• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – CASO ALCENI GUERRA

2.9. AS REPORTAGENS ACUSATÓRIAS

Depois de explicarmos o porquê a Folha não poupou o ministro Alceni Guerra, torna-se imprescindível analisar que, a exemplo dos demais jornais e da Revista Veja já mencionados nesse trabalho, o jornal paulista também acompanhou passo a passo as denúncias contra o ministro. A primeira reportagem foi publicada na edição de 5 de dezembro de 1991. Por um período de uma semana ininterrupta, a Folha trouxe em suas páginas, ao menos, uma reportagem sobre as acusações.

―Saúde paga 50% a mais por 23,5 mil bicicletas‖ foi a primeira matéria, de capa do jornal. Nela, o periódico afirmava com ‗convicção‘199 que o Ministério da Saúde comprou

23,5 mil bicicletas pagando pelo menos 50% acima dos preços de mercado. ―Adquiridas por Cr$ 3,3 bilhões de uma empresa paranaense, as bicicletas são destinadas a agentes de saúde da região Nordeste e Norte. O Tribunal de Contas da União pediu investigação da transação. O ministro da Saúde, Alceni Guerra, não quis comentar o caso‖200.

O primeiro equívoco nessa chamada de capa pode ser considerado o fato de a Folha ter afirmado que o ministro não quis comentar o caso. Não quis ou não foi procurado? Na página interna do jornal, não é especificado ou explicado esse fato. Não houve defesa do ministro sobre o episódio. De acordo com a mesma reportagem da Folha, o caso das bicicletas seria a 2ª irregularidade em 15 dias.

198FONSECA, 2005, p. 150-151.

199 Nota-se aqui os verbos utilizados pela Folha, sempre no presente, excluindo totalmente a possibilidade de

uma suspeita.

O superfaturamento de preços na compra de bicicletas é o segundo caso de suspeita de irregularidade verificado no Ministério da Saúde, num prazo de 15 dias. No dia 23, a Folha revelou um contrato no valor de Cr$ 18 bilhões com a Maters Consultores Associados, realizado sem licitação201.

E, no caso da cobertura da Folha de S. Paulo, uma única denúncia – do caso da compra das bicicletas – se transformara numa bola de neve. Já nas edições seguintes foram publicadas mais denúncias. Na edição do dia 6, por exemplo, o ministro agora era acusado de comprar, sem licitação, 60 mil filtros pagando um preço alto.

Na linha fina, abaixo do título ―Sem licitação, Saúde paga preço alto por 60 mil filtros‖, o seguinte: Produtos foram comprados em setembro com custo superior ao de mercado. A reportagem, de cerca de 2 mil caracteres, com abre de página, trazia uma defesa de apenas 400 caracteres com o ministro tentando se defender. ―Ministro alega preço do frete‖. O detalhe é que o jornal não deu qualquer espaço para que ele pudesse falar sobre os filtros.

A defesa dele, de apenas 400 caracteres, era sobre as bicicletas. A essa altura as denúncias ‗pipocaram‘ na imprensa. Num pequeno texto/espaço dado pelo jornal, Alceni afirmava que não houve superfaturamento de preços na compra de 23,5 mil bicicletas. ―Superfaturamento é a mãe de quem está inventando isso. Provamos que os preços eram inferiores aos da fábrica e que o acréscimo em relação ao varejo deve-se aos custos de frete e armazenagem‖202.

De acordo com Eugênio Bucci, em seu livro ―Sobre Ética e Imprensa‖, há um tábua de pecados cometidos pela imprensa. Com base nas ideias de Ciro Marcondes Filho, no livro ―Comunicação e Jornalismo: A saga dos cães perdidos‖, são, ao todo, doze deslizes, compilados pelo autor com base em livros e artigos.

No livro de Bucci são citados alguns deslizes que, ao serem analisados, podemos chegar a conclusão que, a Folha de S. Paulo, e também todos os outros periódicos analisados nesse trabalho cometeram203.

