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CAPÍTULO 2 – CASO ALCENI GUERRA

2.2. A SUPOSTA COMPRA SUPERFATURADA DE BICICLETAS POR ALCEN

Brasília, quarta-feira, 4 de dezembro de 1991. Neste dia começava o calvário do então ministro da Saúde e do presidente da época, Fernando Collor de Mello. O Jornal Correio Braziliense trazia reportagem de capa, sob título ―Saúde compra 22 mil bicicletas superfaturadas‖135. O título de três linhas em uma coluna na parte superior do jornal ficava

em evidência. A chamada de 26 linhas, cerca de 1,2 mil caracteres, trazia os supostos indícios de corrupção cometidos pelo ministro.

Por um preço quase 50 por cento acima do mercado, a Fundação Nacional de Saúde (FNS), vinculada ao Ministério da Saúde, adquiriu 22 mil e 500 bicicletas para agentes comunitários por Cr$ 3 bilhões, 307 milhões e4 500 mil. As bicicletas marca CaloiPoti FM custaram à Fundação Cr$ 147 mil a unidade, enquanto que em

134 CONTI, 1994, p. 494.

135O que é interessante reparar no título da chamada é o pré-julgamento, sem deixar o texto no condicional. O

jornal considera praticamente o fato consumado e diz que houve superfaturamento. Não utiliza a palavra ‗pode‘, ‗suspeita‘. Mas, se antecipa e prejulga o ministro acusando-o de ter cometido o crime – nesse caso de corrupção como veremos mais à frente.

Brasília as concessionárias Caloi estavam vendendo cada uma a Cr$ 99 mil, pelo menos até segunda-feira136.

Fig. 1

A reportagem assinada pela jornalista Isabel de Paula afirmava que "por um preço quase 50% acima do mercado, a Fundação Nacional de Saúde (FNS), vinculada ao Ministério da Saúde, havia adquirido 22.500 bicicletas para agentes comunitários por Cr$ 3 bilhões, 307 milhões e 500 mil.

As bicicletas, marca Caloi Poti FM, custaram à Fundação Cr$ 147 mil a unidade, enquanto em Brasília as concessionárias Caloi estavam vendendo cada uma a Cr$ 99 mil. Pelos valores de mercado em Brasília, o governo poderia ter economizado mais de Cr$ 1 bilhão na compra137.

Nos dias que seguintes, o Correio continuou com as denúncias: "Saúde confessa superfatura de 22 mil bicicletas"; "TCU investiga superfatura de bicicletas"; "Escândalo das bicicletas derruba direção da FNS"; "Alceni culpa imprensa e sai de bicicleta".

Outros jornais e revistas fizeram publicações com acusações implacáveis e pouca checagem. Era como se estivessem praticando a chamada ‗imprensa-tribunal‘. O Jornal Folha de S. Paulo publicou na edição do dia 5 de dezembro, um dia após o ‗furo‘ do Correio

136 Correio Braziliense. Saúde compra 22 mil bicicletas superfaturadas. 4 de dezembro de 1991. Capa. 137 Correio Brasiliense. loc. cit.

Braziliense, matéria sob o título ―Saúde paga 50% a mais por 23,5 mil bicicletas‖, na capa, com o seguinte título na página interna138 ―Saúde compra bicicletas superfaturadas‖. E publicou outras matérias – com novos fatos, com novas acusações - nos dias subsequentes com os títulos ―Sem licitação, Saúde paga preço alto por 60 mil filtros‖ (6 de dezembro de 1991), ―Alceni recua e susta compra de bicicletas‖ (7 de dezembro de 1991), ―Alceni chora quatro vezes e diz que não pedirá demissão‖139.

O Jornal O Estado de S. Paulo, que também abordou o caso, trouxe em suas manchetes de página e chamadas de capas, títulos mais ponderados, mas não menos ‗prejudiciais‘ à imagem pública. Vejamos: ―Compra de bicicletas deverá ser investigada‖ (5 de dezembro de 1991), ―Preço de guarda-chuvas também fica sob suspeita‖ (6 de dezembro de 1991), ―Ministro da Saúde afasta assessores e apura licitações‖(7 de dezembro de 1991), ―Alceni suspende licitações sob suspeita‖ (mesmo dia, página interna), ―Alceni reclama da imprensa, chora e passeia de bicicleta‖ (8 de dezembro de 1991). Alceni suportou o bombardeiro de acusações contra ele por pouco mais de um mês.

