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PARTE 2 – ESPETÁCULOS TEATRAIS E SUA RELAÇÃO COM O ESPAÇO DA

2.2 Grupo Tá Na Rua

2.2.2 A teatralidade urbana no trabalho do grupo Tá Na Rua

Para o grupo, a teatralidade como um todo, só poderia existir no espaço da rua: “Não existe teatralidade num prédio teatral. Uma caixa preta, com um monte de

cadeiras perfiladas não significa teatralidade, mas sim, arquitetura”, aponta Licko

Turle. Pode-se compreender que esse pensamento de Turle se refira à teatralidade como uma forma de inserção no real, como cita Féral (2003) acerca da relação do teatral imerso no âmbito da realidade. Sendo o espaço urbano um local, por si só, impregnado de realidade em função de sua estrutura: violência, trânsito, pessoas. Em uma sala de teatro convencional em um prédio fechado, a teatralidade muitas vezes, já está implícita, por ser um ambiente repleto de simbologias e significações. No teatro, o palco por si só teatraliza o que será assistido pois foi construído para esse fim ao contrário da rua, que possui outros atributos e funções no cotidiano da população. Com base nisso, Turle comenta a relação que o grupo Tá Na Rua desenvolve com o espaço urbano e com suas vias públicas:

Na rua, existem as relações, temos que exercer vários papéis sociais para continuarmos vivos. Temos que reagir à violência e ao amor; ao sol e à chuva; ao dia e à noite. Temos que viver. Fazer muito teatro. É pública, é de todos. Em casa, é privado, para poucos, para a família. Só existe um papel permitido (Licko Turle).

Esse entendimento do grupo em relação à teatralidade pode ser conectada às ideias de relação com o público e de risco teatral, elementos que em salas fechadas de teatro (com algumas exceções), são raros devido ao distanciamento palco-platéia. O espaço da rua também possui componentes que são facilmente teatralizáveis como camelôs, moradores de rua e outros. Também os fluxos de movimentação urbana podem ser comparadas à belas coreografias artísticas, como o trânsito e os pedestres em direção à seus compromissos do dia, em uma fluidez que apenas é contida por semáforos e placas.

Neste contexto, também Haddad expõe que umas das questões pertinentes à sua pesquisa com o grupo é a compreensão da cidade como algo intrinsecamente teatral, como um local impregnado de possibilidades artísticas.

Venho trabalhando a ideia de que a cidade é por si só teatral, é dramática, e que o teatro está impregnado dessas possibilidades de expressão. Ideia que me leva a procurar eliminar, o mais possível, a diferença entre cidadão e artista, e a criar um espaço onde é possível a cidadania se manifestar artisticamente; a buscar não separar uma parte da cidade para celebrar o teatro ou pegar um pedaço da cidade e colocar dentro de um edifício para que ela esteja ali simbolizada, mas sim, pensar toda a cidade como uma possibilidade teatral – ela é o espaço de representação, suas ruas e edifícios são a cenografia e os atores são os cidadãos (HADDAD, op. cit., p. 218 e 219).

A partir dessa busca do espaço urbano como espaço teatral, o Tá Na Rua afirma que é possível criar uma dinâmica com a cidade, deixando a arte na sua forma mais livre, na relação entre ator e público: “O teatro de rua não nasceu neste

século, nem neste milênio, nem no anterior. Ele nasceu com o homem. Há pouco tempo atrás, na revolução burguesa, inventaram o edifício-teatro, mas não o teatro”

(Licko Turle). Ainda, segundo o pensamento do ator e pesquisador, o teatro realizado em espaços fechados pertence apenas às camadas sociais que podem pagar para ter acesso às informações passadas no interior do teatro. Para Turle, se o público não tiver condições financeiras para pagar para ter acesso ao ambiente interno do espaço teatral, ele não poderá compartilhar o conhecimento e o processo proposto

pelo espetáculo.

Ao se apresentar em espaços abertos, onde a informação não é paga, o Tá Na Rua rompe com essa distorção. Leva a discussão ideológica para a rua, restaurando a idéia da Ágora grega, onde os temas que interessavam à pólis eram discutidos pelos cidadãos das cidades-Estado.[...] O simples ato de levar a instituição para fora do espaço privado, tornando-a pública, já inverte a lógica a ela inerente e questiona suas regras, torna-a vulnerável; revitaliza a verdade do discurso ideológico (TURLE, op. cit., 2008, p.70).

O ato de teatralizar o espaço urbano é, segundo Haddad, imanente às cidades – sejam elas grandes ou pequenas. Para o diretor, essa teatralização está nos cidadãos e em seus ritos de convivência pública, e que esta, embora não constantemente seja percebida, existe e se manifesta nas formas mais comuns:

“numa festa, numa barraca de cachorro-quente, num camelô que vende alguma coisa, em tudo” (HADDAD, op. cit., p. 218). Ainda neste pensamento, Haddad expõe

que o Teatro precisaria pensar mais a questão de utilização do espaço público, respeitando e compreendendo a dinâmica já preexistente deste espaço.

