PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO
MESTRADO EM TEATRO
PATRICIA LEANDRA BARRUFI PINHEIRO
TEATRALIDADE E PROCESSOS CRIATIVOS NO
ESPAÇO DA CIDADE
Experiências no Teatro Brasileiro Contemporâneo
TEATRALIDADE E PROCESSOS CRIATIVOS NO ESPAÇO DA CIDADE
Experiências no Teatro Brasileiro Contemporâneo
Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre em Teatro, Curso de Pós Graduação em Teatro, Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica
Orientador: Prof André Luiz Antunes Netto Carreira, Dr.
FLORIANÓPOLIS
2011
TEATRALIDADE E PROCESSOS CRIATIVOS NO ESPAÇO DA CIDADE
Experiências no Teatro Brasileiro Contemporâneo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro para a obtenção do grau de Mestre em Teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Banca Examinadora:
Orientador: __________________________________________ Prof. André Luiz Antunes Netto Carreira, Dr
CEART / UDESC
Membro: _____________________________________________ Prof. Stephan Baumgärtel, Dr
CEART / UDESC
Membro: _____________________________________________ Prof. Narciso Larangeira Telles da Silva, Dr
Universidade Federal de Uberlândia
Florianópolis, 01 de março de 2011.
amor, companheiro e amigo.
À minha família.
Ao Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT) UDESC.
À CAPES, pela bolsa concedida durante o período de pesquisa.
Ao Prof. Dr. André Carreira, pelas orientações, conversas, conselhos e
incentivos. Agradeço por tê-lo como orientador durante todos esses anos.
Aos grupos Teatro que Roda, Tá Na Rua e Falos & Stercus, em especial aos
integrantes Liz Eliodoraz, Licko Turle e Luciana Paz pela disponibilidade e paciência
em responder meus e-mails e enviar material sempre que solicitado.
À professora Vera Collaço pelo carinho em participar de minha banca de
qualificação, pelas ideias e sugestões.
Aos professores Narciso Telles e Stephan Baumgärtel que tão
amigavelmente aceitaram compor minha banca de defesa e também auxiliaram
muito em minha qualificação.
Às secretárias acadêmicas Emília Leite (Mila) e Sandra Maria de Lima
Siggelkow, pelo auxílio em todos os momentos.
Ao grupo de pesquisa ÁQIS.
Ao meu companheiro Saulo, pelo incentivo e pela força em todos os
momentos difíceis. Agradeço por me auxiliar nas leituras e discussões. Obrigada por
compartilhar comigo esse momento tão maravilhoso e intenso de nossas vidas: a
conclusão do meu mestrado e do seu doutorado.
À minha família por tentar compreender meu período de ausência durante o
processo de escrita.
teatro que tem na rua o seu palco: cotidiano, multifacetário, inglório, mas tão vivido e terrestre, feito da vida em comum dos homens – esse teatro que tem na rua o seu palco. (...) Oxalá possam vocês, artistas maiores, imitadores exímios, não ficar nisso abaixo deles! Não se afastarem, por mais que se aperfeiçoem na arte, desse teatro que tem na rua o seu palco. (Bertolt Brecht)
Este estudo tem como objetivo a compreensão sobre a noção de
teatralidade urbana dentro do contexto do teatro de rua nacional contemporâneo.
São utilizadas como base as encenações Das Saborosas Aventuras de Dom
Quixote de La Mancha e seu Escudeiro Sancho Pança - Um capítulo que poderia ter
sido do grupo teatral Teatro que Roda (Goiânia/GO), Dar não dói, o que dói é resistir
do grupo Tá Na Rua (Rio de Janeiro/RJ) e Mithologias do Clã do coletivo Falos &
Stercus (Porto Alegre/RS). A pesquisa se dá a partir de estudo de campo e
entrevistas aliados à bibliografia vigente. No decorrer do trabalho contextualizo a
história das cidades, assim como suas utilizações teatrais, dos primórdios até a
atualidade, afim de compreender o teatro de rua existente na contemporaneidade e
o modo de criação cênica para esse espaço específico. Para tanto utilizo conceitos
pertinentes a esta pesquisa com o intuito de entender a questão do fluxo, ambiente e
outros usos que os cidadãos criam dentro do espaço urbano e que podem ser
relacionados com a criação artística.
Palavras-chave: Teatro de Rua, Teatralidade, Espaço Urbano, Cidade.
The aim of this research is to understand the concept of urban theatricality in
national contemporary street theater context. It is based on the presentations of
“Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu Escudeiro Sancho
Pança - Um capítulo que poderia ter sido” of Teatro que Roda theatrical group
(Goiânia/GO), “Dar não dói, o que dói é resistir” of Tá na Rua theatrical group (Rio
de Janeiro/RJ), and “Mithologias do Clã” of Falos & Stercus collective (Porto
Alegre/RS). The approach begins with interviews and studies in existing literature. In
this work, I contextualize the cities history, as well as theatrical uses, from the past to
the present, in order to understand the existing street theater and the
contemporaneity theatrical creation style for this specific space. For this, I have used
relevant concepts to this research in order to understand the issue of flow,
environment, and other uses that are made by citizens do in the urban space, and
which may be related to the artistic creation.
Key-words: Street theater, Theatricality, Urban Space, City.
Imagem 1: Noiva descendo de rapel do prédio durante apresentação no 21º Festival Universitário de Teatro de Blumenau – 2007. Fonte: Patricia Leandra Barrufi Pinheiro ...39 Imagem 2: Dom Quixote descendo de cabeça para baixo de rapel do prédio durante apresentação no 21º Festival Universitário de Teatro de Blumenau – 2007. Fonte: Patricia Leandra Barrufi Pinheiro...40 Imagem 3: Mapa da trajetória da apresentação do espetáculo Das saborosas
aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança durante apresentação em Blumenau (2007)...42 Imagem 4: Dom Quixote, Sancho Pança, Rocinante e espectadores durante
apresentação. Fonte: André Carreira...43 Imagem 5: Dulcinéia sendo conduzida durante apresentação. Fonte: André Carreira. ...50 Imagem 6: Atriz vestindo acessórios que estão expostos no chão durante o II
Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre – 2010. Fonte: Patricia Leandra Barrufi Pinheiro...54 Imagem 7: Amir Haddad como o narrador-apresentador durante o II Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre – 2010. Fonte: Patricia Leandra Barrufi Pinheiro...56 Imagem 8: O grupo relembra o carnaval de 1989, onde a escola de samba Beija-Flor foi proibida de colocar a imagem do Cristo Redentor na avenida. Fonte: Patricia Leandra Barrufi Pinheiro...58 Imagem 9: Espaço utilizado pelo grupo no Largo Glênio Peres ao lado do Mercado Público Central de Porto Alegre durante o II Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre – 2010. Fonte: Patricia Leandra Barrufi Pinheiro...60 Imagem 10: Atores descendo de rapel de prédio no centro da cidade durante o I Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre – 2009. Foto de divulgação do grupo. Fonte: Fernando Pires...68 Imagem 11: Os figurinos do espetáculo. I Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre – 2009. Foto de divulgação do grupo. Fonte: Fernando Pires...70 Imagem 12: Atriz em apresentação durante I Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre – 2009. Foto de divulgação: Fernando Pires...72 Imagem 13: Círculo formado pelo grupo para a encenação durante I Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre – 2009. Foto de Marcelo G. Ribeiro. Imagem cedida pelo fotógrafo...74 Imagem 14: Ator invadindo o espaço durante I Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre – 2009. Foto de Marcelo G. Ribeiro. Imagem cedida pelo fotógrafo...75