No dia 23 de janeiro de 1992, entregou sua carta de demissão ao presidente Fernando Collor. No livro a Era do Escândalo, o ex-ministro diz que passou por situações jocosas e vexatórias no período de denúncias desse escândalo por parte da imprensa:

Tive de me acostumar a ser chamado nos jornais de ministro ―Mary Poppins‖, numa alusão jocosa à conhecida personagem do cinema imortalizada nas cenas em que aparece de sombrinha e bicicleta. Até meu pedido de demissão em 23 de janeiro de 1992, 48 dias depois da primeira denúncia, os ataques da mídia aniquilaram minha imagem pública140.

A contabilidade do ‗massacre‘ foi feita pelo próprio ex-ministro: mais de 100 horas de gravação de reportagens sobre escândalo das bicicletas na televisão. Se o escândalo das bicicletas fosse uma novela daria mais de 200 capítulos, além disso, foram contabilizados mais de 10 mil metros quadrados de notícias equivalente a cobrir a área de um hectare inteiro somente com notícias acusatórias.

Analisando ainda o Correio Braziliense, nota-se que saindo da capa e seguindo para a página interna, a jornalista Isabel de Paula afirmava em sua reportagem, cujo título já

138 Correio Braziliense. Saúde compra bicicletas superfaturadas. 5 de dezembro de 1991. Brasil, p. 10.

139 Aqui cabe uma observação interessante. Nesta matéria a Folha de S. Paulo traz Alceni Guerra, sentado numa

escadaria – muito parecida com uma sarjeta – ao lado do filho Guilherme, na época com 12 anos, e suas bicicletas estacionadas. Uma cena lastimável para um importante ministro da época, uma depreciação de imagem pública.

140 ROSA, 2007, p. 394.

condenatório ―Saúde compra bicicletas superfaturadas‖, repete as informações da capa e diz mais. ―Pelos valores de mercado em Brasília, o governo poderia ter economizado mais de Cr$ 1 bilhão na compra".

A reportagem trazia ainda uma foto de um funcionário da Caloi descarregando as bicicletas e a seguinte legenda: ―As primeiras bicicletas chegaram domingo à Fundação Nacional de Saúde. No detalhe, a nota de empenho no valor de Cr$ 3.307.500,00‖.

Nas edições seguintes, o Correio continuou com as denúncias: "Saúde confessa superfatura de 22 mil bicicletas"; "TCU investiga superfatura de bicicletas"; "Escândalo das bicicletas derruba direção da FNS"; "Alceni culpa imprensa e sai de bicicleta".

O que se percebe durante todas as reportagens acusatórias, que culminaram na demissão de Alceni Guerra em 23 de janeiro de 1992, foi o pouco espaço destinado para a defesa141. O ministro chegou, inclusive, a ser ridicularizado em uma reportagem do dia 6 de dezembro (p.8), cujo título trazia: ―Alceni: superfaturada é a mãe‖.

O que se percebe, além da falta de espaço adequado para a defesa e ainda o início da ‗ridicularização‘ da figura do ministro, é a proporção que a denúncia foi tomando – mesmo com poucas declarações de Alceni, mas com novos fatos surgindo a cada edição do jornal.

Quando um escândalo vem à luz, ele pode se espalhar rápido e incontrolavelmente porque os atos de fala e as imagens que sustentam o escândalo podem ser transmitidos a longas distâncias instantaneamente (ou de maneira praticamente instantânea) e, porque as redes de comunicação são tão ramificadas e complexas que é extremamente difícil conter revelações prejudicais142.

