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A LITERATURA VIRTUAL

A TECNOCIÊNCIA – DOS BALÕES AO FUTURO DIGITAL

Foi publicada no New York Sun, no dia 13 de abril de 1844, com o título original The Baloon Hoax, a notícia: Espantosas Notícias por Expresso, Via Norfolk! Atravessado o Atlântico em três Dias! Assinalado Triunfo da Máquina Voadora do Sr. Monck Mason! Chegada à Ilha Sullivan, Perto de Charleston (Carolina do Sul), dos Srs. Mason. Robert Holland, Henson, Harrison Ainsworth e Quatro Outros no Balão Dirigível Vitória, Depois de Uma Travessia de Setenta e Cinco Horas de Um Continente a Outro! Pormenores Completos da Viagem!(POE,

2001, p. 703). Durante praticamente dois dias, acrescido do artigo que apresentava os detalhes do balão e da viagem em si, esse se torna o único assunto entre as pessoas. Apenas com a chegada do correio de Charleston é que se constatou que a notícia não era um fato verdadeiro, pois, o balão Vitória jamais fez tal viagem. Mas, a impressão que temos é que realmente poderia tê-la feito e que “o ar, assim como a terra e o oceano, foi dominado pela ciência e tornou-se uma estrada comum e conveniente para a humanidade!”147 pois seu criador, Edgar Allan Poe, foi capaz de fazer intervir o pensamento da ciência em suas histórias, não com a preocupação do pensamento e práticas positivistas, o que fica bem claro pela ironia inerente aos textos, mas incorporando a inventividade e possibilidade de descobertas e deduções que a ficção científica, e talvez apenas ela, é capaz de propiciar. Assim, o diário de “bordo” que narra a viagem do Balão Dirigível Vitória sobre o Atlântico descreve uma impossibilidade técnica para a época mas uma possibilidade ficcional passível de acionar os pensamentos científicos que partem em busca da construção de “sonhos”, muitas vezes classificados como impossíveis, mas realizados no futuro - “era com a maior dificuldade que alguém podia ser levado a crer na viagem real: a

travessia do Atlântico. A ancorazinha (do Balão) prendeu-se às duas horas da tarde,

precisamente, e, assim, a viagem inteira foi efetuada em setenta e cinco horas, ou antes, em menos, contando de continente a continente” (POE, 2001, p. 713).

Em outro conto, “Aventura sem–par de um certo Hans Pfaall”, mesmo que apresentando um balão construído com “papéis sujos” (2001, p. 664), que veio com um mensageiro de uma carta, há toda uma referência à “física em fermentação e toda a lógica e a astronomia” (POE, 2001, p. 663). O conto é centrado na carta, escrita pelo personagem central Hans Pfaall que, cansado da vida, em um balão, conseguiu chegar à Lua - “Decidi partir, embora vivo – abandonar o mundo, embora continuasse a existir; em resumo, para deixar de enigmas, resolvi, sem cogitar do que se seguiria , abrir caminho, se pudesse, até a lua” (POE, 2001, p. 675). Há, no texto, toda uma referência científica, aparelhos para condensação do ar atmosférico, barômetros e termômetros, medições precisas para distância entre os planetas, análise do raio da terra, elipse da lua, velocidade, geometria, extensão de área etc. Mesmo apresentando toda uma crítica ao comportamento exageradamente pragmático das ciências e suas vontades de execução, dados matemáticos não comprovados (deveriam sê-lo?), o conto de Edgar A. Poe revela a criação do fantástico que se utiliza da ciência para se construir. E, por mais que se negue, quando foi escrito, não havia a possibilidade de um balão chegar à Lua, como não há até hoje, mas havia a ficção possível que se tornou verdade, embora, é claro, não em um balão.