INTRODUÇÃO...1
PARTE 1 – CIDADE E TEATRALIDADE ...10
1.1 A Cidade: Contexto Teatral...16
1.2 A Rua: Segmentos e Conceitos...20
PARTE 2 – ESPETÁCULOS TEATRAIS E SUA RELAÇÃO COM O ESPAÇO DA CIDADE: CONSTRUINDO TEATRALIDADES URBANAS...32
2.1 Grupo Teatro que Roda...36
2.1.1 Processos de criação...44
2.1.2 A teatralidade urbana no trabalho do grupo Teatro que Roda...47
2.2 Grupo Tá Na Rua...52
2.2.1 Processos de Criação...58
2.2.2 A teatralidade urbana no trabalho do grupo Tá Na Rua...62
2.3 Grupo Falos & Stercus...66
2.3.1 Processos de criação...73
2.3.2 A teatralidade urbana no trabalho do grupo Falos & Stercus...76
2.4 Relações Teatrais com o Espaço da Cidade - Formas e Conceitos...79
CONSIDERAÇÕES FINAIS...85
REFERÊNCIAS...89
APÊNDICE...94
INTRODUÇÃO
Minha pesquisa de mestrado reflete sobre o trabalho de coletivos teatrais
nacionais e suas práticas de apropriação dos espaços urbanos. O foco é a análise
de espetáculos que almejam uma ressignificação da cidade e de seus espaços
públicos no ato de suas apresentações inseridas no ambiente urbano. Esse universo
estudado se relaciona com a tendência que aponta Fernando Peixoto quando diz
que “A rua tem sido a opção de muitos: diretores e atores que, por razões artísticas
e/ou ideológicas, sentem a necessidade de um encontro efetivo com um público
popular”. (PEIXOTO in CRUCIANI, 1999, p.144)
Este estudo é orientado pela busca da compreensão da teatralidade urbana
e dos processos criativos desenvolvidos por grupos brasileiros de teatro de rua, e
para isso busco analisar as relações destes grupos com o espaço da cidade. Para
tanto, trabalhei a partir de entrevistas realizadas com grupos brasileiros e da análise
de seus respectivos espetáculos. Os coletivos pesquisados foram: Grupo Teatro que
Roda com o espetáculo Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e
seu Escudeiro Sancho Pança - Um capítulo que poderia ter sido; Grupo Tá na Rua
com o espetáculo Dar não dói, o que dói é resistir; e Grupo Falos & Stercus com o
espetáculo Mithologias do Clã.
A escolha por pesquisar estes grupos se deu em função do tipo de trabalho
que os mesmos desenvolvem no espaço urbano, e pela diversidade que
representam quando falamos de um teatro que ocupa a cidade. Cabe dizer que a
disponibilidade de seus membros em cederem informações para o desenvolvimento
do projeto investigativo também contribuiu para a definição do meu corpus de
pesquisa. Os espetáculos foram escolhidos em função de características invasivas1
e performativas quando apresentados nos espaços públicos.
O ponto de partida desse estudo foi a aproximação à noção de teatralidade
urbana com que cada grupo trabalha. A partir disso inferi como esse elemento
interfere na formulação de seus espetáculos e como produz interações com o local e
o público presente nos diferentes espaços. Busquei relacionar as formas de
apropriação espacial que predominam nestes casos, com o propósito de estabelecer
relações entre a utilização do espaço com outras dimensões das atividades da
cidade, tais como práticas culturais e sociais.
Os estudiosos que abordam o tema Teatro de Rua, e em particular as formas
espetaculares contemporâneas, encontram dificuldades em suas pesquisas pela
escassez de referências bibliográficas sobre o tema espaço e teatro. Isso se dá
principalmente no que refere à relação espaço no âmbito da cidade e seus
ambientes urbanos como locais de apropriação teatral. Em razão disto pretendo,
com esse estudo, contribuir com material para futuras pesquisas acerca do trabalho
desenvolvido por estes grupos citados acima, e sua relação com o teatro de rua no
âmbito nacional.
O teatro de rua é a forma teatral mais acessível ao público, sendo também
desta forma, a mais popular2 aos cidadãos comuns das cidades, por ser apresentado
no espaço urbano em uma relação direta com os transeuntes. Algumas experiências
teatrais ao usufruir do espaço da cidade dão outro significado às ruas, praças e
prédios, estimulando em seus espectadores um olhar que gera uma releitura do
ambiente urbano. A ideia do espaço urbano como um âmbito portador de
significações, sugere um sentido para a cidade como um local de encontro, no caso
do teatro, um encontro entre artista e público.
Quando preparava meu Trabalho de Conclusão de Curso de graduação3
(PINHEIRO, 2007) pude entrevistar grupos nacionais que se diferenciavam em seu
trabalho por explorarem os espaços da cidade como locais de apresentação cênica,
motivados por diferentes razões: sociais, financeiras ou estéticas. Estes grupos
afirmaram em seus discursos que buscavam um espaço de trabalho diferenciado,
com o intuito de propagar um diálogo com a cidade e com sua comunidade. Assim,
pretendiam levar a ideia do grupo como um gestor de espaços culturais para o povo,
abrindo as portas de suas sedes para mostras teatrais e cursos de interpretação.
Muitos coletivos de teatro iniciam seus trabalhos, em um contexto muito próximo
2 “A noção de teatro popular, invocada hoje com tanta frequência, é uma categoria mais sociológica do que estética. A sociologia da cultura define assim uma arte que se dirige e/ou provém das camadas populares”. (Pavis, 1999, p. 393)
com a cidade e com seus espaços, de forma a desenvolver uma ligação mais
profunda com a população. Mesmo conquistando uma sede e podendo criar vínculos
com a comunidade em que estão localizados, alguns coletivos continuam, ou
iniciam, relações também com o ambiente externo à suas salas de ensaio: as ruas
de sua cidade e seus espaços de convivência pública. Um grande exemplo disso à
nível nacional é o Grupo Galpão, que possui sua sede em Belo Horizonte e também
mantém o Centro Cultural Galpão Cine Horto, que se transformou em um importante
espaço para a realização de atividades artísticas na capital mineira. Mesmo
possuindo nestes espaços suas próprias salas de apresentação e ensaio, o Galpão
redireciona muitas de suas encenações teatrais para o espaço público da rua, dando
destaque para a linguagem popular em suas criações.
Ao realizar a análise dos espetáculos abordados nesta pesquisa de mestrado,
procurei compreender como os grupos Teatro que Roda, Tá Na Rua e Falos &
Stercus, veem seu espaço de apresentação e como observam o espaço urbano para
essas criações, sem esquecer sua relação com o público. Outra questão importante
aqui analisada é a relação entre o espaço escolhido e as exigências cênicas dos
espetáculos, e de que forma os grupos se utilizam de seu ambiente de apresentação
para alcançar o efeito teatral que se deseja.
Após realizar as entrevistas, transcrevê-las e analisá-las, percebi que
precisaria de um maior apoio para entender melhor e comentar criticamente os
espetáculos Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu
Escudeiro Sancho Pança - Um capítulo que poderia ter sido, Dar não dói, o que dói
é resistir e Mithologias do Clã. Com base nisso, meu orientador sugeriu a leitura de
Josette Féral, Marc Augé, Nestor Garcia Canclini, Kevin Lynch e Guy Debord. A
bibliografia indicada me levou ao melhor entendimento das ruas e do espaço urbano.
