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A LITERATURA COMO OBJETO VERBAL

A ARTE E A MÁQUINA

Nenhuma época conheceu mais expansão tecnológica do que o século XX. A física, com a teoria da relatividade, a física quântica, e a teoria do caos modificaram a visão newtoniana do universo. A revolução científica dos séculos XIII, XIV e XV provocou o desenvolvimento das universidades, a expansão da física, da ótica, da química e matemática. E, nos séculos XVI e XVIII, Bacon , Galileu, Robert Hooke, Robert Boyle, Newton e Descartes, apenas para citar alguns , propriciaram elementos básicos e fundamentais para o estabelecimento da ciência moderna – o indutivismo, a observação constante dos fenômenos para descobrir as leis que regem o mundo, a negação do empirismo, o método dedutivo, o método científico, a experiência.

18COELHO, Nelly Novaes. Universidade de São Paulo Disponível em:

A Revolução Industrial vai acontecer no século XVIII encerrando a transição entre um regime feudal e o capitalismo, substituindo as ferramentas pelas máquinas e a energia humana pela energia motriz, o que resultou, mais à frente, no desenvolvimento das indústrias eletrônica e química, na engenharia genética materializando os clones, que foram retratados anos antes na literatura, e os robôs, com a robótica, que aparecerão, da mesma forma, em textos literários antes mesmo de possíveis realidades. É o período em que surgem as máquinas a vapor, o telégrafo, a locomotiva, o fonógrafo, o cinescópio, a lâmpada. “A revolução científica transformou a visão humana do mundo de mística-autoritária para cética-discutível. O conhecimento gerado serviu para criar novas ferramentas que deixaram de depender da força muscular, seja ela humana ou animal, para usarem a energia físico- química como os motores a vapor e de combustão interna”.19

É, no entanto, no século XX, como decorrência de todas essas “revoluções” que se dará a Revolução Tecnológica, centrada sobretudo no desenvolvimento da cibernética, cujas modificações aceleradas no campo da informação e das novas tecnologias, provocaram uma transformação clara do conhecimento humano determinado, agora, pelos novos conceitos de comunicação. O físico-matemático Norbert Wiener, considerado o fundador da cibernética por estabelecer as bases dessa ciência, perceberá o homem como um organismo comunicativo analogamente à máquina, que também pode ser um organismo comunicativo. Mas, é preciso prestar atenção no fato de que, hoje, confundimos Cibernética com Informática. A cibernética é mais teórica; é , na verdade, o princípio embasador da informática, que é mais uma ciência de aplicação. E Wiener não fala da cibernética no sentido tecnológico e sim em relação à comunicação e à linguagem e afirma que “O propósito da cibernética é o de desenvolver uma linguagem e técnicas que nos capacitem, de fato, a haver-nos com o problema do controle e da comunicação em geral, e a descobrir o repertório de técnicas e idéias adequadas para classificar-lhe as manifestações específicas sob a rubrica de certos conceitos”(1973, p.17)

É perceptível, então, que todas essas revoluções visaram e impulsionaram o desenvolvimento das ciências e sobretudo das máquinas. Volta-se, mais uma vez, à 19In: http://lqes.iqm.unicamp.br/canal_cientifico/lqes_cultural/lqes_cultural_cultura_quimica7- 1.html. Acesso em 22/12/2006. Extraído de artigo de Ricardo Bonalume Neto, veiculado na Folha de

idéia de um homem entremeado e dividido pelo desenvolvimento maquínico. Assim, é difícil não relacionar também todo o desenvolvimento artístico ao desenvolvimento científico, industrial e tecnológico. Nos parece sempre mais fácil, por ser mais nítido, talvez porque as imagens são, para nós, elementos muito fortes de compreensão e análise, o entendimento de tais influências partindo do universo das artes plásticas. É possível, por exemplo, perceber que o desenvolvimento da máquina fotográfica, no século XIX, provocou modificações na forma como se produzia e entendia a pintura. Contudo, não há, para isso, um paralelo direto com a literatura, salvo o advento do livro impresso, as cópias em larga escala, que se darão no século XVIII, que permitiram o surgimento de um universo maior de leitores, modificando o conceito de narrativa20. A fotografia, diferentemente, vai provocar uma modificação de conceitos e, sobretudo, das formas artísticas.

Baudelaire afirmou que a fotografia iria corromper a arte, pois o pintor apenas retrataria o que via. Não haveria mais espaço para o sonho e a intuição, pois a fotografia não tinha mais nenhuma ligação com a imaginação e sim apenas com a máquina. Houve, inclusive, em dado momento, a necessidade de se diferenciar a pintura realista da fotografia, e a maneira foi associar, a esta, a idéia de interpretação da realidade e, àquela, a idéia de reprodução dessa mesma realidade. As críticas posteriores ao realismo e à imitação fizeram com que pintores fossem buscar novas maneiras de representação centrados nas formas e nas cores e daí, o impressionismo21.