A cidade é o nosso cenário. Mas sentimos que há espaço para uma reflexão sobre a utilização do espaço público. [...] A questão da definição e da ocupação do espaço de representação é essencial para um trabalho livre, aberto e libertário como o nosso. Procuramos despertar nos atores uma profunda consciência a respeito da sua tridimensionalidade e colocação no espaço (Ibidem, p.127).

O Tá Na Rua acredita que, com base em suas experiências e pesquisas, compreendem a movimentação e o ritmo das estruturas urbanas de forma a se relacionar melhor com os seus cidadãos. Ao escolher as grandes praças, ruas e largos das cidades como local de apresentação, o grupo almeja introduzir-se no coração do espaço urbano, indo de encontro ao fluxo de pessoas que se concentra nesses lugares. Esses locais geralmente possuem pontos importantes na vida dos cidadãos, como lojas comerciais, escolas, bares, igrejas e outros.

A noção de fluxo de Canclini (1997) pode ser relacionada com esse pensamento, tendo em vista que esse local central da cidade é, muitas vezes, o único espaço de apropriação de muitos cidadãos que cotidianamente se utilizam desse lugar para trabalhar, fazer compras ou passear. Com a inserção de uma prática espetacular nesse ambiente, os passantes veem seu trajeto conhecido da cidade, momentaneamente descaracterizado e com outra proposta vigente. Essa

nova proposta traz para o local a ideia do todo, introduzindo o externo e o desconhecido naquele ambiente.

O grupo percebe que a maleabilidade da rua e seus imprevistos exigem dos atores uma maior disponibilidade e capacidade de improvisação, pois o fator do risco físico é algo presente para todos que se expõem cotidianamente no ambiente urbano:

Do ponto de vista do acabamento estético, o Tá Na Rua muitas vezes não consegue obter um grau de refinamento tão apurado quanto o de outros grupos brasileiros que investem seus esforços em espetáculos em salas fechadas. Não seria exagero afirmar que um tal nível de acabamento só é possível nos espetáculos realizados em espaço privados. Não é porque o público da rua seja menos inteligente ou exigente que o outro, mas devido à natureza transitória e fluida desse teatro que, para existir enquanto tal, precisa estar permanentemente aberto aos imprevistos de um espaço público, os quais são, em si, parte integrante do próprio espetáculo. Sendo a agilidade – mental e física – a sua natureza essencial, as qualidades imprescindíveis ao artista ‘de rua’ relacionam-se mais com a capacidade de ‘jogar’ e improvisar rapidamente, de interagir com todos os tipos de pessoas durante o espetáculo, do que com as habilidades técnicas convencionalmente atribuídas individualmente ao ‘bom’ ator, ainda que estas estejam baseadas na corporalidade, sensibilidade e inteligência (TURLE, op. cit., p.76-77).

De forma a concentrar o público em um ambiente teatralizado, a opção espacial para a realização dos espetáculos do grupo é o círculo. Esta escolha pode ser conectada ao pensamento de Denis Guénoun, em que este expõe sobre essa organização espacial específica:

o círculo é a disposição que permite que o público se veja. [...] é precisamente a estrutura que permite que as pessoas se vejam e distingam as demais não como massa, mas como reunião de indivíduos: permite ver os rostos – reconhecer-se. (apud TELLES in TELLES & CARNEIRO, 2005, p. 169-170).

O ato de colocar o público também em evidência pode ser considerado um ato de teatralizar o próprio momento do espetáculo multiplicando seus significados. Desta forma, os recursos utilizados pelo grupo buscam maior acesso ao espectador popular, mostrando que assim a teatralidade não está apenas no fato de se apresentar um espetáculo artístico para o espaço da cidade, mas ela também se encontra naquilo que a compõe: os atores que jogam com as possibilidades espaciais e o público que assiste uma ação neste local, que a teatraliza e a constitui.

A relação que o grupo mantém com o público é muito mais afetiva do que física. É visível o interesse do grupo em transformar locais comuns e de passagem em lugares reconhecíveis e passíveis de uma identificação com o observador.

Para o Tá Na Rua, a cidade é de todos e deve ser compreendida como um local acessível para o uso comum, e por que não, também para o uso teatral. O grupo compreende que a reapropriação da rua como um lugar histórico, ou seja, que faz parte da história do povo, faz parte do jogo social urbano. Relembrando fatos históricos, músicas antigas e notícias importantes para a nossa sociedade, o Tá Na Rua, joga com as memórias e o imaginário popular, teatralizando as recordações das pessoas que pararam para assistir o espetáculo. Essa questão, transforma os passantes em público e em criadores teatrais.

Com a reapropriação do espaço urbano pelo teatro, os cidadãos podem voltar a associar a rua, principalmente os grandes centros superpopulosos, como um local que pode prover prazer e diversão, e não apenas como um ambiente perigoso e selvagem dominado pela insegurança. É certo que a violência existe, mas para o grupo carioca, ela deve ter seus momentos de alívio durante uma apresentação cênica. O povo não pode sentir-se seguro apenas em casa, assistindo televisão e deduzindo estar à salvo do mundo inóspito que está lá fora. Também no próprio ambiente da rua esses momentos de paz e conscientização devem existir e o teatro pode ser reconhecido como um dos possíveis recursos para esse fim.