Dessa forma, para desenvolver o trabalho proposto dividi essa dissertação
em duas partes. Na primeira parte, intitulada “Cidade e Teatralidade”, explano sobre
a noção da arte teatral como algo efetivamente intrínseco à vida nas cidades,
fazendo um breve paralelo histórico entre o teatro de rua do passado e o teatro de
rua da atualidade. O tema espaço urbano também é abordado junto com a noção de
teatralidade que orienta esta pesquisa, citando autores como Josette Feral e Patrice
de teatro de rua como a noção de Lugar e Não-Lugar de Marc Augé, a noção de
Ambiente, cunhada pelo urbanista Kevin Lynch, o conceito de Fluxo que é usado nos
estudos de Nestor Garcia Canclini e Estratégia e Procedimentos utilizados pelos
Situacionistas4. Conceitos esses pertinentes para a compreensão dos espetáculos
estudados em toda sua abrangência, incluindo utilização espacial, relação com o
público e interação com o ambiente urbano.
Na segunda parte, intitulada “Espetáculos Teatrais e sua Relação com o
Espaço da Cidade: construindo teatralidades urbanas”, apresento como os grupos
Teatro que Roda, Tá na Rua e Falos & Stercus compreendem a ocupação dos
espaços urbanos, bem como delimito suas noções de teatralidade e como estas
operam no trabalho e ambiente como elemento central do processo criativo nestes
locais. Para tanto exponho o pensamento dos entrevistados de forma direta, fazendo
conexões com as teorias existentes sobre o tema. Nesta parte também é feita uma
análise sobre os espetáculos que foram assistidos e estudados, relacionando-os
com a utilização e apropriação do espaço urbano. Além das entrevistas, também
orienta esse capítulo a análise documental através de pesquisa em revistas, livros,
artigos, sites e vídeos.
De forma a tornar possível uma melhor compreensão dos tópicos abordados
e sua relação com a noção de espaço, é inicialmente interessante estabelecer
referências sobre o espaço cênico na contemporaneidade. Neste sentido, cabe
referenciar Patrice Pavis (1999, p. 132), que define o espaço, no caso cênico, como
“o espaço real do palco onde evoluem os atores, quer eles se restrinjam ao espaço
propriamente dito da área cênica, quer evoluam no meio do público”, definindo
também o espaço em geral, como o local onde o Homem prescreve suas intenções
sociais, humanas e políticas, a fim de expor sua proposta, seja ela poética, estética
ou crítica.
Já para Francisco Javier (1998) ao definir-se o espaço e o teatro, é possível
apresentar o ambiente cênico como o contexto físico, onde o teatro está preparado
para instalar-se. Este contém a cena e é, portanto, o lugar onde se produz a
complementaridade de todas as linguagens que intervém no espetáculo. Ainda, para
Javier, o espaço cênico é como um recipiente destinado a conter um líquido: por um
lado o espaço cênico dá a forma e por outro, estrutura o conteúdo. Ou seja, o
exercício espetacular é transformável. Neste sentido, o local de atuação,
independente de possuir características cênicas ou não, é constituído de
possibilidades poéticas que se manifestam no momento de uma apresentação
espetacular.
Sobre a relação espectador e teatro de rua, Carreira (2002, p.5) afirma que a
rua, “enquanto espaço de convivência, permite que o cidadão desfrute de um
anonimato que o libera de um peso do compromisso pessoal”. Esta é uma postura
que diminui a resistência do transeunte e estimula uma maior disposição aos jogos
de improvisação dos atores e uma participação mais despojada do próprio público.
A cidade existe enquanto dinâmica física e social, que modifica o próprio
ambiente urbano. Na vida cotidiana, seus habitantes criam jogos e dinâmicas sociais
que alteram a estrutura urbanística. Ao usufruir dos espaços da cidade para
apresentações teatrais, os artistas se utilizam de um recurso já preexistente: o jogo
social. Carreira (2001, p.146) cita que: “Na rua existe um complexo jogo social no
qual está presente uma infinidade de inter-relações que regem grande parte do
comportamento dos cidadãos”. Neste contexto, o espaço urbano, em uma relação
extra cotidiana, conduz os cidadãos às novas atividades nesse ambiente da cidade,
ao propor esses jogos sociais em uma comunhão mais aproximada com o teatro.
Pavis expõe um conceito específico definindo de forma clara o fenômeno
Teatro de Rua:
Teatro que se produz em locais exteriores às construções tradicionais: rua, praça, mercado, metrô, universidade etc. A vontade de deixar o cinturão teatral corresponde a um desejo de ir ao encontro de um público que geralmente não vai ao espetáculo, de ter uma ação sociopolítica direta, de aliar animação cultural e manifestação social, de se inserir na cidade entre provocação e convívio. (PAVIS, 1999, p. 385)
Quando o teatro se propõe a fazer do ambiente urbano o seu local cênico,
procura afirmar as potenciais relações entre o que está sendo representado e a vida
real, ou seja a interação direta entre teatro, público e espaço. A intervenção do ato
teatral nos espaços urbanos também possibilita uma valorização de ruas, prédios,
praças abandonadas e esquecidas pela população, revelando assim, a cidade como
um espaço de possibilidades performáticas. Desta forma, o espaço da performance
Desde as décadas de 1960 e 1970, os artistas adeptos de performances e
happenings, se utilizam do recurso de quebra de convencionalismos espaciais,
invadindo museus, galpões e praças públicas, aproximando arte e vida,
questionando as relações de poder e o lugar definitivo das coisas. Allan Kaprow5
criou em 1962 a performance “Pátio” que acontecia na área externa de um antigo
hotel abandonado no Greenwich Village em Nova York (GOLDBERG, 2006 p. 120).
Já Ken Dewey, em sua performance chamada City Scale, levou o público a caminhar
pelas ruas da mesma cidade, para que este presenciasse várias cenas:
uma modelo despindo-se na janela de um apartamento, um balé de carros num estacionamento, um cantor numa vitrine, balões meteorológicos em um parque desolado, um restaurante self-service, uma livraria; ao nascer do sol no dia seguinte chegava o finale, com um 'vendedor de aipo' em um cinema (Ibidem, p. 125).
Em relação à performance, o artista Claes Oldenburg6 disse que o lugar em
que a obra acontece é “o primeiro e mais importante fator a determinar os
acontecimentos (o segundo era os materiais disponíveis e o terceiro, os atores)”
(Ibidem, p. 124). Tendo a cidade como cenário, a performance teatral é capaz de
promover uma mudança da experiência estética e também social. Segundo Richard
Schechner (1977 apud ZONNO, 2008), além da função de entretenimento do teatro,
este também pode causar mudanças na percepção e nas atitudes dos espectadores,
fazendo com que reajam ao mundo de formas diferentes. Isso pode ser relacionado
com o que diz Walter Benjamin (1994) sobre a importância que a arte tem para
poder despertar o homem da concentração profunda em que está inserido em sua
rotina, em seu cotidiano, de forma a impactá-lo com a recepção do novo. As
manifestações de teatro de rua da atualidade, com suas inovações artísticas e suas
propostas que vão além do teatro popular que conhecemos, podem ser comparadas
à definição que Benjamin deu ao Dadaísmo: “De espetáculo atraente para o olhar e
sedutor para o ouvido, a obra convertia-se em um tiro. Atingia, pela agressão, o
espectador” (BENJAMIN, 1994, p.191).
Com base nesses pensamentos, pode-se compreender que a performance
teatral, aliada ao uso dos espaços urbanos, possui uma dimensão mais importante
do que simplesmente o entretenimento da população. A arte conjugada ao uso
destes locais restitui a função da festa ao espaço público, o que, ainda segundo
Richard Schechner, recupera a memória dos espaços simbólicos através da criação
artística, apontando para a dimensão mítica da cidade, muitas vezes perdida na
saturação e na ilegibilidade do urbano. O teatro, para este autor, viria se realizar
como modo de recriação do espaço urbano, abrindo-se e abrindo-o dialeticamente,
em uma espécie de diálogo artístico com esse ambiente (SCHECHNER apud
ZONNO, 2008). Schechner também cita que a plenitude do espaço, as formas
infinitas que este pode transformar/articular, é a base do teatro ambientalista7. Neste
contexto, diferente do teatro tradicional, o teatro ambientalista proporciona que o
público (no caso desta pesquisa, o público da rua), crie e desenvolva seu próprio
espaço teatral, definindo seu trajeto e escolhendo seu lugar para observar a
manifestação artística apresentada.
