escala individual tenta, portanto, detectar em que medida as estruturas sociais são interiorizadas nos indivíduos através do exercício das múltiplas disposições e como estas são atualizadas ou inibidas em sua relação com os contextos presentes.

Em resumo, nas entrevistas o sociólogo deve analisar a gênese das disposições, a partir dos contextos sociais em que foram geradas e quais delas foram atualizadas ou abandonadas nos novos contextos sociais em que os indivíduos interagem. A partir desse quadro geral, percebe-se o nível de variações disposicionais diacrônicas e sincrônicas na singularidade de cada indivíduo.

Tendo resumido as características metodológicas gerais da sociologia à escala individual, na próxima seção nos deteremos ao conceito de “retrato sociológico”, identificando suas vantagens e desafios.