Edgar Allan Poe, por mais que na construção ficcional e não possível aos olhos da época, constrói uma história que apresenta certa plausibilidade com as ciências e com a tecnologia. E, com ele percebemos que, como no conto, “Mellonta Tauta”148, os processos intuitivos têm tanto valor quanto os processos epistemológicos, pois as invenções são importantes para a evolução dos diferentes ramos do que se considera como o saber científico e suas relações com a sociedade e a história. Este conto, uma excelente sátira social, descreve um diário escrito a bordo do balão “Cotovia”, no dia 1º de abril de 2848, ou seja, em um futuro que nós mesmos, no século XXI, não sonhamos alcançar. Com foco narrativo em primeira pessoa, a personagem, presa por um mês dentro do balão, escreve tal “diário-carta” destinando-o a um amigo, com a afirmação constante de que existe uma urgência de alguma idéia genial que possa estimular o cérebro humano a ser mais criativo, pois, em 2848, ele ainda está em um balão - “Ai, meu Deus! Quando será que qualquer

Invenção visitará o pericrânio humano? Estaremos condenados para sempre às mil 148Há uma nota no texto que afirma que Mellonta Tauta “são duas palavras gregas que significam :

inconveniências do balão? Ninguém inventará um meio mais expediente de locomoção?” (POE, 2001, p. 714). Frisando a palavra “invenção”, a personagem ironiza também o fato de vivermos em um tempo que abandona o individual, “tão esclarecido, em que nenhuma importância se dá à vida de coisa tal como um indivíduo” pois “É da massa que a verdadeira humanidade cuida” (2001, p.716) e, em seguida, discute o conflito, o conjunto de valores que distinguia e afastava a ciência da arte, já que “em todas as épocas, os grande obstáculos ao progresso da Arte foram opostos pelos chamados homens de ciência.” (2001, p. 717).

Como uma crítica à crença incondicional ao valor da ciência, nosso personagem, com espanto, continuará afirmando que “não faz mais de mil anos que os metafísicos consentiram em libertar o povo da singular fantasia de que existiam apenas dois possíveis caminhos para atingir a Verdade” (2001, p. 717) e que esses “dois caminhos eram os processos indutivo e dedutivo que eram afirmados pelos sábios como os caminhos únicos para se chegar ao conhecimento “Nenhum homem ousava enunciar uma verdade cuja origem só fosse por ele atribuída à sua Alma” (2001, p. 718) e que “a repressão da imaginação era um mal, não compensado por qualquer certeza superior, nos antigos sistemas de investigação” (2001, p. 718). E é a verdade que será o eixo divisor entre as concepções de arte e ciência pois, para os “antigos”, haveria uma verdade que, se já não comprovada, deveria ser encontrada pelo conhecimento, daí, a não valorização dos homens que teorizam. “Esses homens, afirmo, teorizam; e suas teorias são simplesmente corrigidas, reduzidas, sistematizadas, clarificadas pouco a pouco de suas impurezas de inconsistência, até que, finalmente, uma perfeita consistência se torne aparente, mostrando-se mesmo aos olhos do mais estúpido, porque é uma consistência, uma absoluta e inquestionável verdade” (2001, p. 720).

Os balões de Edgar Allan Poe, como instrumentos de tecnologia do futuro, não aprofundando aqui toda a crítica ao comportamento social neles embutida, são instrumentos preciosos para pensarmos ou repensarmos que as obras de ficção abordam uma questão fundamental, que é a valorização do cientificismo e mecanicismo nas sociedades modernas (ou deveria dizer, pós-modernas?). Não há,nas histórias dos balões, referência à humanização de seres artificiais, embora possamos citar aqui o conto “O homem desmanchado”, no qual a personagem , João

A. B. C. Smith, é uma caricatura das invenções mecânicas que podem “construir” integralmente um corpo149. Se, no entanto, nos indagarmos sobre o cerne dessas criações, creio que acabaremos por nos deparar com o fato de que as engrenagens mecânicas, os seres artificiais, o arsenal eletrônico hoje produzido, revelam o antagonismo entre o homem e sua própria natureza. Por isso, talvez, o cientista esteja no centro de toda essa discussão, pois ele é visto como aquele que está em busca do bem da humanidade e do seu crescimento. A não percepção disso é considerada obscurantismo e, nessa perspectiva, a tecnociência, como elemento gerador, não pode se aplicar esses limites.