Schechner (1988 apud TELLES e CARNEIRO, 2005) apresenta as ideias
sobre o teatro ambientalista, propondo e delineando um teatro revolucionário e
participativo, permitindo a criação de novos ambientes. A busca, a transformação e a
vitalização do espaço são os eixos primordiais para a noção de utilização do
ambiente. O ato de permitir que as pessoas se encontrem e interajam na rua é por si
só uma possibilidade de improvisação, em que não se pode prever os
acontecimentos futuros: “Longe de ser apenas o local onde o fenômeno teatral se
realiza, torna-se, também um local tomado e modificado pelo público à medida que
este se movimenta pelo espaço” (Ibidem, p.180). O conceito de Richard Schechner
explora a teatralidade do espaço e não a tentativa de adaptação como reprodução
de espaços considerados tradicionais de encenação. Essa proposta pode ser
observada no trabalho desenvolvido pelos fundadores do grupo Living Theatre,
Julian Beck (1925-1985) e Judith Malina (1926-). Seus projetos na rua se
estruturavam à partir da ideia de que “o poder está na rua”, levando assim uma
questão de quebra das fronteiras entre atores e público (palco-platéia), incentivando
a população a participar de suas encenações e deixando-os livres para circular e
atuar enquanto cidadãos no espaço público.
O espaço da cidade, tomado por uma proposta teatral, pode proporcionar
aos seus cidadãos uma releitura da vida cotidiana. Desse modo, este espaço
ressignificado torna-se um potencial transformador das dinâmicas rotineiras, levando
à seu público a possibilidade de atuar de modo transgressivo no palco da vida real.
Para Carreira (in LIMA 2008, p.75): “O ator que invade a rua e incomoda o
transeunte, está deformando as linhas que definem a cidade”. Isto acaba por
demarcar uma nova escritura da própria estrutura da cidade, transformando-a para o
olhar das pessoas de forma a sustentar o fenômeno espetacular. Quando o
ambiente urbano torna-se cênico, passa-se a questionar e incitar uma reflexão sobre
os valores dos próprios espaços. A intervenção teatral e suas possibilidades de
invasão cênica no cenário da cidade são fontes “desencadeadoras de conflitos”8,
que libertam poderes e possibilidades. Assim, espetáculos que se utilizam desta
forma do fazer teatral, interferem diretamente na vida cotidiana dos transeuntes que,
de outra forma, seguiriam seus rumos sem perceber ou interagir com o ambiente em
que se encontram. Dessa forma, apostando nessa transformação do olhar sobre
locais rotineiramente conhecidos, pode-se dar também uma sutil transformação de
ordem social e cultural.
Segundo Kosovski (2001, p.97), o ato de “encontrar um lugar, imprimir-lhe
um novo sentido, buscando geografias adequadas à audição e visibilidade da cena,
é talvez hoje, mais do que nunca, uma prática cultural”. Mas a autora também afirma
que hoje em dia é cada vez mais difícil proporcionar ao público a sensação do novo,
do espanto. Nesse sentido o espaço urbano se propõe como um potenciador,
inclusive para novas experiências cotidianas. É a arte revitalizando os usos dos
espaços e provocando mudanças na forma de percepção do cidadão do seu espaço
cotidiano, ressignificando inclusive o olhar do artista e do público.
Esses autores citados orientam, portanto, a concepção de Espaço, Teatro e
Cidade que guiam essa pesquisa para o tema acerca do uso deste local como
espaço teatral e contextualizam a utilização da rua como um importante espaço
cênico.
Outro tópico bastante pertinente a este estudo é a noção de teatralidade
urbana pensada pelos grupos de teatro de rua aqui pesquisados. Pensar a
teatralidade na contemporaneidade e quais procedimentos criativos orientam o
trabalho desses coletivos, vai além dos limites do fazer teatral, permitindo um novo
olhar sobre esse fenômeno de forma mais ampla. O Teatro de Rua contemporâneo
possui características democráticas, do ponto de vista que este não seleciona seu
público. Os espectadores presentes no ambiente urbano abarcam todas as classes
sociais e culturais. Sobre esta questão teatral, pode-se citar Féral (2003), quando
esta afirma que a teatralidade é um fenômeno que abrange diversas áreas que vão
além do espaço cênico. Pode-se compreender espaço cênico aqui, como o palco
tradicionalmente utilizado para apresentações teatrais, mas que a Teatralidade pode
auxiliar a transpor esse limites para vários âmbitos como espaciais, dramatúrgicos,
estéticos e outros.
Parte-se do princípio que o teatro realizado na rua gera um olhar sobre a
quebra de rotina do espaço urbano por meio do acontecimento teatral. Essa quebra
é a responsável por abalar a segurança sobre o conhecido, no caso as ruas da
cidade, propondo uma experiência de cunho sensorial. Isso, de forma geral, acaba
instigando o espectador. A quebra da estabilidade do cotidiano possibilita uma
ruptura sobre o estável, o palpável e as margens de segurança que oferecem
conforto, tanto para os atores que desempenham suas apresentações, quanto para
o público passante.
Quando o espaço urbano torna-se espaço cênico, passa-se a questionar e
incitar uma reflexão sobre os valores dos mesmos. Rudolf Laban9 (LABAN apud
NUNES, 2007) fala em seus estudos sobre uma necessidade básica de relação e
apropriação espacial do artista onde este deve ter atenção para dominá-lo
fisicamente. Nesse contexto, faço conexão com o teatro no âmbito do espaço
urbano, um local muitas vezes inóspito, onde cotidianamente é essencial a atenção
do passante comum para o ambiente que o cerca. A rua possui imprevistos e perigos
que demandam comportamentos alertas. Por observação e análise de peças teatrais
assistidas ao longo de meus estudos acadêmicos, parto do pressuposto que em
uma sala fechada de teatro, o corpo do ator está, quase sempre, protegido pelo
ambiente que o cerca (diretor, iluminador, palco elevado, público sentado e
conformado com a situação de espectador passivo). Esse cenário se difere muito do
espaço da rua que é um local de convivência pública, conhecido e dominado pelo
cidadão comum, estando este apenas de passagem ou não. A cidade é o lugar
desse teatro, mas não é o palco, pois suas qualidades em muito se diferenciam
desse espaço convencional que é um palco teatral.
PARTE 1 – CIDADE E TEATRALIDADE
Uma cidade deve ser construída de modo a proporcionar a seus habitantes segurança e felicidade (Aristóteles).
Quando o Homem começou a viver com outros de sua espécie, foi dada a
largada para o que hoje definimos como viver em um ambiente de comunidade. O
instinto de preservação da raça humana nos levou a constituir família e nos juntar a
outros semelhantes para podermos sobreviver, em uma relação de
interdependência. Mais do que simplesmente uma escolha, o ato de viver unidos foi
uma necessidade para viver com segurança em nosso meio ambiente. Podemos
definir essa junção de convivências humanas como o elemento primordial do que
denominados hoje como sendo uma Cidade (BENEVOLO, 2007).