Ou seja, as ramificações desse caso ganharam contornos contra a figura do ministro da Saúde, uma campanha difamatória da qual foi vítima, segundo ele. Para contextualizar essa afirmação é preciso enfatizar a edição do Correio do dia 8 de dezembro de 1991 ―Alceni culpa a imprensa e sai de bicicleta‖. Aquela edição trazia uma foto de Alceni Guerra, em um Park Cicle de Brasília, em cima de uma bicicleta, com seu filho Guilherme, de 12 anos (fig. 2).

141 Nota-se aqui que o jornal praticamente já tem sua convicção de que Alceni é culpado, um atropelo sem

piedade da ética jornalística – deveria ocorrer uma apuração mais profunda nesse caso. O jornalista Luís Nassif, em seu livro o Jornalismo dos Anos 90, diz que a pressa em perseguir os furos, o receio de que a concorrência se antecipasse estimulou o estilo de ‗atire primeiro, pergunte depois‘. Assim fez o Correio nesse episódio.

Fig.2

A foto mostra um ministro constrangido pelo fato de ter seu filho sendo fotografado, naquele sábado no parque, com a imprensa fazendo ilações a um simples passeio de bicicleta com a compra dos objetos denunciados pelos jornais e revistas da época. Na edição de domingo, o Correio – mais uma vez – lembrava seus leitores sobre toda a denúncia, mas na página interna143 usou de um tom sarcástico para tentar ridicularizar a figura de Alceni. Em um trecho da reportagem, desta vez não assinada pelo repórter que a produziu diz:

As denúncias não abalaram o humor do ministro. Tanto que, após a entrevista coletiva, Guerra e seu filho foram até o Parque da Cidade e durante 1h25 minutos andaram de bicicleta dupla. ―É uma Monark‖, explicou Plínio Pereira, proprietário do Park Cicle, que aluga bicicletas aos frequentadores do Parque. O ministro, que estava trajando um abrigo verde e camiseta branca, com a frase: ―Em primeiro lugar as crianças‖, pagou Cr$ 2.500 pelo uso da bicicleta. Em menos de uma semana, esta é a segunda vez que Guerra vai se exercitar numa Monark no Parque da Cidade. Domingo passado, como lembra Pereira, Guerra alugou uma bicicleta e pedalou por quase duas horas. Três dias depois, o veículo utilizado pelo ministro, para exercício, era alvo de denúncia do Correio Braziliense, que apontava uma compra feita pelo FNS, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, de 22 mil e 500 bicicletas por um preço superfaturado. Ao ver os jornalistas ontem no Parque, em Brasília, Guerra teve um faniquito144·. Encostou a bicicleta no meio-fio e enquanto os fotógrafos e cinegrafistas não deixaram o local, o ministro não pedalou sua Monark145.

143 Correio Braziliense, 8 de dezembro de 1991, p.9.

144 O termo ‗faniquito‘ para classificar um possível descontentamento do ministro sobre a presença dos

jornalistas em um passeio no parque com seu filho de 12 anos, ao que tudo indica, mostra o senso do ridículo que o jornal quer levar Alceni Guerra. Segundo o dicionário Houaiss, faniquito é um ataque de nervos sem importância, sem gravidade. Mostra também como o Correio vem tratando o caso com certo desdém em relação ao ministro, já o prejulgando como se já soubesse o desfecho.

Na mesma página, o Correio revelava ‗novos fatos‘. Uma retranca (matéria menor que continua uma reportagem principal que tem o mesmo tema) trazia o título ―Estão surgindo mais suspeitas‖. Desta vez, o Correio falava em aquisição supostamente irregular de usinas de oxigênio. A reportagem afirmava que em setembro daquele ano, o Ministério comprou 60 mil filtros a preços que variavam de Cr$ 12 mil 450 a Cr$ 13 mil a unidade, quando os preços de mercado eram de Cr$ 7 mil 500 a Cr$ 10 mil. Mais: em outubro, o Ministério da Saúde contratou, sem licitação, a empresa Marters Engenharia por Cr$ 18,1 bilhões para supervisionar as obras de construção de Centros Integrados de Apoio à Criança e ao Adolescente (Ciacs), em todo o País. Foram adquiridos também 22 mil e 500 guarda-chuvas, por meio de uma licitação cujo superfaturamento estimado é de Cr$ 112 milhões.