1 – Apresentar um suspeito como culpado: Durante toda a cobertura, Alceni Guerra foi apresentado como culpado condenado. Os meios de comunicação, nesse caso, foram implacáveis. As denúncias, a cada dia, se avolumaram. O ministro faz declarações importantes sobre essa característica da imprensa, a de o considerarem culpado e também o

201 Folha de S. Paulo, 5 de dezembro de 1991, p.10.

202 Folha de S. Paulo. Sem licitação, Saúde paga preço alto por 60 mil filtros, 6 de dezembro de 1991, p. 4. 203 Ao longo de estudo dos erros da imprensa nota-se que todos os jornais e a revista analisados publicaram

reportagens com abordagem muito semelhantes. O espaço dado ao investigado, quando dado, foi muito igual em todos os espaços da mídia.

fato de as acusações se transformarem em outras novas acusações. Ele chegou a abrir auditorias na tentativa de dar uma resposta positiva à imprensa e cessar as acusações. Mas, não adiantou.

Dentro do cenário de enormes pressões, eu não só não tinha controlado a crise como produzira a maior fúria jornalística já vista no Brasil. Abrir o ministério para auditorias foi um erro. A imprensa não queria a verdade, queria destruir o ministro de maior evidência em um governo que ela detestava. Para cada explicação, uma nova acusação. No carrossel de denúncias, era impossível se defender. Quando os ataques passaram para a esfera pessoal eu me senti como os animais que são linchados em praça pública no ritual conhecido como ―farra do boi‖, que acontece na Semana Santa em várias comunidades de Santa Catarina. Os bois são soltos nas ruas e passam a ser perseguidos implacavelmente pelos habitantes dos vilarejos, armados de porretes, pedras, facas e lanças. A farra só acaba quando o animal está morto204.

Foi como se Alceni Guerra, abrindo uma auditoria para investigar as denúncias, tentasse dar uma resposta para o que a imprensa gostaria de ouvir. Esse fato, aliás, já foi observado por Manoel Castells.

(...) os atores políticos acabam tendo de obedecer às regras e sujeitar-se aos recursos tecnológicos e interesses da mídia. A política passa a ser inserida na mídia. E porque o governo depende de reeleições, ou eleições para um posto mais elevado, o próprio governo fica também dependente de sua avaliação diária do impacto potencial de suas decisões sobre a opinião pública, mensurado por meio de pesquisas de opinião, grupo de teste e análises de imagens205.

O efeito preterido por Alceni, no entanto, foi contrário. Apesar de tomar decisão de abrir autoria, o caso ganhou mais repercussão com surgimento de novas denúncias. Citando Sandra Moog, Castells diz que as afirmações de profissionais da mídia sobre política transformam-se em acontecimentos políticos por si próprios, e a cada semana são proclamados os vencedores e os vencidos na corrida política. É o que já foi denominado em capítulos anteriores, da ‗trama novelesca‘ nas coberturas dos escândalos políticos.

Atualmente os eventos divulgados nas notícias tendem a diluir-se em meras discussões sobre reações do público a mais recente cobertura da imprensa. Quem são os vencedores e os vencidos, quais personalidades estão com os índices de popularidade em alta ou em baixa, como consequência de eventos políticos do mês, da semana ou do dia anterior. A realização frequente de pesquisas de opinião pelas agências de noticias permitem esse tipo de hiperreflexividade ao fornecer uma base supostamente objetiva para especulações dos jornalistas sobre os impactos das

204 ROSA, 2007, p.410.

205 CASTELLS, Manuel. A política informacional e a crise da democracia. Tradução Klauss Brandini Gerhardt.

ações políticas e as respectivas reações da imprensa a tais ações, mediante a avaliação popular de diversos políticos. 206

O que pode ser analisado, no caso Alceni Guerra, se confirma no que diz Sandra Moog. Por parte da cobertura, tanto da Folha como dos demais jornais e a revista analisada, foram, sem dúvida, especulações e mais especulações de assuntos no noticiário, com uma espécie de termômetro para saber quando o ministro ia cair.