Na atualidade, o termo Cidade designa um local de povoação superior a vilas
e aldeias. Para Sjoberg (1977, p.38) cidade é “uma comunidade de dimensões e
densidade populacional consideráveis, abrangendo uma variedade de especialistas
não-agrícolas, nela incluída a elite culta”. Já Kevin Lynch aponta que a cidade se
define por suas características organizacionais e pode ser considerada “um habitat
muito mais rico e diversificado que a maior parte das áreas rurais, mas quase nunca
assim se apresenta” (LYNCH, 1977 p.209). Richard Sennet expõe outro olhar, pelo
viés da sociologia, e afirma que a cidade é “um assentamento humano em que
estranhos têm chance de se encontrar” (apud Bauman, 2001 p. 111). Também Guy
Debord tem sua definição deste espaço, mas para o autor, a cidade seria “o espaço
da história porque é ao mesmo tempo concentração do poder social, que torna
possível a empreitada histórica, e consciência do passado” (DEBORD, 1997, p.
176). Esses olhares, focam diversos pontos constituintes desse ambiente tão
complexo, mas que são imprescindíveis para a compreensão desse espaço
organizacional.
A cidade sempre foi um local onde o Homem se utilizou para expor suas
opiniões, confraternizar, flanar10, comercializar produtos e efetuar diversos tipos de
rituais: “Desde a Ágora da Atenas Antiga até os nossos dias, uma das funções da
praça pública tem sido a de mesclar pessoas e diversificar atividades” (LIMA, 2006,
p. 396).
Os primeiros indícios de formação de uma cidade derivam de
assentamentos permanentes de habitantes que subsistiam de suas próprias
plantações, caça, pesca e produções artesanais, para prover a si e a seus
familiares. Com o passar do tempo, esses habitantes começaram a se especializar
em ocupações definidas e a comercializar seus trabalhos ou produtos. Com o
advento do comércio, começam a originar-se as pequenas cidades (MUMFORD,
1998).
As ruas das pequenas e grandes cidades são utilizadas de diversas formas.
No início da Renascença o planejamento estrutural urbano evoluiu com construções,
ampliação das ruas e um maior desenvolvimento do comércio. Nesse momento de
evolução urbanística, o cidadão comum começou a perder seu lugar de figura focal
nas ruas, se tornando um elemento complementar em meio à prédios, transportes e
avenidas. Segundo Carreira (2007, p.29), as ruas foram utilizadas de diversas
formas em diferentes épocas, “adquirindo diferentes funções de acordo com as
necessidades dos seus usuários e com o ritmo de crescimento urbano”. Para tanto,
pode-se citar como exemplos, os períodos compreendidos entre a Idade Média e a
Idade Contemporânea, como um tempo de modificação dos usos e consolidação de
uma noção moderna da cidade.
Com o decorrer dos séculos e com a supremacia no ocidente do catolicismo
na Idade Média11, ocorreu uma grande ênfase nas manifestações religiosas. Assim
sendo, festas solenes e escassas apresentações artísticas eram apresentadas
sempre próximas às igrejas, com a temática pertinente à época. Ainda nesse
período, a rua, além de seu atrativo como local de comércio, também proporcionava
aos cidadãos um espaço de lazer, sendo junto com o espaço da Igreja, os seus
únicos lugares de compartilhamento ritualístico. A paisagem da cidade e de seu
cotidiano era constituída de “[...] uma constante procissão de pessoas, sozinhas ou
em grupos de vinte ou de milhares, [que] deslocava-se pelas ruas até as portas da
igreja” (MUMFORD, 1998 P. 334). Nesse período, o Homem e sua dimensão de
pedestre, eram o foco e personagem principal desse ambiente urbano, sendo
colocado em segundo lugar apenas nos momentos das manifestações religiosas. A
sociedade da Idade Média se caracterizava por uma divisão estamental
segmentada: o clero, os nobres e o povo. O clero e os nobres se apoiavam
mutuamente e eram o poder máximo nas vilas, controlando a população de baixa
renda. Nessa época ocorreram as invasões bárbaras, fazendo com que alguns
cidadãos migrassem para o campo, procurando auxílio nos feudos12. Isso gerou o
povoamento ao redor das vilas medievais cujas muralhas serviam de proteção à
população. Posteriormente, os interiores das muralhas acabaram servindo como
locais de passeio, principalmente nas estações de calor “e permitiam gozar as brisas
do verão, que não podiam penetrar na cidade” (Ibidem, p. 332). Nesses passeios
aconteciam as socializações e confraternizações entre os indivíduos. O Homem
medieval vivia muito nas ruas, em uma organização gregária cujos
[...] grupos de ofícios ou edifícios institucionais formavam bairros contidos em si mesmos, ou “ilhas”, ficando o prédio disposto sem relação nenhuma com as vias públicas de fora. Dentro daquelas ilhas, e muitas vezes fora, os caminhos assinalavam as indas e vindas diárias dos habitantes (Ibidem, p.335).
Essas “ilhas” eram constituídas por castelos, mosteiros e outros tipos de
instituições e formavam primitivamente o que chamamos na atualidade de
quarteirões. Dentro desse esquema, todos os caminhos levavam para a Igreja. Ainda
segundo Mumford (1998), deve-se pensar na Igreja desse período como se fosse o
centro comunitário da nossa atualidade, onde as pessoas desenvolvem atividades,
encontros e reuniões sobre assuntos diversos. Outro local bastante importante era a
praça do mercado, onde “as guildas montavam seus palcos para a representação de
seus 'mistérios'”, e mais no final da Idade Média, eram realizados torneios esportivos
(Ibidem, p. 334). Segundo Leonardo Benevolo (2007), existia um espaço público
comum “que se espalha por toda a cidade e no qual se apresentam todos os
edifícios públicos e privados, com seus eventuais espaços internos, pátios ou jardins
(2007, p. 269). Todas as ruas e seus espaços eram utilizadas para o tráfego, para
comércio e mesmo para reuniões ao ar livre.
Logo após, na Idade Moderna13, aconteceu um aumento populacional nas
cidades. Em decorrência disso, elas também se expandiram, comportando as
pessoas que migravam, quando a prática do feudo começou a ser abandonada.
Dessa forma, a população foi obrigada a criar novas formas para a subsistência
econômica, social e política. Surgiu assim uma nova classe social chamada
burguesia, que era formada por mercadores, artesões, banqueiros e camponeses
que se dedicavam ao comércio de mercadorias e prestação de serviços em troca de
dinheiro. Com o advento do crescimento da população e a ampliação da circulação
de mercadorias e pessoas, a muralha medieval deixou de expressar os limites da
cidade.
Nesse período, o dinheiro adquiriu um importante papel, não ficando mais
apenas concentrado na mãos dos nobres, e o comércio superou o trabalho rural. O
progresso comercial e urbano, incentivou também o avanço para as comunicações
entre as localidades, estimulando a abertura de estradas e alterando assim a
paisagem das novas cidades.
Na Idade Média, as cidades funcionavam como centros religiosos e militares,
sendo basicamente ligadas ao feudo. Mas com a mudança para o Renascimento, as
cidades começaram a se expandir com o comércio. Com a união entre burgueses e
os reis, os nobres senhores feudais perderam seu poder e prestígio. Os
trabalhadores rurais enxergavam então as cidades como um local seguro e cheio de
oportunidades para quem desejasse livrar-se dos feudos (SEVCENKO, 1988). Mas,
em sua maioria, esses trabalhadores eram desqualificados para os serviços
existentes e eram mal pagos. O comércio interurbano era promissor, mas a maioria
das pessoas ainda viviam na pobreza, pelo fato de trocarem o campo pelos centros
urbanos. A população era mal remunerada - comparada com os grandes
comerciantes burgueses -, e morava em casas superpopulosas, em decorrência da
forte migração campo-cidade.
Durante o Renascimento Cultural, o desenvolvimento de rotas estimulou a
troca de informações, a construção de novas escolas e universidades e o contato
com literaturas estrangeiras.
