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2.3 SOBERANIA E A SUPRANACIONALIDADE

2.3.4 A supranacionalidade como elemento de integração dos blocos regionais

A supranacionalidade traz ínsita a ideia de uma instância que se coloca acima da nação. No âmbito das organizações internacionais formadas por Estados, a presença da supranacionalidade faz com que determinada organização internacional seja alçada a um patamar hierárquico superior ao dos Estados, tornando as suas normas cogentes, devendo ser imediatamente cumpridas dentro do território de cada Estado-membro. De acordo com Marcos Reis, a supranacionalidade consiste:

(...) a) na existência de instâncias de decisão independentes do poder estatal, as quais não estão submetidas ao seu controle; b) na superação da regra da unanimidade e do mecanismo de consenso, já que as decisões – no âmbito das competências estabelecidas pelo tratado instituidor – podem ser tomadas por maioria (ponderada ou não) e c) no primado do direito comunitário: as normas originadas das instituições supranacionais têm aplicabilidade imediata nos ordenamentos jurídicos internos e não necessitam de nenhuma medida de recepção dos Estados59.

Ao instituir órgãos supranacionais, sobretudo nos blocos regionais, os Estados-membros estarão aptos a superar os seus interesses individuais e voltar a sua atenção para o bloco para atuarem de forma conjunta e coesa, na busca pacífica de soluções para os problemas sociais e econômicos que atingem a região. Desse modo, a persecução por objetivos comuns exige que a estrutura institucional supranacional seja fundamentada em órgãos independentes, integrados por funcionários que atuam desvinculados de sua nacionalidade e que representam a vontade institucional da organização internacional de cunho supranacional.

A supranacionalidade é a chave para obtenção de uma efetiva e profunda integração entre os Estados-membros de um bloco regional, cuja atuação pode auxiliar na superação de dificuldades locais,

já que por vezes Estados isolados resistem em concretizar medidas protetivas ao meio ambiente, ou insistem em desenvolver políticas internas que inviabilizam o alcance de melhores condições de vida à população ou a grupos da população, muitas vezes em razão da manutenção de estruturas sociais arcaicas e de preconceitos ainda renitentes.60

Por meio da supranacionalidade, o Estado consegue potencializar o seu esforço, utilizando -se da energia conjunta dos demais membros, para galgar uma melhor posição econômica e política, tornando-se mais influente no cenário mundial.

59 REIS, Márcio Monteiro. Mercosul, União Européia e Constituição: a integração dos Estados e os ordenamentos jurídicos nacionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 65.

60 CASALI, Saulo. O Mercosul e seus projetos institucionais. In: CASALI, Saulo (Org.). A efetividade dos

Ainda, sob o ponto de vista econômico, a instituição de órgãos supranacionais possibilita a harmonização das políticas macroeconômicas na região, evitando a colisão de políticas econômicas nacionais e demais ações unilaterais e, por consequência, viabiliza, na prática, a instituição de um mercado comum, que é o anseio da grande maioria das organizações internacionais de cunho regional. Ainda, “decerto um tal regime também irá conquistar, graças à sua ampla base geográfica e econômica, vantagens na concorrência internacional e poderá reforçar a sua posição diante de outros”.61

Além disso, quando destituído do caráter supranacional, o bloco regional é centrado no Estado e na sua manifestação de vontade, com pouca ou nenhuma participação da sociedade civil. Por outro lado, quando configurada a supranacionalidade, existe uma maior possibilidade de acesso dos cidadãos às instituições do bloco regional, tornando-o mais transparente. Consequentemente, as normas por ele expedidas se mostram dotadas de uma maior legitimidade. Por exemplo, na União Europeia, através do direito geral de petição, é possível o acesso do cidadão ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

Um forte argumento a favor da instituição da supranacionalidade é a vontade exteriorizada pela maioria dos cidadãos de países latino-americanos no que tange à integração política na região. Apesar de se tratar de um tema polêmico, através de um estudo realizado em 2017 pelo Latinobarômetro, uma organização não-governamental destinada a analisar a opinião pública de países da América Latina, 62% das pessoas entrevistadas, isto é, a maioria, se mostram favoráveis à integração política62. Os cidadãos estão cada vez mais conscientes de que o caminho para o desenvolvimento socioeconômico de seus respectivos países passa necessariamente por uma integração regional com os demais países vizinhos. Essa demanda popular pela integração política não pode passar despercebido pelos representantes dos Estados.