É preciso repensar as fronteiras entre o humano e o técnico, ou melhor, a obra de ficção dissolveu a fronteira entre os limites das ciências, sejam elas humanas ou naturais, da tecnologia e da arte. E, ela foi capaz de pensar as fronteiras que se erguiam entre o real e o ficcional e, incorporando todo um conhecimento de uma época, imprimiu às narrativas, mais do que a simples tradução de uma história criada como mais ou menos verossímil, o cunho e traço de experiência (mais corajosa, por vezes, que a própria ciência). Tudo isso associado a uma análise e compreensão do comportamento social e humano, suas incoerências, seus medos, sua criação científica e tecnológica e todas as conseqüências para o tempo e cultura.

A chamada tecnociência não mais separa a ciência, que busca o conhecimento, da tecnologia que produzia, associada a esse conhecimento, um universo diferenciado de aplicações. Como algo de certa forma recente, ela passa a se constituir como um sistema e não se percebe mais, hoje, uma possível separação dos dois termos. Assim, é razoável afirmar que a sociedade atual estará orientada pela evolução e desenvolvimento da tecnociência que define, provavelmente, o nosso futuro como digital e acaba por “concretizar” muitos dos nossos sonhos apenas na ficção. Este é o valor da literatura de ficção científica, insisto, não aquelas histórias nas quais extraterrestres invadem a terra, ou das aventuras intergaláticas feitas em discos voadores, os ovnis e sua tripulação de homens verdes, mas aquela que 149 A personagem central conhece o general João A. B. C. Smith e se admira com a perfeição de seu

corpo, sua voz melodiosa, sua elegância, sua educação, para descobrir, no final, o grande mistério. Por participar de uma batalha, o corpo do general, desmanchado, era completamente reconstruído com a ajuda de seus serviçais – de uma “trouxa” atarraxava pernas de cortiça, os braços, os ombros e o peito. Escalpelado acrescentava a cabeleira, dentes, olhos (com os quais enxergava muito bem) e até mesmo o palato e língua para que pudesse ter aquela voz rica. É interessante observar que o general se

questiona a ciência, a tecnologia, suas “constatações”, “invenções” e sua ética. Aquelas que foram capazes de, associando o conhecimento científico de uma época, lançar seus olhos às descobertas e invenções como possibilidades de futuro. “Não há, realmente, fim para a marcha da invenção”, diz João A. B. C. Smith, personagem de Poe em “O homem que foi desmanchado” , que antecipa: “Nossos navios a vapor estão em todos os mares e o balão a vapor Nassau está prestes a fazer viagens regulares entre Londres e Tombuctu. E quem poderá calcular a imensa influência na vida social, nas artes, no comércio, na literatura , como resultado imediato dos grandes princípios da eletromagnética!”.

Com efeito, embora pareça um grande paradoxo150, percebemos que a literatura de ficção científica (ou a literatura fantástica) está centrada no real e reproduz, discute, constesta ou ironiza o espírito da ciência de uma época. Embora centrada no futuro e, por isso, sempre antevendo o que devemos esperar do mundo, essa percepção deste tempo está fortemente associada à análise do presente, pois aquele é, sempre, conseqüência deste. O “escritor do futuro” baseia-se na percepção do presente e podemos pensar que seja exatamente por isso que tenha sido capaz de antecipar diversas “elaborações” científicas.

A ficção científica faz repensar a relação da tecnologia com o humano, por isso parte dela tenha tendido à criação das “criaturas verdes que dominam a terra”, como uma antecipação de que a tecnologia não seria um instrumento de libertação do homem, sua emancipação pela razão e ampliação de suas possibilidades, mas um instrumento de alienação, pois este se transformaria, como resultado, no “homem- máquina”151, ou seja, aquele que, mais do que tudo, valoriza as possibilidades apresentadas pelo mundo tecnológico a ponto de com elas se confundir, como João

150 A idéia que sempre permeia a crítica sobre a literatura de ficção científica é que ela é toda

construída sobre o inverossímil.

