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COM O DEUS TRANSCENDENTE DO TEÍSMO

1.1. A necessidade de integração metafísica: o panenteísmo como síntese das teorias sobre a natureza de Deus

1.1.2. A tensão entre o panteísmo e o teísmo na Primeira Modernidade

O cristianismo introduziu o conceito de teísmo de uma forma mais clara do que os gregos haviam podido cogitar. Cunhado apenas no século XVII, por Ralph Cudworth, o teísmo advoga a existência de um supremo espírito criador ou responsável pela ordem cósmica. Esta não é uma ideia estranha aos gregos, mas ela estaria amalgamada ou associada a outras ideias que a moderna filosofia cristã viu por bem separar sob a alcunha de panteísmo: a

167 Humberto Schubert Coelho, Plotino e o problema das origens na metafísica subjetivo-objetiva,

Aufklärung 4, 2016.

168 Proclus, The Elements of Theology, Oxford, Clarendon, 1963, e Jens Halfwassen, Hegel und

der spätantike Neuplatonismus. Untersuchung zur Metaphysik des Einen und des Nous in Hegels speku- lativer und geschichtlicher Deutung, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 2005, pp. 70-81.

Emanatismo, Panteísmo, Panenteísmo e Pantiteísmo

identificação entre Deus e o mundo. As controvérsias entre teísmo e panteís- mo extendem-se por toda a Modernidade, até 1828, quando Karl F. Krause criaria o conceito relativamente conciliatório de panenteísmo: pan-en-théo significando que tudo está contido em Deus e a ele intimamente ligado, sem que ele se confunda com aquilo que contém. Por esta época, grande número de pensadores monistas haviam sido acusados de deturpar o conceito de Deus cristão em favor de uma unidade impessoal, confundida com a criação, e até amoral. Krause observou, entretanto, que a maioria desses pensadores não chegava ao ponto da identificação total entre Deus e a realidade, mantendo, em variadas proporções, elementos distintivos entre o Uno e o múltiplo, bem como os traços intelectuais e morais de Deus que caracterizam o teísmo.

Recentemente, alguns dos maiores autores dedicados ao conceito de pa- nenteísmo afirmam que Platão, Plotino e muitos outros autores antes erro- neamente classificados como panteístas ou teístas agora podem ser melhor compreendidos através do uso retrospetivo do termo panenteísta170.

O resgate das ideias neoplatónicas ensejado pelo Renascimento e pela Reforma estará mais marcado do que se pensa pela receção cristã antiga e medieval, ainda que a enxurrada de textos antigos trazidos pelos árabes e bizantinos favoreça o retorno a pensamentos pagãos. Desse modo, autores panteístas ou panenteístas como Bruno, Paracelso e Böhme (e potencialmen- te Nicolau de Cusa) não se deixam confundir com entusiastas ingénuos das ideias pagãs sobre Deus. Com raríssimas exceções, os filósofos monistas da Renascença e das primeiras décadas da Era Moderna são cristãos, gravemente comprometidos e preocupados com as noções de responsabilidade moral e transcendência de Deus, tipicamente teístas.

Após a inversão cartesiana para a fundamentação subjetiva da metafísica, Espinosa (1632-1677) estabelece um parâmetro para os argumentos monis- tas que só começaria a perder fôlego no fim do século XX. No Breve Trata-

do, Espinosa observou que: o intelecto finito não pode conter as infinitas

coisas com graus infinitos de atributos, de modo que o intelecto deve ser infinito; as substâncias ou bem deveriam ter atributos distintos, sendo assim inconciliáveis – como visto na crítica ao primeiro modelo da doutrina das ideias de Platão –, ou bem deveriam ter todos os atributos, mas no segundo caso, o único possível, não há sentido em multiplicar as substâncias, pois elas seriam definidas por atributos redundantes e, deste modo, terminariam por ser idênticas; que, ademais, Deus é causa imanente e não transitiva das coisas, «já que opera tudo em si mesmo e não fora, posto que fora dele não há nada»171.

170 Cf. John Cooper, Panentheism, The Other God of the Philosophers, Michigan, Baker Academic,

2006.

171 Espinosa, Breve Tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar, Belo Horizonte, Autêntica,

Do fato de ser perfeita a substância única também decorre que todos os eventos são necessários, pois tudo o que existe está em conformidade com o perfeito intelecto e a perfeita e inalterável vontade de Deus.

Conforme se vê na Ética (parte I proposições 11-14)172 a substância in-

finita existe necessariamente (seguindo uma estrutura lógica semelhante à do argumento ontológico), e só pode ser uma, baseado no princípio de que esta substância deve conter também todas as possibilidades de manifestação (contendo todos os atributos e seus modos de expressão) e não há sentido em dizer que há duas ou mais substâncias com essas características. Dada a unicidade da substância, toda a essência coincide com toda a existência, o que só pode valer para Deus, mas, com isso, vale para tudo o que existe.

Dessa maneira, Espinosa marcou fortemente a posição do monismo lógi- co, com a vantagem de que ele parecia conciliar muito bem as esferas ontoló- gicas da mente e da matéria em um continuum naturalizado. Contudo, o erro evidente do modelo de Espinosa foi ter excluído ou diminuído a um ponto inaceitável as noções fundamentais de individualidade e liberdade, que não apenas são integrantes básicos da tradição filosófica como correspondem a intuições de que a mente humana só raramente está disposta a abrir mão.