Ou seja, a essa altura qualquer compra feita no Ministério da Saúde de Alceni Guerra era tido como superfaturada. Todos os fatos foram mostrados nesse caso pelo Correio como realidade e a denúncia principal (a compra das bicicletas) foi fragmentada em novas outras, que geraram novas outras, e assim por diante.

Essa característica da imprensa foi muito bem observada por Perseu Abramo. Vejamos o que ele diz:

Eliminados os fatos definidos como não-jornalísticos, o "resto" da realidade é apresentado pela imprensa ao leitor não como uma realidade, com suas estruturas e interconexões, sua dinâmica e seus movimentos e processos próprios, suas causas, suas condições e suas consequências. O todo real é estilhaçado, despedaçado, fragmentado em milhões de minúsculos fatos particularizados, na maior parte dos casos desconectados entre si, despojados de seus vínculos com o geral, desligados de seus antecedentes e de seus consequentes no processo em que ocorrem, ou reconectados e revinculados de forma arbitrária e que não corresponde aos vínculos reais, mas a outros ficcionais, e artificialmente inventados. Esse padrão também se operacionaliza no "momento" do planejamento da pauta, mas, principalmente no da busca da informação, na elaboração do texto, das imagens e sons, e no de sua apresentação, na edição146.

A mesma reportagem trazia também Alceni Guerra desmoralizado. Chorando enquanto dava entrevista. O Correio explorou a imagem, como se o ministro estivesse sucumbindo diante das denúncias (fig. 3). O ministro seguia num calvário que o levaria à crucificação. Suas explicações transformaram-se em novas provas. O Correio, nesse caso, deixou de dar atenção revelando as justificativas do ministro.

146 ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. 1º edição. São Paulo: Editora Fundação

Fig.3

Em seu livro O Consenso Forjado, Francisco Fonseca, deixa clara sua posição sobre a omissão de fatos e personagens, por parte da grande imprensa. Para ele, é uma maneira de impor seu pensamento à opinião pública, com ausência do contraditório:

―(...) afinal, é usual aos periódicos a omissão de temas, questões e personagens, sobretudo quando se trata de argumentos/interesses de adversários. Em outras palavras, a omissão deliberada é uma forma de posicionamento, pois a ausência implica presença do que se quer ocultar (sobretudo em termos políticos e tendo em vista o papel da imprensa‖147.

Milton José Pinto diz que a narrativa funciona como uma forma de sedução e, dessa forma, seria uma maneira de impor pensamentos e induzir as conclusões que interessam ao narrador.

(...) todo discurso é um simulacro interesseiro, produzido com o objetivo de se conseguir ―dar a última palavra‖ na arena da comunicação, isto é, de ter reconhecida pelos outros as representações, identidades e relações sociais construídas por seu intermédio. Os textos narrativos são os exemplos mais espetaculares disso: a narração é um dispositivo instrumental de distribuição de afetos a serviço da sedução e cooptação ou, como diz o mesmo F. Lyotard (1973, 173) ―toda narrativa é não somente o efeito de uma metamorfose de afetos, mas também produz um outro, a história, a diégese‖, o referente enfim. Não à toa a narratio é considerada pelos especialistas em retórica como uma parte decisiva da dispositio ―por suas virtudes

147 FONSECA, 2005, p. 28.

explicativas‖, leia-se por sua capacidade de produzir uma ―realidade‖ alinhada com os interesses do emissor. (itálicos do autor, grifos meus)148.

Como já foi citado anteriormente, pode-se classificar esse ‗estilo‘ da imprensa, definido por Perseu Abramo, como ―padrão ocultação‖ da grande imprensa.

Não se trata, evidentemente, de fruto do desconhecimento, e nem mesmo de mera omissão diante do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre determinados fatos da realidade. Esse é um padrão que opera nos antecedentes, nas preliminares da busca pela informação, (...) naquilo que na imprensa geralmente se chama de pauta. (ênfases minhas)149.