• Nenhum resultado encontrado

A teatralidade urbana no trabalho do grupo Teatro que Roda

PARTE 2 – ESPETÁCULOS TEATRAIS E SUA RELAÇÃO COM O ESPAÇO DA

2.1 Grupo Teatro que Roda

2.1.2 A teatralidade urbana no trabalho do grupo Teatro que Roda

que Roda, vemos a cidade e suas dinâmicas como algo central. Inicialmente, quando escolheu lugares de grande fluxo para suas apresentações, o grupo

compactuou com a ideia de inserir o ficcional dentro do espaço real. O fluxo de vida nas ruas dos centros urbanos é automático: sabe-se por onde está passando, sabe- se para onde está indo. O grupo propõe essa ruptura unindo realidade e vida com o jogo teatral. E realiza essa proposta com indícios iniciais de realidade, colocando uma mulher trajando um vestido branco de noiva (símbolo de pureza e amor para algumas sociedades), no alto de um prédio, presumindo-se - no olhar de quem vê - um possível suicídio por amor.

Essa cena assistida se transforma quando a mulher desce com o auxílio de cordas, seguida por um homem engravatado que fala de forma poética. Mas essa teatralidade é quebrada com o surgimento de uma pessoa com vestes surradas e maltrapilhas que parece não compreender que aquela cena é teatro e se insere de forma intrometida na história. A entrada desse “personagem” é dúbia: será um ator, uma atriz ou uma pessoa do povo? Só voltamos a perceber novamente a proposta teatral quando magicamente surgem objetos que são usados como figurinos e vão transformando esse ser em Sancho Pança e o homem engravatado em Dom Quixote.

O grupo Teatro que Roda trabalha com o chamado Teatro de Invasão. Eliodoraz define que o interessante nessa prática é realmente “desestruturar o

cotidiano e ver o que a cidade pode oferecer”. Para o grupo, alterar a movimentação

normal dos centros urbanos com uma prática espetacular acaba modificando também o olhar do público, fazendo com que este transforme “totalmente sua

energia, a ponto de parar o que estiver fazendo para acompanhar esse outro processo”, que é a peça teatral. Para Carreira (2008, p.75), “o ator que invade a rua e incomoda o transeunte, está deformando as linhas que definem a cidade”. Isto

acaba por definir uma nova escritura da própria estrutura da cidade, transformando-a para o olhar das pessoas de forma a sustentar o fenômeno espetacular. Quando o espaço urbano torna-se espaço cênico, passa-se a questionar e incitar uma reflexão sobre os valores dos próprios espaços.

No caso desta encenação, o espaço urbano se apresenta como o verdadeiro lócus da representação, isto é, ela não pode ser encaixada em um espaço teatral fechado, seu lugar de origem é e sempre será, a cidade. Isso se relaciona com a

noção de espaço de Christine Boyer (2008, p.7) da qual esta afirma que:

A cidade, sua arquitetura e o teatro foram entrelaçados, pois, afinal o teatro quase sempre é um reflexo das representações da vida pública, e o espaço público é freqüentemente organizado como se fosse um lugar para a representação teatral. [...] A palavra grega “theatron”, significa literalmente “lugar de ver”; demonstrando analogicamente que os espaços teatrais e arquitetônicos são ambos prismas culturais onde o espectador experimenta a realidade social e observa os mecanismos dessa realidade espacial metafórica, estabelecendo uma cena como autêntica e verdadeira, ou como fantasiosa e espetacular. (Boyer apud Lima, op. cit, loc. Cit).

Neste sentido, pode-se compreender que o grupo Teatro que Roda propõe uma reflexão das estruturas urbanas com seu espetáculo Das Saborosas Aventuras

de Dom Quixote de La Mancha e seu Escudeiro Sancho Pança - Um capítulo que poderia ter sido, mostrando que a representação teatral pode ser realizada em

qualquer local que se mostre mais adequado no espaço da cidade. Mas sendo a opção espacial desejada as ruas mais movimentadas, os atores precisam improvisar, tendo em vista que o ambiente da rua possui empecilhos e imprevistos. Liz comenta na entrevista que o grupo passou por situações como a vez em que um homem entrou em cena e a derrubou no chão dizendo que iria nascer um bebê da barriga de Sancho Pança.

Em outra situação, um policial à paisana, não sabendo que se tratava de um espetáculo de rua, assistiu a cena final do “sequestro” de Dom Quixote, foi em direção ao carro e apontou uma arma para a cabeça dos atores, que felizmente, conseguiram fugir. O grupo então compreendeu através destas situações que no ato da apresentação eles são responsáveis pela própria segurança e que na rua tudo pode acontecer: “depois a gente percebeu que somos muito malucos porque nós

não temos uma equipe que nos ajude, somos nós e aquilo” (Liz Eliodoraz). A

questão do risco do ator é elemento presente nesta encenação, ficando nas mãos dos componentes do grupo o ato de escapar desse tipo de situação e a perspicácia de conduzir a cena até o final.

