• Nenhum resultado encontrado

A certeza da existência de Deus não se dá por demonstração, mas pela imediatez da sua intuição, na imanência do sujeito consciente que

pantiteísmo de José Maria da Cunha Seixas

1.2.4. A certeza da existência de Deus não se dá por demonstração, mas pela imediatez da sua intuição, na imanência do sujeito consciente que

se reconhece como elemento interno da totalidade de Ser

Embora inconscientemente ou atematicamente, em qualquer pergunta pelo fundamento é suposta a realidade suprassensível do Ser ou de Deus, dentro do qual é tudo o que é e fora do qual nada é. Deus é um objeto de pensamento que ultrapassa toda a experiência sensível e histórica, e todo o homem está capacitado para o pensar através da intuição fundamental, una, total infinita e absoluta: a ideia fundamental de Deus não surge à cons- ciência mediante a abstração de propriedades, porque é em si e não está condicionada pelas intuições parciais de ser, como as de natureza, razão e humanidade250.

A validade do pensamento transcendente ao Eu, sobre a intuição do Ser, distingue-se da validade dos restantes pensamentos, porque o conteúdo deste conhecimento está aquém e além da distinção entre sujeito e objeto e está acima das distintas modalidades de existência. O princípio absoluto, que é Deus, não pode ser demonstrado, e o seu pensamento resulta de uma in- tuição imediata e certa em si mesma. Assim, Krause, no plano estritamente lógico-subjetivo da análise, atinge a realidade incondicional e não relativa de um Deus infinito e absoluto sem fundamento, que é distinto do Deus ne- cessário e perfeito da prova demonstrativa tradicional, como aquela prova a

posteriori que aparece na monadologia de Leibniz, segundo a qual, a partir da

facticidade do empírico contingente alcança a ideia de um ser necessário em que a essência implica a existência251. A prova a posteriori constitui-se no re-

conhecimento da existência de seres contingentes que não têm razão última ou suficiente senão no ser necessário, que tem em si mesmo a razão da sua existência e é fonte de todas as existências252. Também Cunha Seixas chega à

ideia de Deus pela evidência lógica da reflexão ontológica que na possibili- dade ideal implica os atributos de universalidade, necessidade, infinidade e eternidade, os quais remetem para a necessidade de uma fonte suprema que não pode deixar de ser o absoluto253.

249 Cf. Karl Krause, Die Lebre vom Erkennen und von der Erkenntnis, als erste Einleitung in die

Wissenschaft. Vorlesungen für Gebildete aus allen Ständen. Herausgegeben von Hermann Karl von

Leonhardi (Mit drei erläuternden Steindrucktafeln), Göttingen, 1836, p. 454.

250 Cf. idem, Vorlesungen über das System der Philosophie, Göttingen, 1828, p. 207.

251 Cf. Leibniz, Princípio de Filosofia ou Monadologia, § 44, trad. de Luís Martins, Lisboa,

INCM, 1987, p. 52.

252 Cf. Leibniz, Princípio de Filosofia ou Monadologia, § 45, in op. cit., p. 53.

Emanatismo, Panteísmo, Panenteísmo e Pantiteísmo

De acordo com Krause, qualquer homem está capacitado para pensar um ser infinito substantivo que nada tem fora de si, mas que é em si e dentro de si a unidade fundamental de tudo. Mas é necessário ainda afirmar a validade desse pensamento e a validade da existência deste Ser que pode ser assim pensado como fundamento e causa de toda a realidade. Não se coloca o pro- blema gnosiológico da adequação do sujeito ao objeto, porque o conteúdo do pensamento de Deus, dado na intuição de Ser, não encerra esta diferença entre o interior e o exterior ao sujeito cognoscitivo, mas é prévio a ela e fundamenta-a. Deus absoluto e infinito é prévio a toda a diferença e é seu fundamento, não externo, mas enquanto abarca e inclui a diversidade fun- dada. Ao contrário de Leibniz, para quem a razão suficiente e última tem de estar fora da sucessão dos contingentes254, em Krause a ideia cosmológica de

Deus remete para um primeiro fundamento que é prévio a essa sucessão dos contingentes, no sentido lógico-ontológico de que esse fundamento inclui dentro de si o fundado. A distinção não se dá no plano do ser originário, em que tudo é ser, mas apenas no plano do ser supremo. A pergunta pela valida- de objetiva da existência de Deus só tem sentido enquanto o espírito pensa o ser Uno, infinito e absoluto como realidade fora de si. Mas a intuição de Ser dá-se no Eu pela presença de Deus, pelo que é imediata e conhecida como verdadeira em si mesma, não estando submetida aos critérios de certeza dos restantes conhecimentos e às suas condições de possibilidade, porque é pré- via à diferença entre o conhecimento conceptual e o conhecimento sensível, bem como à união de ambos255.