Voltando então aos deslizes, o segundo também é apontado no livro de Bucci.

2 – Vasculhar a vida privada das pessoas, publicar detalhes insignificantes de personalidades e de autoridades para desacreditá-las – Esse deslize foi observado dentro do estudo desse trabalho. Todos os jornais vasculharam a vida de Alceni, inclusive com reportagens publicadas quando o ministro fazia um simples passeio em um parque da cidade. Veja um trecho da reportagem da Folha na edição de 8 de dezembro de 1991. O título daquele dia: ―Alceni chora quatro vezes e diz que não pedirá demissão‖.

O ministro da Saúde, Alceni Guerra, chorou ontem quatro vezes durante entrevista no Ministério da Saúde. Ele afirmou que não pensa em pedir demissão. Estava acompanhado do filho Guilherme, 12. As denúncias de supostas irregularidades atingiram um dos ministros preferidos do presidente Fernando Collor de Melo. Responsável pela principal obra social do governo, os Ciacs, Alceni foi o alvo da semana207.

A célebre foto de Alceni na sarjeta sentado, ao lado do filho, com uma bicicleta também foi publicada nas edições da Folha (fig. 7).

206 CASTELLS, Manuel apud. MOOG, Sandra, p. 379.

Fig. 7

A edição do dia 7 da Folha é mais curiosa. Nela, aparece a manchete sobre o principal assunto: ―Alceni recua e susta compra de bicicletas‖.

Proposital ou não a foto principal da capa naquele dia não é de Alceni e sim do presidente Fernando Collor, ao lado do então governador Luiz Antônio Fleury Filho.

A legenda da foto diz: ―Incomodado por uma coceira no olho, Collor acompanha com o governador Luiz Antônio Fleury Filho formatura de cadetes da Academia da Força Aérea de Pirassununga (SP)‖.

Mas observando a foto (fig. 8) nota-se que profundamente analisada, ela pode ou não ter sido colocada ao lado da manchete sobre as denúncias de Alceni Guerra. É como se o jornal quisesse dizer: ―Collor precisa abrir os olhos para os atos de corrupção de seu ministro da Saúde‖. Mas, reparando analiticamente, percebe-se um Collor em atitude característica de

uma pessoa que diz para a outra: ―Vou abrir o olho‖ e acima coincidentemente ou não a manchete sobre as denúncias de Alceni.

Fig. 8

Esse tipo de instrumento ‗oculto e sub-liminar‘, utilizado pela mídia, como fez a Folha nesse episódio, pode ser equiparado ao que o Perseu Abramo chamaria de ―Inversão da relevância dos aspectos‖. ―O secundário é apresentado como o principal e vice-versa; o particular pelo geral e vice-versa; o acessório e supérfluo no lugar do importante e decisivo; o caráter adjetivo pelo substantivo; o pitoresco, o esdrúxulo, o detalhe, enfim, pelo essencial208‖.

O terceiro deslize apontado no livro de Eugenio Bucci também tem grande relevância. 3 – Construir uma história falsa, seja em apoio a versões oficiais, seja para justificar uma suspeita – Aqui os jornais, como a Folha, cometeram esse erro ao publicarem denúncia de corrupção que não existia e que foi comprovadamente desmentida, após reconhecido pela

Justiça e pelos próprios meios de comunicação ou jornalistas que acompanharam o caso na época.

O maior problema, como já revelamos anteriormente, é que a imprensa geralmente dá muito mais importância para as notícias negativas, ainda mais quando se trata de escândalos. Manuel Castells, em ―A política informacional e a crise da democracia‖, também identificou essa característica.