Logo após esse período, com a chegada da Revolução Industrial e a
invenção da máquina a vapor e todo tipo de parafernálias mecânicas no século
XVIII, houve uma grande mudança nas cidades, transformando-as em centros
industriais, possibilitando assim um maior número de empregos aos seus cidadãos.
As cidades que estavam em um franco período de industrialização, obrigaram a
criação de transportes públicos que suprissem a demanda de levar os trabalhadores
de seus lares até seus trabalhos e vice-versa. Foram construídos bondes e ferrovias
que levavam pessoas e mercadorias, fazendo com que a cidade se expandisse e
sua paisagem se modificasse. Com as grandes migrações da população do campo
para os centros urbanos, houve uma diversificação de ofertas de empregos e a
explosão da economia nas cidades. Mas todo esse fluxo em direção às cidades
acarretaram dificuldades, como congestionamento por causa do tráfego,
insalubridade e problemas estéticos (BENEVOLO, 2007).
Por isso, os representantes iluminados das classes dominantes, como os representantes das classes subalternas (os radicais e os socialistas) propõem novas formas de intervenção pública, ou para corrigir separada e gradualmente os inconvenientes individuais, ou para recomeçar desde o início, contrapondo à cidade existente novos tipos de conjuntos habitacionais ditados pela pura teoria (BENEVOLO, 2007 p. 552).
Passaram a ser construídos prédios para acomodar essa população da
forma mais compacta possível, promovendo um maior aproveitamento de espaço.
Novos tipos de comércios surgiram, estradas foram ampliadas, novas estradas
foram construídas e outras formas de transportes públicos foram instituídas. Os
veículos motorizados se popularizam e ajudam no crescimento das cidades. O
automóvel permitiu viver mais longe do local de trabalho, escolas e dos comércios,
possibilitando uma locomoção confortável e rápida até estes locais. Começou, nesse
período, a vivência dentro dos espaços e menos fora deles.
O crescimento rapidíssimo das cidades na época industrial produz a transformação do núcleo anterior (que se torna o centro do novo organismo) e a formação, ao redor deste núcleo, de uma nova faixa construída: a periferia (BENEVOLO, op. cit., p. 565).
Com o surgimento da periferia, alguns indivíduos decidiram afastar-se desse
ambiente comum e heterogêneo e algumas famílias se transferiram para locais mais
isolados, onde construíram outro tipo de moradia. As novas cidades passaram a
ambientes de lazer com áreas de uso comum e convívio público como parques,
praças, lojas e outros comércios (Ibidem, p. 681). Já pessoas de menos posses,
passaram a ser obrigadas a viver em casas enfileiradas e sobrepostas, em edifícios
ou similares. Essa estrutura foi o início da forma de ambiente das cidades atuais.
As cidades modernas começaram a ser melhor planejadas pelo poder
público, com o auxílio de urbanistas e arquitetos. Para estes profissionais a cidade
devia ser composta de algumas partes essenciais para exercer as seguintes funções
de forma adequada para uma boa estruturação: moradia, trabalho, locais de
circulação e locais para o descanso. As preocupações com o corpo e o espírito
começam a fazer parte da lista de itens necessários para a harmonia e salubridade
da cidade.
As atividades recreativas são reavaliadas e requerem espaços livres apropriados, esparsos por toda a parte da cidade […]; estes espaços verdes – que na cidade burguesa são ilhas separadas num tecido construído compacto – devem formar um espaço único, onde todos os outros elementos resultem livremente distribuídos: a cidade se torna um parque aparelhado para as várias funções da vida urbana (BENEVOLO, op. cit.. p.631).
Essa nova estrutura procura conciliar cidade e campo, trazendo a ideia de
um ar mais saudável e tranquilo para os grandes centro urbanos. É o poder público
reconquistando o espaço da cidade.
A cidade contemporânea possui uma maior preocupação com a qualidade
de vida de seus moradores, e atrai ainda um grande número de pessoas para viver e
trabalhar nos grandes centros. O espaço urbano é então pensado no sentido de
verticalidade, com construções para moradia e para o trabalho que acomodem a
população sempre crescente: “A cidade do século XX desafia o céu, não mais num
impulso em direção a Deus, mas numa afirmação do homem” (LE GOFF, 1998,
p.126). Essa frase de Le Goff pode se referir a ambição humana, que levou tantas
pessoas a viverem e trabalharem nos grandes centros em busca de uma vida
melhor. Tendo em vista a necessidade da construção de arranha-céus para
acomodar toda essa população, a cidade contemporânea precisou preocupar-se
também com a estruturação de vias, ruas e largos para a mobilidade e fluxo dos
Os fatos do congestionamento metropolitano são inegáveis; são visíveis em todas as fases da vida de cidade. Encontra-se congestionamento nos constantes engarrafamentos do tráfego, resultantes da acumulação de veículos em centros onde só se pode manter o movimento livre pela utilização das pernas humanas (MUMFORD, 1998, p. 591).
Em virtude dessa reestruturação da cidade, as relações tornaram-se
transitórias e fugazes, com raras exceções. A cidade intensificou sua característica
como um lugar fragmentado, onde os deslocamentos humanos estão impregnados
da lógica dos fluxos, não se configurando exatamente como lugares, mas sim como
espaços efêmeros de vivência. Os sujeitos tornam-se cada vez mais individuais, em
decorrência do uso massivo dos meios de transportes. E mesmo quando
determinados trajetos são realizados à pé, é perceptível a pressa e o sentimento de
urgência existente na megalópole atual. A superlotação do espaço, gerou fluxos de
locomoção e deslocamentos que comportassem o ritmo de toda essa população,
suas construções de moradia, de trabalho e seus meios de transporte.
Ainda na cidade contemporânea, as tensões sociais vivem lado a lado.
Casas da alta classe convivem com estruturas marginais e estabelecimento
irregulares, que abrigam muitas vezes a maior parcela da população (BENEVOLO,
op. cit., p. 707). Em função disso, existe cada vez mais a preocupação com projetos
de arquitetura e urbanismo para melhorar a aparência das cidades e acomodar a
população dentro delas, minimizando, quando possível os fatores que tensionam os
diferentes setores sociais.
1.1 A Cidade: Contexto Teatral
Durante toda a história das cidades e de suas formações, existiram formas
de apropriação dos espaços públicos. A apropriação artística é um exemplo. No
período do Teatro Barroco Jesuítico, onde aconteciam os autos sacramentais (muito
comuns em Portugal, na Espanha e nas colônias da América Latina), as peças eram
apresentadas (e ainda são), “por ocasião do Corpus Christi e que tratam de
problemas morais e teológicos” (PAVIS, 1999 p.31). As apresentações aconteciam
com danças e músicas, atraindo assim a população.
No Brasil, os Jesuítas instituíram o teatro, no ensino religioso, cinquenta
anos após o descobrimento do país, como uma forma de catequizar o povo local14. O
teatro continuou sendo empregado pela Igreja, em grandes cidades brasileiras,
como um recurso pedagógico. Em 1583, na cidade de Salvador foi organizado um
dos maiores autos sacramentais15 de nossa história nacional. A apresentação contou
com a participação de todos os habitantes da capital Baiana. Enquanto a procissão
seguia pelas ruas da cidade, a população participava nas janelas de suas casas,
recitando frases e textos pertinentes à história, interagindo assim, com o auto
religioso (CARREIRA, 2007 p. 105).
Durante muitos anos, todas as apresentações teatrais e festivais nacionais
aconteciam à céu aberto, envolvendo assim toda a comunidade. No ano de 1729, a
Igreja da época proibiu qualquer apresentação nos espaços abertos dos templos
católicos. Em 1734, o então Bispo de Pernambuco proibiu toda e qualquer atividade
teatral. Só em 1777, com o apoio de um decreto de lei, as autoridades civis
decidiram recomendar “a construção de teatros públicos permanentes e de
espetáculos teatrais pelo seu valor educativo” (ARNAUT DE TOLEDO et al., 2010).