O pensamento de Deus é válido, porque consiste numa certeza imediata que não carece de nenhuma demonstração objetiva. Numa alusão à teoria gnosiológica da iluminação de Santo Agostinho, considera Krause que não é a demonstração que faz a verdade, mas é a essência, ou seja, o conteúdo mesmo da ideia de Deus que está presente no Eu consciente. Se no caso das coisas finitas, o espírito pode intuir as suas essências sem ter a visão de que estão presentes em existência real, no caso do ser infinito de Deus a essência e a existência estão pensadas de forma inseparável256. Esta imediatez no pen-

samento de Deus deve-se à imanência do sujeito pensante dentro da realidade pensada, ou seja, deve-se à imanência do Eu dentro da realidade absoluta do Ser que excede esse mesmo Eu. Assim o ateu não é aquele que nega Deus, mas sim aquele que o desconhece e afirma que nega Deus. Na intuição de Ser de- saparece a oposição entre o conhecimento e o conhecido, pelo que o espírito finito reconhece-se como elemento interno do Ser e sob o Ser257. José Maria

Filosofia e outras obras filosóficas, p. 277.

254 Cf. Leibniz, Princípio de Filosofia ou Monadologia, § 37, in op. cit., p. 51.

255 Cf. Kal Rrause, Vorlesungen über das System der Philosophie, Göttingen, 1828, p. 22. 256 Cf. ibidem, p. 223.

257 Cf. idem, Der im Lichte der Gotterkenntniss als des höcsten Wissenschftprincipes ableitende Theil

da Cunha Seixas reconhece que a razão é uma luz no sujeito, mas adverte que é uma faculdade e que as suas ideias absolutas e invariáveis exigem reflexão e não são revelações diretas de Deus: «Se Deus pensasse por nós, operar-se-ia a identificação do finito com o infinito e eis o panteísmo»258.

A intuição do Ser corresponde a uma realidade que é, ao mesmo tempo, transcendente e imanente, porque é prévia à relação cognoscitiva. Deus é a unidade que contém a diversidade entre o Eu que conhece e o objeto co- nhecido, bem como a condição de todas as modalidades do real. Na procura de pôr o argumento ontológico a salvo das críticas de Kant, o panenteísmo revela assim uma continuidade lógica e ontológica entre o Eu e Deus, assente na ideia de semelhança entre o finito e o Infinito. A via analítica não é apenas a forma de reconhecer o pensamento de Deus como verdade, mas também a via de atingir uma fé racional em Deus, porque não assenta em nenhum fundamento demonstrativo. O corolário da ascensão analítica é concebido como uma revelação de Deus, que se faz permanentemente presente em todo o finito.

De uma forma mais próxima do panteísmo considera Krause que o espí- rito finito só pode pensar sobre Deus porque está fundado por Deus, reco- nhecendo o seu conhecimento sobre Deus como ação de Deus nele. Só na revelação pode a razão finita alcançar o conhecimento de um ser finito que a excede. De modo distinto do entendimento, que conhece a diferença, a oposição e a variedade, a razão é a faculdade que conhece a unidade do ori- ginário e do supremo. Não é possível conhecer a diversidade sem conhecer a unidade. Mas, ao mesmo tempo, o autor reconhece que há uma distância lógica intransponível entre a razão finita e a essência infinita de Deus e afas- ta-se do ontologismo de Malebranche. O divino não se dá de forma integral na ideia que o homem tem dele. Só Deus tem um intuir penetrante e abso- luto de si mesmo. O conhecimento racional de Deus é possível, porque na intuição de Ser é o próprio Deus que se revela ao homem e isso acontece de duas maneiras distintas: a) pela revelação eterna sempre presente; b) pela revelação individual e histórica que se dá de forma pontual no tempo, por via da comunicação direta de uma verdade concreta ao individuo ou a um determinado povo, como por exemplo no caso do povo judaico com a reve- lação de Cristo259.