A fim de compreender a inserção da política na lógica dos meios de comunicação, devemos atentar para os princípios fundamentais que regem a mídia informativa: a corrida em busca de maiores índices de audiência, em concorrência direta com o entretenimento; e o necessário distanciamento da política, para conquistar credibilidade. Isso se traduz nas tradicionais premissas para uma boa cobertura de notícias, conforme Gitlin: ―As notícias devem estar voltadas ao evento, não às condições a ele subjacentes; na pessoa, não no grupo; no conflito, não no consenso; no fato que ―antecipa a história‖, não naquele que a explica‖. Somente as ―más notícias‖, referentes a conflitos, cenas dramáticas, acordos ilícitos ou comportamentos questionáveis são noticias interessantes. Considerando que as notícias são cada vez mais submetidas à concorrência dos programas de entretenimento ou de eventos esportivos, o mesmo acontece com sua lógica. Ela exige cenas dramáticas, suspense conflito, rivalidades, ganância, decepções, vencedores e vencidos e, se possível, sexo e violência‖209.

Está aí um prato cheio para a grande imprensa brasileira. O caso Alceni Guerra teve um pouco de tudo: cenas dramáticas (um passeio com o filho no parque, o choro do ministro), ganância, suspense, conflito, rivalidade (vejamos então a missão de Alceni para tentar emplacar uma aproximação entre Leonel Brizola e o empresário Roberto Marinho). Também teve vencedores e vencidos. O vencido foi o ministro da Saúde, demitido pelo presidente Collor após as denúncias de superfaturamento na compra de bicicletas e seu desgaste político.

4 – Publicar o provisório e o não-confirmado para obter o furo. Transformar rumor em notícia – Foi outra característica, dentro dos deslizes da imprensa, citados por Bucci. Uma falha inadmissível e cruel que pode trazer prejuízos inimagináveis à figura pública. Nesse contexto praticamente só existe espaço para o negativo. No livro a Era do Escândalo, o próprio Alceni conta que ―uma outra vertente da competição era no sentido de quem atirava mais, que ia conseguir derrubar o ministro. Qual a manchete ia resultar na minha demissão‖210.

A característica citada por Bucci também é confirmada por Perseu Abramo. Ele diz que não é o fato em si (nesse caso o verdadeiro) que passa a importar, mas a versão que dele 208ABRAMO, 2003, p. 29.

209 CASTELLS, 2000, p. 379. 210 ROSA, 2007, p. 408.

tem o órgão de imprensa, seja essa versão originada no próprio órgão de imprensa, seja adotada ou aceita de alguém – da fonte das declarações e opiniões211.

Ou seja, a posição da grande imprensa, como se pode observar na cobertura da Folha de S. Paulo, e dos demais órgãos estudados nesse episódio foi clara. Os jornais abriram os olhos para uma denúncia não comprovada e os fecharam para uma ‗investigação jornalística‘ mais profunda e cuidadosa no trato das análises políticas.

A meu ver, jornais e a Revista Veja, deram a notícia sem qualquer preocupação assumindo conscientemente um possível erro posterior. É como veremos nos próximos capítulos: jornalistas têm características intrínsecas dentro desse setor. Eles se apresentam como representantes do que chamam de interesse público, que muitas vezes, na verdade, se confunde com o interesse do público. No entanto, existe um argumento insofismável de que a imprensa é uma atividade privada.

Ainda remetendo-se às opiniões de Abramo e Bucci, em que se publica fatos não confirmados como sendo verdadeiros, há uma referência importante no livro Padrões de Manipulação da Grande Imprensa, do primeiro autor.

O órgão de imprensa praticamente renuncia a observar e expor os fatos mais triviais do mundo natural ou social, e prefere, em lugar dessa simples operação, apresentar as declarações, suas ou alheias sobre esses fatos. Frequentemente, sustenta as versões mesmo quando os fatos as contradizem. Muitas vezes, prefere engendrar versões e explicações opiniáticas cada vez mais complicadas e nebulosas a render- se à evidência dos fatos. Tudo se passa como se o órgão de imprensa agisse sob o domínio de um princípio que dissesse: se o fato não corresponde à minha versão, deve haver algo errado com o fato212.