Dessa forma, o teatro nacional começou a migrar para as salas teatrais localizadas
nos prédios fechados.
Outro momento muito importante a se citar, com base no teatro em relação
com o espaço da cidade, é no Teatro de Agit-Prop, surgido durante a Revolução
Russa em 1917. Segundo Pavis (op. cit. p. 379), o termo significa agitação e
propaganda, sendo denominado assim, uma “forma de animação teatral que visa
sensibilizar um público para uma situação política ou social”. Ainda, segundo o
Dicionário de Teatro, “o agit-prop tem antepassados distantes: o teatro barroco
jesuítico, auto sacramental espanhol ou português, já continham, por exemplo,
exortações à ação” (Ibidem, p. 379). Este tipo de trabalho era utilizado também pelo
exército levando informações políticas e de ideais revolucionários, divulgando assim
as conquistas militantes.
Durante muito tempo, o teatro de rua se confundiu com o agit-prop e o teatro político (anos vinte e trinta na Alemanha e na União Soviética). A
partir dos anos setenta, assumiu uma postura menos política e mais estética. (PAVIS, op. cit., p. 385)
Segundo Silvana Garcia, “a presença de uma massa de operários sem
acesso à produção artística, estimulou a reflexão sobre a arte, em especial ao
teatro” (GARCIA, 1990, p.3), sendo utilizado como uma ferramenta de mobilização
trabalhista, estimulando assim o ato revolucionário. O então surgimento de diversos
grupos se utilizando desse tipo de trabalho com fins sociais e políticos foi inevitável:
[...] a grande movimentação de grupos de teatro perambulando pelas vilas, casernas e fronts de batalha, revivendo a tradição do teatro ambulante e, nos grandes centro urbanos, as ruas tornaram-se cenário privilegiado das manifestações artísticas (Ibidem, p. 6)
Nessa época também aconteceram manifestações dos artistas denominados
futuristas e construtivistas. Entre eles pode-se citar o nome do conhecido Vladimir
Maiakovski16. Os futuristas russos, inspirados pelos italianos, declamavam seu
manifesto em cafés e pelas ruas de São Petersburgo e Moscou, “andavam pelas
ruas com roupas exóticas, rostos pintados, cartolas, casacos de veludo [...]”
(GOLDBERG, 2006). A ideia de abandonar velhas formas artísticas e criar uma nova
perspectiva e revitalização sobre a arte local, era o ideal destes manifestantes.
Na Suíça, Alemanha e posteriormente na França, entre os anos de 1910 e
1920, dadaístas e surrealistas contestam os valores estabelecidos na cultura
artística preestabelecida na época. Os dadaístas enfatizavam as tensões entre o
lógico e o absurdo, protestavam contra a I Guerra Mundial, com o intuito de
denunciar e escandalizar a sociedade (MARTINS E IMBROISI, 2011). A estratégia
do movimento era a improvisação e a negação total da cultura até então conhecida.
Os adeptos do movimento nas artes plásticas, aproveitavam restos de materiais e
objetos encontrados pelas ruas para criar suas pinturas ou esculturas. Os escritores
apresentavam pequenos espetáculos improvisados pela cidade e declamavam suas
poesias dadaístas. Os poemas eram formados por palavras aleatórias que eram
lidas, sugeridas, que vinham a mente ou baseados em objetos que eram
observados. As performances teatrais eram criadas para chocar e desnortear o
público, confundindo muitas vezes os valores da sociedade e propondo uma reflexão
sobre o momento vivido na época. Os dadaístas também mantinham uma galeria de
arte em Zurique, onde pudessem realizar outras experiências artísticas como
vernissages e apresentações de dança (GOLDBERG, 2006 p. 56). Essa galeria era
utilizada durante o dia por mulheres da alta classe que faziam cursos diversos.
Durante a noite, o local pertencia as experimentações do dadaísmo, numa clara
reutilização do espaço de forma transgressora. Já os surrealistas eram adeptos da
arte representativa e abstrata, buscando como inspiração o inconsciente humano.
Segundo este movimento, a arte precisava libertar-se da razão e da lógica, indo
além da consciência do cotidiano. O Manifesto Surrealista foi publicado pelo escritor
francês André Breton em 1924 e impunha o automatismo psíquico, onde a mente do
artista deveria ficar livre de qualquer controle exercido pela razão em suas criações
(MARTINS E IMBROISI, 2011).
Após esse período, surgiu o movimento artístico Fluxus, que unia artes
visuais, música e literatura. Este movimento foi elaborado pelo lituano George
Maciunas através de uma revista também chama Fluxus, sendo muito bem aceita
nos Estados Unidos, Europa e Japão. Entre os organizadores americanos, se
destacam John Cage17 e Allan Kaprow18. Os participantes do movimento foram os
criadores dos primeiros happenings19que possuíam estéticas similares ao Dadaísmo
e à Pop art20. O Fluxus se concentrava nos grandes centros urbanos, o que acabou
estimulando mais o fazer artístico realizado nas ruas. A arte desse período acontecia
em ruas ou espaços não especializados em apresentações, fossem elas de origem
teatral, plásticas ou musicais. Os happenings eram feitos de forma improvisada e
espontânea, envolvendo participação direta ou indireta do público.
O teatro de rua desenvolveu-se particularmente nos anos sessenta (Bread an Puppet, Magic Circus, happenings e ações sindicais). Trata-se na verdade, de uma volta às fontes: Téspis passava por representar num carro no meio do mercado de Atenas, no século VI a.C., e os mistérios medievais ocupavam o adro das igrejas e as praças das cidades (Pavis, 1999, p. 385)
Na atualidade, o Teatro de Rua existe em diferentes formatos, seja em
17 Compositor, músico, pintor e escritor americano (1912 - 1992).
18 Pintor americano e um dos precursores dos conceitos de performance (1927 - 2006).
19 Tipo de apresentação artística que engloba artes visuais, artes cênicas e às vezes música, de forma improvisacional ou não.
propostas de roda ou percurso (trajeto), seja em festivais ou festas tradicionais, com
intuitos de renovação urbana ou intuito políticos, herança dos happenings,
manifestações e carnavais de rua. Apesar da liberdade de criação, expressão e de
apropriação dos espaços, os locais públicos se desenvolveram para tantas outras
finalidades, que não manifestações artísticas, que é necessário em nossa época
atual refletir sobre o presente em relação ao passado.
Os locais públicos (fórum, mercado, etc.) não servem, atualmente, nem para grandes festas populares nem para a vida de todos os dias. Sua única razão de ser consiste em proporcionar mais ar e mais luz em romper a monotonia dos oceanos de casa. Às vezes eles também valorizam um edifício monumental, ao desobstruir suas fachadas. Que diferença da Antiguidade! As praças eram então uma necessidade de primeira ordem, pois foram o teatro das principais cenas da vida pública, que ocorrem hoje nas salas fechadas. Era ao ar livre, na ágora, que o conselho das cidades gregas se reunia (SITTE in CHOAY, 1965 p. 206)
Quando o teatro se faz presente nos espaços da rua, geralmente seu objetivo
central é desviar a cidade do seu ritmo, fluxo e cotidiano, pois grandes cenas da vida
pública estão cada vez mais perdendo suas características de práticas públicas. Na
atualidade, as manifestações ritualísticas populares, os jogos e todo tipo de
representação realizadas nas ruas do passado, estão cada vez mais escassas ou
regidas por uma institucionalização que parece sufocar seu caráter autônomo.