“O impressionismo inaugura uma nova técnica plástica, a da fragmentação da pincelada e do tom, com o emprego de tintas puras, que deveria desembocar na mistura ótica” ( COUCHOT, 2003, p. 40). O impressionismo pode ser considerado como o ponto de partida da arte contemporânea. Degas, Monet, Pissarro, Renoir, Sisley eliminaram os detalhes minuciosos, simulando uma noção de realidade, com pinceladas curtas e justapostas até o pontilhismo de Seurat e as cores de Van Gogh. “É com o cubismo que se quebra definitivamente a coerência do espaço figurativo” (COUCHOT, 2003, p.48). Picasso e Braque vão revelar as formas a partir de vários ângulos até o surrealismo niilista de Duchamp e o expressionismo abstrato de 20Walter Benjamin demonstra que o livro trouxe consigo o “indivíduo isolado”.

21Embora pareça uma afirmação simplista, o que se deseja é afirmar que os pintores impressionistas

Kandinsky e Pollock. Toda essa arte está aliada à ótica e à ilusão de ótica do observador.

A referência à fotografia e sua relação com a arte, a pintura, envolve a referência às máquinas, ao desenvolvimento técnico e ao desenvolvimento dessas tecnologias. É possível pensar que o progresso da fotografia tenha “impulsionado” uma crítica ao realismo e o “surgimento” do impressionismo. Acredito que não seja possível comprovar isso de maneira objetiva e única, mas o fato é que a revolução científica, depois industrial e tecnológica, fez surgir novas dimensões e prespectivas e, com isso, novas “compreensões”. É sempre fascinante perceber que por mais que neguemos, o industrial também influenciou a construção da arte. Influenciou a pintura até na produção de tintas que “antes, tinham que ser produzidas pelo pintor, ou por um aluno, no atelier, e eram guardadas em bexigas animais (tripas) frágeis ou vidros muito pesados. Cézanne pintou com pincéis e espátulas produzidos industrialmente, obtendo uma pintura totalmente renovada. Tintas e novas cores industriais, bisnagas de metal, pincéis e espátulas feitos em série são frutos da Revolução Industrial que vieram definitivamente modificar a Arte”.22

Hoje, com a nossa tecnologia, todos esses conceitos estariam fragilizados, pois não é mais possível associar a fotografia à idéia de reprodução da realidade, ou seja, considerar a imagem fotográfica apenas como uma imagem “real”, e associar a pintura apenas à criação de imagens outras, não necessariamente verdadeiras. A imagem fotográfica nos nossos dias é, ou pode ser, para não me tornar por demais afirmativa, manipulada. Nesta perspectiva ela pode ser tudo menos a reprodução de uma verdade. Assim, teríamos a imagem real, a imagem imaginária e a imagem virtual (fruto da fotografia digital), todas intercambiáveis. A literatura, que é nosso enfoque central, não responde diretamente a uma modificação provocada pelas “máquinas”, embora estas tenham feito surgir uma arte tecnológica, via integração controlada por computador de construções multimídias, ou seja, textos gráficos associados a imagens, vídeos, animações e áudio. Mas, certamente, decorrente de todo esse desenvolvimento e de todas essas modificações sociais, a literatura cria-se como um conteúdo influenciado pelas máquinas e anuncia aos novos tempos prognósticos oriundos dessa análise e dos recursos da imaginação humana. É ainda

Couchot (2003, p. 53) quem afirma que a “mudança de percepção, expressa pela arte do início do século XX, não caiu do céu. Desde 1880, as técnicas não param de aumentar a oferta de imagens e signos e de ofertar a cada um, aos pintores e aos artistas especialmente atentos e sensíveis às modificações da percepção, a ocasião de experiências tecnestésicas muito novas. O universo técnico mudou consideravelmente, penetrando no coração da vida cotidiana. A percepção do espaço e do tempo se modifica ainda”. É impossível que a literatura, nem que apenas no formato, não se vise sensível a tudo isso.

Essa modificação técnica e tecnológica e, sobretudo, as noções não mais constantes e absolutas do espaço e do tempo associadas à nossa construção de virtualidade é que transforma a literatura de ficção científica em um bom exemplo das construções literárias que podem estar relacionadas a essas transformações da arte, pois é na ficção científica que encontraremos a concretização, verdadeira ou não, real ou irreal, verossímil ou inverossímil, dessas mudanças e, assim, o rompimento dessas fronteiras. O fotógrafo está sempre submetido à “presença real do objeto”, enquanto o pintor tem a sua frente uma tela em branco e, nela, pode produzir o objeto que imagina. O texto literário pode partir de um “nada”, criar de um “início” imaginário. A ciência não tem essa prerrogativa, pois sempre se relaciona com as “verdades” da natureza, com as descobertas, experiências, pensamentos anteriores. É importante lembrar, contudo, por mais que isso se assemelhe a um paradoxo, que o passado da arte é memória e, como tal, é mantido; e o passado da ciência e da tecnologia é substituído, para que estas “evoluam”.