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Introdução: para uma metafísica que supere o panteísmo na con ciliação entre a identidade do Ser e a diferença dos seres

pantiteísmo de José Maria da Cunha Seixas

1.2.1. Introdução: para uma metafísica que supere o panteísmo na con ciliação entre a identidade do Ser e a diferença dos seres

O pensamento ocidental apresenta três soluções principais para a raciona- lização da origem da realidade e da relação entre Deus e o Mundo.

Por um lado, temos a perspetiva monista com origem no eleatismo pré-so- crático e no estoicismo, que viria a ser desenvolvida na modernidade por Es- pinosa e pelo idealismo alemão acerca da necessária unidade e identidade da realidade, a qual se traduz pela noção de panteísmo que significa a afirmação de que «tudo é Deus». Esta teoria suprime um dos termos da antinomia Uno e Múltiplo e reduz a realidade a uma só substância e a um só ser: na redução espiritual, a matéria apresenta-se como sua manifestação inconsciente; na re- dução material, o espírito apresenta-se como seu epifenómeno. Num sentido mais amplo, o monismo não se opõe ao pluralismo de seres e substâncias materiais ou espirituais. Embora Parménides apresente a visão dualista da divisão em mundo da verdade e mundo da aparência, que seria desenvolvida por Platão, tende para o monismo, pois o ser é comparado a uma esfera re- donda e perfeita que não admite mudança nem divisão. O monismo estático de Parménides, herdeiro dos monismos panteístas orientais, que adquire em Plotino a forma não exclusiva de um panteísmo emanatista, transforma-se com o Idealismo moderno em monismo dinâmico, absorvendo os entes no Ser e reduzindo a sua multiplicidade a manifestações do processo evolutivo do único ser infinito, como acontece, por exemplo, no hegelianismo que identifica o Espírito Absoluto com o dinamismo da natureza e o devir da história humana.

195 Não sem razão este argumento é aproveitado por emergentistas, ainda que com distorções

que o afastem da visão original de Krause.

Por outro lado, temos a perspetiva dualista com origem no mazdeísmo per- sa de Zoroastro e radicalização no maniqueísmo acerca da existência de dois princípios últimos irredutíveis de toda a realidade, o bem originando o mundo espiritual e o mal originando o mundo material, que viria a ser desenvolvi- da em sentido amplo e mitigado pelos pré-socráticos, por Platão e Aristóteles, pela tradição judaico-cristã e pelo legado cartesiano da modernidade, através de conceitos ontológicos e gnosiológicos antitéticos e bipolares, mas preservando a unidade de um princípio originário. Em termos filosófico-teológicos cristãos, a génese desta configuração da realidade reside na revelação bíblica e tem o seu desenvolvimento na patrística neoplatónica e na escolástica medieval com a diferenciação ontológica entre a realidade necessária e eterna do Criador e a realidade finita e contingente das criaturas, que se traduz pela noção de teísmo que significa a crença na existência de Deus transcendente ao Mundo.

A procura de superação do monismo e do dualismo radical é dada pela doutrina teísta metafísica da criação, sustentada pelas teorias da participação e da analogia, estabelecendo a relação unitária da diversidade dos seres com a fonte originária do Ser supremo. Apresenta-se, assim, como a alternativa ao deísmo dualista e ao panteísmo monista. Na corrente ortodoxa teísta, e como forma de racionalizar a relação entre a liberdade humana e a providência divina, ficou ainda do Zoroastrismo e do Maniqueísmo persas, a tese escato- lógica do juízo final e do destino dúplice da realidade na concomitante eter- nidade do bem e do mal, do reino edénico e da perdição do inferno. Se para o dualismo gnóstico há um princípio divino superior ao demiurgo ou criador do Mundo material, para o dualismo maniqueísta há uma igualdade de po- der nos dois princípios originários da realidade que permanece eternamente.