O salto lógico suscitado pela Analítica, para se poder pensar Deus e para se reconhecer o pensamento de Deus como certo, só é possível no pressu- posto do conhecimento pré-intuitivo ou atemático de Deus que expressa a permanente revelação de Deus. Por via desta presença, torna-se possível a intuição de Deus. Não é o Eu que sabe a verdade, mas é Deus que sabe a

258 José Maria da Cunha Seixas, Princípios Gerais de Filosofia (1898), in Princípios Gerais de Filo-

sofia e outras obras filosóficas, p. 259.

259 Cf. Karl Krause, Die Lebre vom Erkennen und von der Erkenntnis, als erste Einleitung in die

Emanatismo, Panteísmo, Panenteísmo e Pantiteísmo

verdade nele, numa coincidência da revelação com a intuição que se dá num certo momento da vida concreta do homem. Esse conhecimento não é uma fé ou opinião, mas é um saber absoluto na intuição de ser que se dá por um exercício racional traduzido por uma autociência. Krause recusa assim a po- sição de Kant que nega a possibilidade do conhecimento racional de Deus e afirma que este se dá na coincidência entre a revelação eterna e o exercício racional. O conhecimento de Deus ou a intuição do Ser, como verdade ab- soluta que se dá a partir da certeza evidente do Eu por ser o único que surge como imediato à própria consciência, não é um privilégio do génio nem um favor divino, mas é acessível a todo o espírito que realize a autoinvestigação analítica, completando a auto-intuição preparatória pelo cumprimento das condições subjetivas intelectuais260.

Se não houvesse esta permanente revelação eterna de Deus, que resulta da continuidade ontológica entre Deus e o Mundo e se traduz na pré-intuição atemática do espírito finito, a intuição do Ser como Ser originário e unitivo só seria possível por uma revelação individual temporal e não pela via ana- lítica ou científica. As outras formas de demonstração de Deus são vias pro- pedêuticas, mas só a Analítica fundamental e antropológica é infalível. Para Cunha Seixas esta via analítica e científica assenta na intuição originária da ideia de ser que eleva à ideia de perfeição e de infinito como ser independen- te e eterno, imutável e perpétuo que se constitui como sinal da verdade,261

numa universalidade de ser que é identidade e não impede a distinção: «Deus é infinito, incondicional e fonte dos seres»262. O Ser é causa e relação, pelo

que manifesta a sua essência nos modos de atividade e existência no dina- mismo tensional da permanência e da evolução263, mas o pensador português

considera que o Ser supremo de Deus é um e imutável, pelo que não se ma- nifesta por relações como os demais seres, porque é incondicional, superior a todo o nexo, não havendo nele sucessões e outras características da lei da relação no sentido das maneiras de ser apresentado pelos panteísmos:

Deus manifesta-se como infinito e absoluto e como causa; mas não é força concluirmos, que a sua manifestação é uma série de re- lações, como nos seres criados, e que a manifestação de Deus seja da

mesma natureza da manifestação dos seres finitos.264

Assim, o autor remete para a ideia de imenso como realidade suprema de ser que existe por si e enche tudo com a sua existência ou omnipresença.

260 Cf. idem, Vorlesungen über das System der Philosophie, Göttingen, 1828, p. 224.

261 José Maria da Cunha Seixas, Princípios Gerais de Filosofia (1898), in Princípios Gerais de Filo-

sofia e outras obras filosóficas, p. 283.

262 Ibidem, p. 280. 263 Cf. ibidem, p. 289. 264 Ibidem, p. 290.

A essa realidade absoluta, dá o nome de Infinito que significa a plenitude de Ser, que só Deus possui, por distinção com os seres relativos ou finitos, os quais são concebidos em relação com o recurso à noção platónica e escolás- tica de participação:

Como o finito não pode existir sem a sua causa geradora e como o infinito é a eternidade e a imensidade, segue-se, que Deus está em

tudo, cedendo a todos os infinitos relativos a sua realidade e sub-

sistência, ficando sempre perfeitamente distinto, porque o eterno e imenso não se pode fundir com o transitório e com o limitado. Movemo-nos, somos e vivemos em Deus, participando da sua reali- dade sem confusão alguma.265