Gottfried W. Leibniz (1646-1716), por sua vez, admite uma versão mo- dernizada da formulação de Aristóteles de que a substância é o conteúdo individual que dá ser a um item173. Ele também enfatiza a impossibilidade de

excluir a noção forte de livre-arbítrio, com responsabilidade moral, de um sistema filosófico que pretenda abarcar todo o espectro das preocupações filosóficas mais fundamentais. Mais importante, talvez, do que a própria eliminação da ética são as consequências que isso tem para a metafísica, pois, se não há responsabilidade moral, a obra de Deus não é boa, e o supremo autor não é digno de louvor174. Para usar a metáfora da primeira moderni-

dade, Deus não é sequer um relojoeiro, é um relógio, um mecanismo admi- rável, mas carente de virtudes e qualidades que reconhecemos existir e que a filosofia de Espinosa não conseguiu eliminar tão bem quanto pretendia. Ao firmar esse ponto, Leibniz tornará necessária a separação entre o ser de

172 Antes das proposições destacadas também se deve considerar «[Prop II] Duas substâncias que

tenham atributos diversos nada têm de comum entre si. [Prop III] De coisas que nada tenham de comum entre si, uma não pode ser causa da outra.» De modo que se segue «[Prop XI] Deus, ou, por outras palavras, a substância que consta de infinitos atributos cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente. [Prop XII] Não se pode conceber, verdadeiramen- te, qualquer atributo da substância do qual resulte que a substância pode ser dividida. [Prop XIII] A substância absolutamente infinita é indivisível. [Prop XIV] Afora Deus, não pode ser dada nem ser concebida nenhuma substância.» Baruch de Espinosa, Ética, in Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 2004, pp. 153-154; 161-165.

173 Nicholas Jolley, Metaphysics, in The Cambridge Companion to Early Modern Philosophy, Ed.

Donald Rurtherford, Cambridge, Cambridge University Press, 2007, pp. 108-109.

174 G. W. Leibniz, G. W. Discurso de Metafísica e outros textos, São Paulo, Martins Fontes, 2004,

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Deus e o ser das criaturas. Entretanto, Leibniz provavelmente reconhece a força do argumento de Espinosa em favor da infinitude dos atributos e que uma substância não os poderia ter limitados, admitindo que toda e qualquer substância deve conter, ainda que em gérmen, a infinitude dos atributos, as- sim como se constata que não pode uma substância se dividir e gerar outras, ou deixar de existir, exceto se criadas ou aniquiladas pela causa primeira e absoluta de seu existir175.

Da infinitude insinuada nas substâncias pelo fato de refletirem a infinitu- de do Criador e do fato de serem elas circunstanciadas e definidas por predi- cados que as finitizam advém a condição intermediária dos entes ou móna- das, dos quais Leibniz conclui também serem eminentemente espirituais, já que as características do intelecto e da vontade não podem ser derivados da extensão e da forma, ao passo que essas últimas podem ser explicadas pelas características do espírito circunscrito a uma perspetiva e um horizonte defi- nido de ações possíveis segundo essa perspetiva.

É suficientemente sabido que essa tensão entre os dois autores teria im- portância capital para a Filosofia Clássica Alemã176. Não apenas houve uma

espécie de renascença espinosana177 em pleno auge do iluminismo wolfiano,

calcado em Leibniz, como ela veio a coincidir com as profundas transforma- ções do sentimentalismo ético rousseauniano, o crescimento do gosto dos intelectuais alemães pela mística pietista ou pela mística luterana do século XVII, bem como a forte guinada propiciada por Kant em direção a novas perspetivas metafísicas.

Depois de Espinosa, o pensador que mais fortemente influenciou os modelos panteístas e panenteístas na filosofia alemã foi o dualista e teísta Immanuel Kant. Apesar de apresentar uma radical separação entre as ordens física e moral da realidade, Kant abriu a porta para os grandes projetos sis- temáticos ao desdobrar ambas as esferas de uma unidade transcendental, de carácter construtivo, ativo e espontâneo. Isso equivale a dizer que ele revela o modo de fundamentar de maneira total e absoluta os “dois mundos”, isto é, todo o campo do saber e da ação humanos na subjetividade, permitindo o surgimento do idealismo crítico. Dito de outro modo, aquilo que Kant havia (corretamente) cindido a fim de evitar devaneios da especulação metafísica a partir de pressupostos dogmáticos se poderia desdobrar, agora, do carácter sintético do ponto de vista transcendental. Excluída a possibilidade de espe- culação, Kant acreditou ter extirpado a metafísica de sua filosofia, sem per- ceber que esta era apenas em seu uso uma revolução epistemológica; quanto

175 Cf. ibidem.

176 O embate entre Leibniz e Espinosa e sua importância para a filosofia alemã foi bastante dis-

cutido, por exemplo, em minha tese de doutoramento: Humberto Schubert Coelho, Livre-arbítrio

e sistema; Conflitos e conciliações em Böhme e Goethe, Juiz de Fora, UFJF, 2012.

177 Hermann Timm, Gott und die Freiheit: Studien zur Religionsphilosophie der Goethezeit, Bd. 1,

ao seu fundamento a filosofia transcendental não é mais do que metafísica da subjetividade178.

1.1.3. O panteísmo e o panenteísmo como formas de naturalização da

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