A noção teísmo, do grego θεός, e a noção deísmo, do latim deus, são termos sinónimos que significam a «crença em Deus», no entanto, no âmbito da tra- dição histórica filosófica, o termo deísmo passou a significar a afirmação na existência do Ser supremo de Deus criador do Mundo, mas negando a sua ação ou presença providencial depois da Criação e negando a sua intervenção sobrenatural pela Revelação e pela Graça. Esta posição é associada ao Deus do mecanicismo racionalista que arquitetou o mundo na sua ordem perfeita com leis fixas e imutáveis, pelo que não precisa de ulterior intervenção por- que é uma obra perfeita. Trata-se de uma perspetiva difundida no contexto iluminista da religião natural e racionalista de livres pensadores como David Hume, Kant e Voltaire. O deísmo é uma perspetiva que assume o dualismo ontológico de Deus, que está separado do Mundo e o abandona no seu curso, e que, dessa maneira, se contrapõe linearmente à perspetiva do panteísmo que assume o monismo ontológico de Deus, que é idêntico ao Mundo.

Neste contexto, o termo teísmo representa o esforço de conciliação entre a necessária imanência e a necessária transcendência por via da mediação da graça sobrenatural. Podemos dizer que se constitui, na história da cultura europeia, como uma terceira grande solução para conceber a relação entre o

Emanatismo, Panteísmo, Panenteísmo e Pantiteísmo

divino e o mundano, mas com naturais cedências ao dualismo, porque parte da prevalência da transcendência, negando a perspetiva de uma divindade imanente impessoal. O mesmo se aplica à nova proposta do panenteísmo de Krause que, no polo oposto, também procura ser essa terceira alternativa, par- tindo da prevalência da imanência com base na noção de excedência divina de Nicolau de Cusa 197 e negando a perspetiva da criação como comunicação ad

extra de um Deus transcendente. Esta denominação de panenteísmo é criada

entre a edição da obra Compendio da parte Analítica de 1825 e a obra Lições

sobre o sistema da Filosofia de 1828, para traduzir a compreensão de Karl

Krause sobre a imanência do mundo no seio de Deus198.

Esta configuração panenteísta da realidade viria a ter acolhimento na sen- sibilidade teológica e filosófica da cultura religiosa espanhola liberal, na li- nha reformadora que vinha de Erasmo até à Ilustração, e que consistia na heterodoxia mística de uma certa liberdade de consciência em conexão com a reforma protestante e em reação à ortodoxia institucional católica do Con- cílio de Trento. Ao contrário do pensamento monista e panteísta hegeliano, que tende a diluir o indivíduo no absoluto e promove uma noção de ordem política que salienta o poder estatal, esta corrente krausista reformadora sa- lienta os direitos da pessoa de acordo com a ideologia liberal. De entre as várias figuras do Krausimo espanhol destaca-se Sanz del Río, que em 1850 publica a obra K. Chr. F. Krause: Lecciones sobre el Sistema de la Filosofia ana-

lítica199 e em 1860 publica a obra Krause, Sistema de la Filosofia. Metafísica.

Primeira parte. Análisis200 e a obra Ideal de la humanidade para la vida201.

A estrutura do Sistema, de via analítica e sintética, de Sanz del Río reproduz a obra de Krause publicada em 1828 com o título Lições sobre o sistema da

Filosofia, acrescentando alguns elementos do krausismo belga de G. Tiber-

ghien. O seu propósito é claro: superar o panteísmo do idealismo alemão por via de uma fé racional e procurar, pelos meios puramente naturais, conhecer a essência Deus e o destino dos seres nele contidos. A razão não se impõe, no sentido ateu, como substituta de Deus, mas procura encontrar os laços de conexão com a razão de Deus202.

197 Cf. Nicolau de Cusa, De docta ignorantia, III, 1, § 185, Lisboa, Fundação Calouste Gul-

benkian, 2012, p. 131.

198 Cf. Karl Krause, Vorlesungen über das System der Philosophie von Karl Christian Friedrich

Krause, Göttingen, 1828, p. 256.

199 Cf. Zanz Del Río, K. Chr. F. Krause: Lecciones sobre el Sistema de la Filosofia analítica por

D. Julián Sanz del Río, Madrid, Imprenta de los Sres. Andrés y Díaz, Plazuela del Duque de Alba,

n. 3, 1850.