151 No livro A vida digital, Nicholas Negroponte, embora não tenha uma visão positiva das

possibilidades atuais, afirma que o motivo para essa modificação e valorização maior do mundo digital é resultado também da educação. O autor afirma que “Nós estimulamos nossos filhos a se expressarem e a fazerem coisas. Então, quando eles chegam aos seis ou sete anos de idade, subitamente mudamos o nosso comportamento, deixando neles a impressão de que aula de pintura é algo tão extracurricular quanto beisebol, e muito menos importante do que, digamos, inglês e matemática. Ler, escrever e somar é o que devem aprender os meninos e meninas que querem ser alguém na vida e fazer alguma coisa. Ao longo dos vinte anos seguintes, damos alimentação forçada ao lado esquerdo de seus cérebros, deixando minguar o direito até o tamanho de uma ervilha.” (1995, p. 208).

A. B. C. Smith, que não consegue se ver como “desmanchado”, já que pode se construir pela mecânica.

Edgar Allan Poe reforça apenas a necessidade da intuição na produção técnica e científica e, por outro lado, já que era capaz de discorrer sobre o conhecimento científico mesmo que de forma literária, nos induz ao desejo de descoberta desses “preceitos” da ciência . Os balões, nos contos, são exemplos do desenvolvimento tecnológico da época e são metáfora dentro da história para essa “utopia” técnica e “distopia” em desenvolvimento. No ensaio Eureka, seu último livro publicado em vida, o autor apresenta uma crítica ao método científico. Assim afirma:

Não teria, especialmente, dado certo trabalho a esses fanáticos o determinar por qual de suas duas estradas foi atingida a mais importante e a mais sublime de todas as suas verdades – a verdade, o fato da gravitação? Newton deduziu-o das leis de Kepler ... Sim, Kepler adivinhou essas leis vitais – isto é, imaginou-as. Se lhe tivessem pedido que indicasse por qual estrada, se a dedutiva ou a indutiva, as havia ele atingido, sua resposta deveria ter sido: "Nada sei a respeito de estradas, mas conheço o mecanismo do Universo. Aqui está ele. Apoderei-me dele com minha alma. Alcancei- o simplesmente por meio da intuição" ... Sim! Kepler era essencialmente um teórico... (POE, 1966, p. 720).

O futuro digital promete o entendimento e controle da natureza e, com isso, teríamos a tranqüilidade de portarmos nossos problemas mais “orgânicos”, digamos assim , resolvidos de forma rápida e objetiva – basta, para isso, apertar um botão. A sociedade digital não apresenta fronteiras geográficas ou temporais e nela convergem diversos assuntos, saberes, culturas. Ela é interativa e, teoricamente, não admite autoridades e hierarquias. Por tudo isso se tornou imprescindível, na medida em que tem uma enorme rapidez e autonomia suficiente para a difusão de informações que acabam provocando modificações nas relações sociais, econômicas, institucionais, grupais e individuais. Nosso futuro digital está ancorado no desenvolvimento vertiginoso da eletrônica e das telecomunicações.

O futuro digital busca um futuro utópico e a literatura o ultrapassa, pois é capaz de revelar, com ou sem verdade, além das utopias, as distopias proporcionadas por essa mudança no entendimento da subjetividade. As histórias sobre viagem no

tempo, teletransporte – transferências no espaço - , máquinas inteligentes e novos experimentos biológicos foi a tarefa que a ficção científica apropriou-se para narrar a experiência de uma sociedade científica. No entanto, toda essa ficção criada foi condenada ao campo do que não era a verdade, não era factual, ou seja, era falso mas, ao mesmo tempo, ela é a única que investiga a construção dessa subjetividade numa época cuja característica primordial e ser tecnocientífica. A ciência não explica toda a realidade, é difícil pressupor que não tenha limites. O ângulo da ficção científica” apresentado como negativo não nos deixa esquecer que a tecnociência pode “corromper-se”, pois pode ser utilizada a serviço, não apenas da melhoria da vida humana, mas de sua destruição e violação de direitos. É bom que surjam “monstros-verdes” em ambientes inóspitos porque, por mais fantasiosos que sejam, estão sempre nos lembrando dos limites de nossa mortalidade.