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A TRANSCENDÊNCIA E A IMANÊNCIA

5. A via histórico-hermenêutica da transcendência metafísica

Podemos dizer que se dá com Nietzsche a viragem histórico-hermenêutica da filosofia, continuando o termo metafísica a ter uma conotação negativa, por representar todas as posições filosóficas que pressupõem a existência de uma realidade em si, anterior à linguagem e à sua interpretação. Para este autor, não há uma realidade estática de essências intemporais fundadas em Deus ou numa ordem transcendente, ou seja, não há uma realidade substan- cial em si ou factual independente da linguagem, mas há apenas interpre- tações156. Na via hermenêutica radical de autores como Nietzsche, Derrida,

Rortry ou Vattimo, encerra-se o pensamento na imanência da linguagem sem qualquer referência ao Ser e nega-se a possibilidade de qualquer metafí- sica, seja científica ou credencial, associando-se esta forma de pensamento às práticas violentas da Inquisição e da tragédia de Auschwitz.

De modo distinto, mas também em reação ao idealismo absoluto, Karl Jaspers vai propor uma Metafísica em que o Ser Absoluto, descrito como En- volvente ou Englobante transcendental, embora se enuncie no pensamento, não pode ser determinado por conceitos ou expressões lógicas, mas apenas por símbolos e vestígios, porque não é possível tentar objetivar o inobjetivá- vel: este Fundamento será sempre obscuro à nossa consciência157. Este filóso-

fo alemão, que nunca se deixou seduzir pelas vantagens de uma aproximação ao poder político de Hitler, viria a ter uma profunda influência sobre os pensadores portugueses do início do século XX como, por exemplo, Eudoro de Sousa ou Delfim Santos, no reconhecimento de que a vida situada numa existência circunstanciada não permite uma descrição universal do ser, pelo que o compromisso com a verdade não é de posse, mas de procura158.

Mas Jorge Coutinho considera que há uma via hermenêutica que, no seu desvelamento de sentido, dá acesso à realidade da transcendência metafísica, como indica a experiência sugestiva das verdades da revelação judaico-cristã apreendidas nos textos da Sagrada Escritura e da Tradição. O mesmo se pode dizer das experiências de uma determinada intuição ou pressentimento de Deus e de um autêntico sentimento ou desejo de imortalidade realizadas por artistas, poetas e pelo povo, num certo paralelismo com os profetas e escri- tores bíblicos que leem os sinais de Deus na natureza e nos acontecimentos históricos. Esta segunda via é mais humilde, porque não fornece certezas científicas, ou seja, não chega a ver e fica pelo escutar, não chega a saber e limita-se a interpretar os sinais da natureza e da cultura que apontam para um além. Sinais que não se apresentam como raciocínios demonstrativos,

156 Cf. Jorge Coutinho, Filosofia do Conhecimento, p. 185.

157 Cf. Karl Jaspers, Iniciação Filosófica, trad. Manuel Pinto dos Santos, Lisboa, Guimarães Edi-

tores, 1961, p. 36.

158 Cf. José Maurício de Carvalho, Filosofia e Psicologia. O Pensamento fenomenológico-existencial

mas como indícios que sugerem obscuramente ou apontam sem mostrarem. Aquilo que dizem é traduzido pela palavra simbólica, cujo excesso de sentido permite fazer ressoar de uma maneira melhor esse além metafísico que não pode ser inteligido e dito por ideias e palavras claras e distintas.

No entanto, como reconhece Jorge Coutinho, sendo mais humilde, a her- menêutica pode constituir-se como via mais verdadeira do que a científica, porque é mais capaz de dizer a indizibilidade do mistério do Ser159. É nesta

via que também Joaquim Cerqueira Gonçalves irá desenvolver o seu pensa- mento, no reconhecimento de que o fazer filosófico não se pode fundar na instância kantiana sujeito-objeto160, mas deve ter em consideração a estrutura

heideggeriana de ser-no-mundo, enunciando que um outro nível antecede aquela instância dualista da subjetividade e objetividade. A Filosofia não é uma iniciação secreta, só acessível a alguns iluminados para aceder a reali- dades que estariam por natureza fora do seu alcance, mas é uma ação que procura elevar a manifestação ser-no-mundo ao seu máximo expoente de sentido161. O mundo da filosofia ganha forma, não na linguagem científica,

que tem a função de definir e realizar mundos planeados previamente para serem repetidos, mas na linguagem natural, que constrói o mundo progres- sivamente da forma mais universal e diferenciada possível162. E, nesse âm-

bito, ao contrário da tradição grega, que desvaloriza o mundo sensível e a temporalidade histórica, a perspetiva judaico-cristã de Joaquim Cerqueira Gonçalves entende que a história está contemplada no plano da consumação universal do Mundo163.