200 Cf. Sanz del Río, C. Cr. F. Krause. Sistema de la filosofia. Metafísica. Primeira parte. Análisis,

expuesto por D. Julián Sanz del Río, Catedrático de História de la Filosofia, en la Universidad Cen-

tral, Madrid, Imprenta de Manuel Galianao, Plaza de los Ministerios, 3, 1860.

201 Cf. idem, Ideal de la humanidad para la vida, Barcelona, Ediciones Orbis, 1985.

202 Cf. Manuel Suances Marcos, Historia de la Filosofía Española Contemporânea, Madrid, Edi-

Partilhando a mesma preocupação, numa obra publicada em 1878 com o título Princípios Gerais de Filosofia da História, o pensador português José Maria da Cunha Seixas refere-se ao panteísmo de Hegel e de Schelling, ao monismo inconsciente de Eduard von Hartmann, que viria a influenciar pro- fundamente o pensamento de Sampaio Bruno, e ao panenteísmo de Krause que, no seu entender, procura superar o monismo panteísta através da fór- mula unidade, diversidade e harmonia203. Em 1883, na sua obra O Panteís-

mo, Cunha Seixas afirma a legitimidade da doutrina panteísta, que surge ao

pensamento unificador como representação da realidade enquanto uma só substância de onde tudo emana numa identidade universal, mas recusa que seja a posição verdadeira e, nesse sentido, propõe uma nova solução a que dá o nome de pantiteísmo, que significa Deus em tudo, em que a identidade não se dá na essência infinita, mas dá-se na existência a quando da manifestação do Ser nos seres: «O panteísmo quer fazer Deus-tudo e Deus todo; o panti- teísmo vê Deus em tudo e assim fica arredado do panteísmo e mais próximo da dualidade cristã, que reconhece Deus como distinto de tudo»204.

Talvez uma nova reflexão em contexto teísta cristão possa dar uma maior consistência a esta terceira via conciliadora do panteísmo com o deísmo, que supere o impasse gerado pela metafísica tradicional e pelos idealismos e racionalismos modernos. Assinalamos esse esforço em dois planos: a) na reflexão sobre o carácter analógico da realidade e da presença fontal de Deus transcendente na imanência do Mundo, na linha do que fazem os neo-tomis- tas histórico-hermeneutas Marèchal, Béla Weissmahr, Xavier Zubiri, Karl Rahner, Bernard Lonergan, José Enes, Jorge Coutinho e Joaquim de Sousa Teixeira; b) na reflexão sobre a manifestação de Deus e a participação da sua ativa presença, na linha do que fazem os fenomenólogos e existencialistas Gabriel Marcel, Michel Henry e Paul Ricoeur e os neoplatónicos ideo-rea- listas e hermeneutas Maurice Blondel, Leonardo Coimbra, Louis Lavelle, Manuel Barbosa da Costa Freitas e Joaquim Cerqueira Gonçalves.

De qualquer maneira, identificamos no debate do século XIX sobre o panenteísmo, o primeiro momento de procura de reabilitação da metafísica da imanência em contexto cristão e no qual participou com relevância o pensador português José Maria da Cunha Seixas, que introduz a noção de

pantiteísmo para diferenciar o seu sistema da proposta panenteísta de Krause

adotada na ibéria por Sanz Del Río. Importa pois perguntar: nesta comum procura de superação da noção panteísta de Deus substância de Espinosa, sem perder a necessidade de um meio de união entre Deus transcendente e o Mundo imanente, em que difere o pantiteísmo de José Maria da Cunha Seixas do panenteísmo de Krause divulgado por Sanz del Río? Poderemos

203 Cf. José Maria da Cunha Seixas, Princípios Gerais de Filosofia da História (1878), in Princípios

Gerais de Filosofia e outras obras filosóficas, Lisboa, INCM, 1995, p. 112.

Emanatismo, Panteísmo, Panenteísmo e Pantiteísmo

nós identificar nestas propostas de Krause e de Cunha Seixas, que em re- lação ao panteísmo se reivindicam mais próximas do criacionismo cristão, elementos válidos para a uma terceira solução que concilie a imanência e a transcendência de Deus na relação com o Mundo?

1.2.2. Da teoria panteísta de que «tudo é Deus» à teoria panenteísta de

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