No entanto, o ser não se dá apenas na racionalidade do conhecimento e da intuição, mas também na intimidade, no sentimento e na vontade. Deus revela-se eternamente, não apenas à razão, pela verdade, mas também ao sentimento, pela beleza e pelo bem. O bem divino é o fim de toda a volição que só é possível à luz da vontade de Deus. Enquanto o Ser supremo é fim para si próprio, para o ser criado o seu fim ou o seu bem é a perfeição e a bondade suprema do Infinito. O Ser supremo infinito dispôs a Criação, não apenas com a ordem da natureza física, mas também com a ordem estética e a ordem moral, pelo que o bem das criaturas significa cumprir a ordem que corresponde ao seu fim. No caso dos seres humanos, o bem inclui também a lei moral, que quando é cumprida gera satisfação da consciência e que quan- do é violada gera o sentimento de culpa e remorso: «O bem é a realização da ordem: a mira da ideia de ordem. A ideia do bem aparece no eu a propósito de qualquer facto em que se viole ou em que cumpra a lei da ordem»266.

Assim, na perspetiva panenteísta de Krause, enquanto dentro e sob o Ser, o espírito finito é íntimo de Deus no conhecimento e no pensamento, no sentimento e na vontade, no sentido de uma totalidade religiosa. A atividade científica da intuição de Ser é considerada também uma atividade religiosa, na medida em que é conhecimento de Deus, ou seja, é um intimar com o Ser no espírito que se pode chamar de oração do espírito267. A Analítica é

uma ascensão para a divindade a partir de uma compreensão exclusivamente lógica do Eu, mas para que seja plena é preciso acrescentar o sentimento, que se expressa no bom e no belo, e a vontade, que se expressa na liberdade. Para evitar o fanatismo da religiosidade popular, que se deve ao desprezo da razão, Krause recusa a posição de Jacobi que considera o sentimento como a via primordial da relação do homem com Deus. Sem o desenvolvimento racio- nal não se dão de forma adequada o sentimento, a volição e a religiosidade.

265 Ibidem, p. 321. 266 Ibidem, p. 331.

Emanatismo, Panteísmo, Panenteísmo e Pantiteísmo

Assim, ao teísmo sentimental, baseado numa fé sentimental, contrapõe o teísmo da razão, baseado numa fé racional, na convicção de que quem não conhece as ideias de belo e de bom não pode experimentar a beleza e sentir a bondade e quem não tem o pensamento de Deus não o pode sentir268.

Para Krause, o desenvolvimento do sentimento religioso dos homens está de acordo com as conquistas no plano científico: à obscura pré-intuição de Deus corresponde a superstição e o fanatismo, sendo necessário ascender para a intuição e para o conhecimento para que se dê a passagem para um sentimento adequado de Deus. Porque só Deus é o Entendimento arquétipo num conhecimento penetrante da totalidade de si mesmo, é necessária a fé. Mas a fé difere do nível em que o espírito está na relação com o Ser: ao saber pré-intuitivo corresponde uma fé pré-intuitiva, que proporciona uma religião pré-racional, e ao saber intuitivo corresponde uma fé intuitiva, que proporciona uma religião racional. A fé perfeita é a que corresponde ao sábio científico que tem a intuição do Ser e é íntimo com ele.

Também no pantiteísmo de José Maria da Cunha Seixas encontramos esta exigência racional, pelo reconhecimento de que a revelação divina do belo e do bem também se dá no plano das ideias. Existe no homem a ideia de infi- nito, e na experiência das substâncias finitas é de imediato remetido para a substância infinita que enche toda a Criação com o seu ser e com os seus atri- butos, como a verdade, a beleza e o bem. Ao contrário do espírito humano que obedece à lei do tempo e da memória, o espírito de Deus é perfeito, não sofre de tais limitações e faz-se presente em tudo, nomeadamente no desejo e no pensamento do homem:

Assim há no homem um infinito de amor; e esse infinito, que produz tudo o que há de belo na história, nas belas-artes, na família, na sociedade, é apenas uma sombra a comparar-se com o infinito da perfeição, com esse infinito, que nos surge, porque todos os círculos são pequenos em face desse grande círculo, cujo centro está em toda a parte e cuja circunferência abrange todos os seres.269

1.2.5. A reflexão metafísica acerca da distinção entre aquilo que é «Deus

Outline

Documentos relacionados