Sob o ponto de vista cultural, o aprofundamento da integração regional, mediante a criação de órgãos supranacionais, auxiliaria na promoção de uma conscientização de pertencimento do cidadão para com o bloco regional. Em outras palavras, auxilia na criação de uma identidade regional com a qual os povos dos Estados-membros se identifiquem.

61 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Trad. SELIGMANN-SILVA, Márcio. São Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 70.

62 BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO. La tecno-integración de América Latina:

instituciones, comercio exponencial y equidade en la era de los algoritmos. Disponível em:

No aspecto jurisdicional, a criação de uma corte de justiça dotada do caráter supranacional implicaria em grande avanço para o processo de integração regional, diante da uniformização da jurisprudência quanto à interpretação e aplicação das normas expedidas pelo bloco regional uma vez que os tribunais e juízes nacionais dos Estado-membros estão sujeitos à observância da interpretação das normas realizada por esta corte supranacional. Ainda, as decisões exaradas por esta corte teriam aplicabilidade imediata, devendo ser cumpridas de imediato pelos Estados envolvidos, sem a necessidade do procedimento de internalização de norma, que é o que ocorre no sistema intergovernamental, no qual referidas normas ficam à mercê dos agentes nacionais responsáveis pela internalização, seja através de ato administrativo, seja através de lei.

Pela análise detida da supranacionalidade, é possível vislumbrar que a mesma promove a integração regional de uma forma mais aprofundada, em seus diversos aspectos, seja no âmbito econômico, social, cultural, jurídico etc., sem violar a soberania estatal ou que possa, de qualquer outro modo, fragilizá-la. Para Cynthia Soares Carneiro:

Um sistema jurídico-econômico unificado justifica-se, sistematicamente, pela necessidade de se conferir segurança jurídica aos contratos firmados, tanto no âmbito interno, como no âmbito extraterritorial; pela garantia de liberdade de produção e circulação de mercadorias e serviços, ao menos nos limites desse espaço integrado; pela possibilidade de implantação das mesmas políticas governamentais, unificadas no âmbito territorial regional, e pela certeza de uma mesma ordem tributária.63

Naturalmente, para que a ordem supranacional possa funcionar, estabelecem-se como premissas fundamentais: a) a primazia da mesma sobre a ordem interna, ficando resguardado o direito de denúncia do Estado-parte, e; b) a sua atuação subsidiária, não devendo intervir nos assuntos que podem ser solucionados no âmbito interno de cada Estado.

O grande empecilho para a instituição de outros blocos regionais com natureza supranacional, à semelhança da União Europeia, é a consciência por parte dos governantes e governados de que se inserem numa comunidade mais ampla que a sua nação e que, juntos, em conjunto com outros países, devem cooperar para atingir suas finalidades e interesses. Não é sem razão que Jürgen Habermas pondera:

A questão decisiva é, portanto, se pode surgir uma consciência da obrigatoriedade da solidariedade cosmopolita nas sociedades civis e nas esferas públicas políticas dos regimes geograficamente amplos que estão se desenvolvendo. Apenas sob essa pressão de uma modificação da consciência dos cidadãos efetiva em termos da política interna, a autocompreensão dos atores capazes de atuar globalmente também

63 CARNEIRO, Cynthia Soares. O direito da integração regional. Belo Horizonte: Del Rey Editora 2007, p. 181.

poderá se modificar no sentido de eles se compreenderem cada vez mais como membros do quadro de uma comunidade internacional e que, portanto, se encontram tanto submetidos a uma compreensão incontornável como também, consequentemente, ao respeito recíproco dos interesses. Tal mudança de perspectiva – das “relações internacionais” para uma política interna mundial [Weltinnenpolitik] – não pode ser esperada da parte das elites governantes se a população mesma não realizar de modo convicto tal mudança de consciência a partir dos seus próprios interesses.64

Assim, a partir da conscientização pelo povo e pelos seus governantes de que a participação em organizações internacionais de cunho regional com caráter supranacional traz benesses para todos os povos envolvidos, facilitando o alcance de objetivos comuns nas áreas econômica política, social, cultural etc., de forma mais célere e facilitada, é possível modificar os parâmetros das relações entre Estados e promover uma melhor aceitação da noção de supranacionalidade.

64 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Trad. SELIGMANN-SILVA, Márcio. São Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 71.

3 O MERCOSUL

3.1 O SURGIMENTO DO MERCOSUL E O SEU PROTAGONISMO NA AMÉRICA DO