As hermenêuticas de Heidegger e de Gadamer recusam, de certa maneira, o rigor científico à maneira positivista, recusam a dicotomia sujeito-objeto, rejeitam a noção de conhecimento como representação e a noção de verdade como adequação, apresentando como objetivo a compreensão e apresentan- do a verdade como desvelamento de sentido sem qualquer pretensão de do- mínio evidente e certo sobre as coisas. A metafísica tradicional é considerada por estes autores como desadequada, vindo inevitavelmente a desembocar na morte de Deus e no niilismo, porque a área metafísica da realidade não se mostra como conhecida em si mesma, mas como anunciada ou noticiada nos indícios da linguagem. Heidegger não nega a existência de Deus nem profes- sa o agnosticismo ou o ateísmo164, mas considera que a metafísica tradicional

159 Cf. Jorge Coutinho, Filosofia do Conhecimento, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2003,

p. 208.

160 Cf. Joaquim Cerqueira Gonçalves, Fazer Filosofia – Como e onde?, Braga, Faculdade de Filo-

sofia da Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 13.

161 Cf. ibidem, p. 17. 162 Cf. ibidem, p. 27. 163 Cf. ibidem, p. 45.

164 Cf. Martin Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Lisboa, Guimarães Editores, 1985, pp. 80-

entificou Deus e com isso ocultou a sua verdadeira essência, que é misteriosa e se retrai para além do que se revela. Desta maneira, podemos dizer que o silêncio de Heidegger sobre Deus é mais apofático do que agnóstico, cons- tituindo-se esse Nada originário como Mistério que pode ser identificado com a Noite dos misticos165. Da mesma maneira, também Gadamer procura

um modo hermenêutico de fazer metafísica, que, em vez de ser fundacional e resolutiva, se apresenta, à semelhança do ideo-realismo criacionista de Leo- nardo Coimbra, como tensional e projetiva, ou seja, como abertura a uma dimensão sem fim que, e fluindo como o próprio tempo, engloba o nosso questionar, o nosso dizer e o nosso esperar166 e que Jorge Coutinho define

como «[…] uma metafísica aberta e sempre (estruturalmente) inacabada, feita essencialmente dessa abertura que é procura, sem encontro definitivo e absoluto»167.

A partir do século XVIII, a consciência histórica permite configurar a rea- lidade de um modo novo. O homem já não se compreende como submetido à implacável e misteriosa ordem natural do Cosmos, mas compreende-se como um ser transcendente ao Mundo capaz de interferir na realização da sua ordem e até de a submeter à sua livre iniciativa e à sua criatividade. No contexto da viragem antropocêntrica e do desenvolvimento da ciência experimental, o Mundo já não é apenas uma realidade a temer e a contem- plar, mas passa a ser concebido como uma realidade em construção. Pela me- diação subjetiva, dá-se a humanização do Mundo. A História já não é conce- bida apenas como contingência e limitação de uma realidade em permanente degradação e corrupção168. Esta perspetiva metafísica, de autores como Lima

Vaz, recusa a oposição entre homem e transcendente e procura conciliar a ação humana criadora e instauradora de sentido com a existência de um ser absoluto que é causa última da realidade e desse mesmo sentido. Mas esta posição exige a pergunta: haverá um desígnio divino predeterminado para o mundo, constituindo-se a liberdade humana como uma ilusão?

A liberdade não é uma ilusão porque a historicidade encerra uma dignida- de ontológica. Tal como defende Heidegger, o homem é um ser-no-mundo e o tempo histórico é um tempo de construção e de significação. O Mundo não é apenas uma realidade enigmática, criada de forma definitiva, que o homem procura decifrar pelo exercício racional e pelo progresso do conheci- mento científico, mas o Mundo é uma criação humana, no sentido em que pelo seu pensamento e pela sua ação se recria e desenvolve o sentido que a

165 Cf. Andrés Torres Queiruga, El problema de Dio en la modernidade, Navarra, Editorial Verbo

Divino, 1998, pp. 117-200.

166 Cf. H.-G. Gadamer, «Phénomenologie, herméneutique, métaphysique», in Revue de Méta-

physique et de Morale, n.º 4 (1993), pp. 486-487.

167 Jorge Coutinho, Filosofia do Conhecimento, p. 210.

168 Cf. Henrique de Lima Vaz, Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura, São Paulo, Edições Loyola,

realidade criada já encerra. A História não é uma realidade simplesmente dada de forma natural, mas é uma realidade em devir, uma estrutura aber- ta, um fazer-se para a consciência livre e criadora em relação com as outras consciências. No tempo do existir histórico, o sujeito transforma o tempo empírico e objetivo do Mundo no tempo subjetivo e significativo da vida e torna-se pessoa. É o lugar em que o homem, no exercício da sua intenciona- lidade, realiza a sua liberdade e se humaniza na relação com os outros e com o Absoluto169.