1.2 A Rua: Segmentos e Conceitos
A rua, por ser um ambiente conhecido e acessível ao cidadão comum, acaba
propondo uma postura menos rígida, mais aberta e suscetível a certos tipos de
interferências. Quando o teatro decide ser essa interferência e quebra essa barreira
de aproximação palco-platéia, utilizando o espaço urbano como sua cenografia,
surgem propostas e experimentações espaciais que vão além do pavimento das
ruas da cidade: prédios públicos como centros culturais, igrejas, rodoviárias e
escolas tornam-se espaços teatrais repletos de acepções que podem ser
desestruturadas e ressignificadas, dependendo da proposta da montagem cênica.
Nesse sentido, a rua pode ser utilizada como uma possibilidade de expressão
hierarquias do uso cotidiano da rua”. (CARREIRA, 2007, p.37-38).
Cruciani e Falleti (1999) afirmam em seu livro sobre Teatro de Rua que
sempre se fez teatro em áreas públicas como mercado, feiras, espaços
comunitários, igrejas e que isso é intrínseco às cidades, sejam elas pequenas ou
grandes centros urbanos. Também Anne Ubersfeld diz que os trabalhos artísticos
estão, com o passar dos anos, mais propensos a serem abertos em sua relação
espacial: o teatro pode ser feito em “fábricas, terrenos baldios, praças públicas [...]; a
salientar os signos da teatralidade, a nunca deixar o espectador esquecer que está
no teatro” (UBERSFELD apud REBOUÇAS, 2009, p. 130).
Historicamente encontramos diferentes momentos em que a relação
espectador – ator exigiu novos paradigmas. Antonin Artaud21 desejou fazer com que
o espectador estivesse no meio da ação, estabelecendo uma comunicação com seu
receptor - espectador (Ibidem, p.127). Para Jerzy Grotowski22, a proposta foi abolir a
distância entre o público e os atores, ao eliminar a rigidez do palco em suas
apresentações. Ele acreditava que era necessário “deixar que as cenas mais
drásticas ocorram face a face com o espectador, para que assim ele esteja à mão do
ator e possa perceber sua respiração” (GROTOWSKI apud BERTHOLD, 2004,
p.526).
As ideias de Artaud e Grotowski (Ibidem, 2004) podem ser relacionadas aqui
com o uso teatral de espaços não convencionais e com a utilização da rua. A relação
diferenciada de um espaço teatral fechado, como salas de teatro, e o ambiente da
rua, coloca em evidência a questão de interatividade entre ator e espectador,
eliminando as separações convencionais do espaço. No espaço aberto, essa
separação não existe de forma regrada. Mesmo que uma peça teatral apresentada
na rua possua demarcações de separação entre espetáculo e público, este local
está aberto e passível de sofrer invasões de pessoas. Pois a rua, é
convencionalmente, o espaço do cidadão comum e não usualmente do fazer
artístico.
A rua é o local da vida cotidiana, onde as pessoas andam, fazem compras,
comercializam e também serve de moradia para alguns. Peças teatrais e outras
manifestações artísticas, quando apresentadas nesse espaços, interagem com essa
parcela da população que vê neste local o seu ambiente conhecido e usual. As
ideias de relação nas propostas de Antonin Artaud e Jerzy Grotowski (apud
BERTHOLD, 2004) podem ser conectadas com essas propostas teatrais urbanas,
exatamente por estabelecer essa aproximação entre corpos, gestos e “respiração”,
como idealizavam estes grandes encenadores, cada qual em seu trabalho.
A utilização das ruas e espaços urbanos para fins teatrais aproxima então o
público desse teatro realizado nos espaços urbanos e em espaços abertos. Sendo o
espaço público um local de senso comum, “onde grupos sociais complexos e
díspares têm que entrar em contato inelutavelmente” (LIMA, 2006 p.42), é sensato
afirmar que apresentações teatrais apresentadas nestes espaços surtem um efeito
de fruição, daquele determinado espaço, que acaba gerando uma reapropriação do
local pelo olhar do passante.
A frequência constante a um determinado espaço público, pelo conhecimento que se adquire dos lugares, pelos trajetos cotidianos, pelas relações com os os donos dos bares e dos demais comércios, e outros índices cuja combinação e acumulação produzem a apropriação do espaço urbano, induzem a uma leitura que não se limita a ver apenas no espaço um objeto de conhecimento, mas sim um lugar de um reconhecimento, como observa Pierre Bourdieu (Ibidem, p. 40) .
O teatro, assim como as artes performáticas que tomam o espaço público,
visa renovar o olhar do transeunte sobre o espaço urbano. É relevante pensar então
as formas de apropriação utilizadas pelos grupos Teatro que Roda, Tá Na Rua e
Falos & Stercus e seus respectivos espetáculos estudados nesta pesquisa,
considerando a perspectiva da construção de discursos teatrais que dialogam com a
cidade como ambiente no qual se justapõe os procedimentos cotidianos dos
usuários com as intervenções cênicas desses grupos teatrais.
Desta forma, é importante o aprofundamento em alguns conceitos, que
auxiliam a análise do trabalho teatral para o espaço urbano, considerando a
Teatralidade, como conceito que permeia essa pesquisa.
No texto Acerca de La Teatralidad, a professora Josette Féral (2003, p. 10)
expõe a ideia segundo a qual a definição de Teatralidade é difusa e não demarcada,
mas utilizada sempre para definir tudo que pareça teatral. Por esse motivo, é preciso
do teatro. Féral diz que procurar definir esse conceito é interessante para refletirmos
sobre a produção e a recepção do teatro, mas que também é possível encontrar a
questão teatralidade fora do contexto teatral. Ou seja, a existência da teatralidade
fora do espaço considerado artístico, seria a base para as possibilidades cênicas:
“Porque o teatro recorre à teatralidade é que pode haver teatro” (Ibidem, p.11,
tradução nossa).
Para esta autora, a teatralidade possui três campos de aplicabilidade: no
teatro de forma geral, por fazer parte de sua natureza; na relação realidade e vida; e
por último, no terreno do vínculo entre teatralidade e o sujeito, no caso aqui definido
como fenômeno da recepção, pois a teatralidade é desconstruída, decodificada e
construída novamente pelo olhar do espectador (Ibidem, p.16). Seguindo este
pensamento, é possível dizer que a Teatralidade surge em um espaço dentro do real
onde a ficção possa aflorar.
Já Patrice Pavis (1999, p. 372) diz que “a teatralidade seria aquilo que, na
representação ou no texto dramático, é especificamente teatral ou cênico no sentido
que o entende”. Para o autor, a teatralidade também está presente em quase todas
as práticas: rituais, ações da vida cotidiana, artes plásticas, urbanismo, paisagismo,
etc (ibidem, p.23). Por esse motivo, o termo Teatralidade, pode ser considerado
meramente metafórico, pela ampla utilização em todas as artes. Ainda neste
contexto, a teatralidade pode ser uma junção de signos transmitidos à partir da
dramaturgia e lidos à seu modo pelo sujeito que observa.
A teatralidade também é citada nos estudos do pesquisador Óscar Cornago
(2005 p.2), nos quais este discute como o fenômeno do crescimento do grandes
centros urbanos, o surgimento da massa populacional pela revolução industrial, a
sociedade de consumo e, por fim, a revolução eletrônica dos recursos midiáticos,
potencializaram a teatralidade na cultura contemporânea. Com este pensamento, o
autor se refere ao grande número de possibilidades de atuação, onde podemos ver
e sermos vistos, com a proliferação de meios de comunicação e espaços públicos
ao alcance de todos.
Um dos pontos instrumentais para a análise dos espetáculos estudados
nesta pesquisa é a compreensão de espaço público e consequentemente, a noção