O Teatro que Roda possui também ações provocativas dentro do fluxo urbano, como mostra a Imagem 5: uma retroescavadeira que conduz a personagem Dulcinéia de Dom Quixote é guiada pela rua, geralmente “atrapalhando” o trânsito e teatralizando o uso cotidiano e convencional desse equipamento pesado em sua relação com a cidade. Na apresentação que assisti durante o 21º Festival

Universitário de Teatro de Blumenau, a rua ao lado da Diocese da cidade foi interditada em uma sexta-feira, no fim da tarde, para a passagem de Dulcinéia montada no “monstro gigante” que vai em direção ao bravo Dom Quixote.

Imagem 5: Dulcinéia sendo conduzida durante apresentação. Fonte: André Carreira.

Quando algum local de nossa cidade está em obras, com escavadeiras, homens trabalhando, etc, isso acaba desestruturando temporariamente a ordem e a fluidez do trânsito de automóveis e pessoas. Ao colocar essa máquina na rua e atores interagindo com esse equipamento, o grupo Teatro que Roda rompe a questão do fluxo natural da cidade, da mesma forma que o exemplo da cidade em obras citado. Os atores se veem obrigados a enfrentar o fluxo, sem precisar avisar que estão apresentando uma peça teatral. Quando a cidade está em obras existem

placas avisando para o motorista andar mais devagar ou mesmo desviar. O Teatro que Roda não utiliza esse tipo de recurso. Os atores encaram o risco entre carros, caminhões, ônibus e um mar de pessoas presentes no espaço urbano, sem nenhum subterfúgio de sinais, placas ou avisos.

Este espetáculo também joga com as estruturas espaciais já conhecidas da cidade, se utilizando da perspectiva urbana de forma diferenciada da que conhecemos no Teatro de Rua convencional, que geralmente o público só precisa parar para assistir as ações propostas. Nos episódios de invasão das ruas e do trânsito, o público demonstra ansiedade e curiosidade sobre os próximos passos dos personagens e se mais surpresas surgirão. Isso, involuntariamente, obriga o espectador a repensar sua cidade e observar monumentos, prédios e fachadas já esquecidos, mas rememorados por essa apresentação. Podemos vincular aqui então, o fenômeno da recepção que destaca a teatralidade destes espaços utilizados na apresentação e observados pelo público. Podemos deduzir que o caso da menina que observou aquele homem engravatado e fez suas conexões com o ambiente da delegacia, acontece com outras pessoas em relação à outros locais.

As pessoas possuem suas próprias relações de ordem emocional, psicológica e afetiva com espaços urbanos, mesmo sem terem consciência desse fato. Igrejas, espaços públicos, prédios, lojas, restaurantes vivem em nosso imaginário, mesmo que inconscientemente. Este tipo de fazer teatral permite aflorar essas informações e lembranças, teatralizando nossas memórias, mas também rompendo-as. Esse pensamento pode ser conectado à noção de lugar de Marc Augé (1994), em que este diz que quando um ambiente cria relações com os sujeitos é porque ligações de identificação foram estabelecidas. Ao mesmo tempo podemos pensar que o espaço da rua também é um não lugar, ou seja, um local de passagem que o transeunte se utiliza para realizar suas tarefas no dia a dia.

Com a apresentação teatral instalada nesse ambiente, essa condição de não lugar pode ser alterada para lugar, pois significações com o local e suas estruturas físicas (prédios e outros) podem ser estabelecidas. Como a opção espacial do grupo são os grandes centros das cidades, é possível que crie um estranhamento no público sobre o local escolhido, tendo em vista que este espaço geralmente é superpopuloso, barulhento e sujo, ou seja, é um ambiente que “desencoraja a ideia

de estabelecer-se” ((BAUMAN, 2001 p.119) cotidianamente. Com a introdução do

espetáculo neste espaço, o público, que decide assistir a peça, se vê obrigado a repensar essa relação e ir em busca do melhor local de observação, encontrando assim um momentâneo sentimento de pertencimento.

Também o conceito de ambiente pode ser aqui abordado em função da mudança no repertório de usos da cidade no período em que ocorre a apresentação teatral de Dom Quixote, criando assim uma ação extra cotidiana. Esse elemento, comparado aos estudos de Lynch (1997), pode ser definido como a Imaginabilidade, característica existente na apresentação teatral e que confere a capacidade de gerar reações e imagens fortes nos indivíduos presentes no ambiente. Não apenas um lugar, mas também a encenação teatral presente no espaço urbano pode emanar prazer sensorial, ritmo e estímulo mexendo no imaginário dos espectadores em relação ao ambiente-cidade.