Convocamos para este diálogo o pensador brasileiro Lima Vaz que esta- belece um profundo diálogo com Max Müller, para quem a historicidade tem dignidade metafísica e é concebida como o modo de ser do homem170.

Indica a contraposição entre a visão da História apresentada no passado, que, sob as leis inelutáveis de um horizonte físico, exigia o apelo a mundos extra-terrenos povoados pela imaginação e pelo sonho, e a visão do presente que encerra a História nos limites terrenos e impede a ascensão a um ho- rizonte absoluto. Por outro lado, essa saída exigida pelo universo físico de Aristóteles era trans-histórica, porque a História era concebida como pura carência e corrupção. Esta temática também é abordada no diálogo com a Filosofia da História de Eric Voegelin, que situa na Idade Axial de Karl Jas- pers (800 – 200 a.c.) o início de uma experiência civilizacional que aponta para um fundamento que transcende o véu cósmico que envolve o homem e as coisas171. Trata-se da passagem de uma configuração mítica da realidade,

de indiferenciação entre o divino e o mundano, para uma configuração sim- bólica e diferenciadora da realidade que concebe a ideia de uma participação no Ser como totalidade que está para além dos limites do sensível.

Para Lima Vaz, essa noção de transcendência assumirá dois paradigmas distintos: a) na tradição grega de feição noética, como Ideia, mundo inte- ligível de que a pluralidade sensível participa como cópia; b) na tradição judaico-cristã de feição profética, como Palavra da Revelação, Deus Criador e redentor que conduz providencialmente o mundo e o homem para a sua Glória. As duas tradições concebem direção à História no sentido de uma plenitude final: a) na tradição grega pelo tempo cíclico de regresso à Origem da Pré-existência, através da progressiva libertação da alma da realidade cor- pórea; b) na tradição judaico-cristã, pelo tempo linear de ascensão escato- lógica para a consumação do final dos tempos. No sentido Grego, o divino é absolutamente transcendente ou imanente à História; no sentido cristão, o divino é simultaneamente transcendente e imanente à História172. A visão

169 Cf. idem, Escritos de Filosofia VI – Ontologia e História, São Paulo, Edições Loyola, 2001,

p. 198.

170 Cf. idem, Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura, p. 236.

171 Cf. idem, Escritos de Filosofia III – Filosofia e Cultura, São Paulo, Edições Loyola, 1997,

p. 204.

helénico-gnóstica dará origem às metafísicas da queda e da restauração, da emanação e do retorno; a visão judaico-cristã dará origem às metafísicas da criação e da redenção, da manifestação e da plenificação.

É nesta segunda perspetiva que se situam as metafísicas de Leonardo Coim- bra, Lima Vaz, Ângelo Alves, Jorge Coutinho, Joaquim Cerqueira Gonçalves e Manuel Cândido Pimentel, concebendo a história como um dinamismo linear de progressiva espiritualização e humanização até à realidade escatoló- gica da plenitude divina. A História já não tem o sentido platónico e nega- tivo da pura degradação, que impede a libertação do espírito, e não se reduz a um meio soteriológico no sentido hegeliano de proporcionar a superação da precaridade contingente e do drama da existência humana para um plano ideal, mas significa uma experiência radical de liberdade e responsabilidade ética. Lima Vaz partilha com Santo Agostinho e com Max Müller a noção de que a experiência ontológico-transcendental da História não se descreve em termos de negação do finito no infinito da Ideia, nem em termos de suprassunção dialética do finito no infinito do Espírito, mas sim numa ex- periência da liberdade finita que exige a liberdade infinita e incondicionada. Mas a singularidade da situação da liberdade finita não tem como referência a universalidade kantiana da norma, mas sim a presença singular e situada da liberdade infinita, traduzida pelo mistério da Encarnação, que reclama o livre assentimento173.

Para Müller, o tempo histórico, animado pelo ritmo das liberdades singu- lares, não pode ser explicado pela integração na universalidade de conceitos totalizantes e ideais como Natureza, Espírito ou Vida, nem pode ser justi- ficado de forma imanente. Mas, ao contrário de Müller e dos pensadores fideístas na linha de Kant, para quem o sentido último da História só pode ser dado por revelação nas iniciativas salvíficas e gratuitas da Liberdade In- finita do Amor, os pensadores metafísicos da escola neo-tomista contempo- rânea consideram que a solução não pode ser dada nem pelo mito nem pela ideologia, mas pela reflexão hermenêutica: o pensamento continua a ser o tempo mais propício (tempo kairológico) para uma inteligibilidade da Histó- ria174. O ser humano é essencialmente histórico, é um ser-no-mundo e, como

tal, está condicionado pelo tempo empírico da sucessão dos acontecimentos. No entanto, o tempo no qual o homem se insere não é apenas empírico; é o tempo humano da significação, isto é, o tempo que a consciência assume e que desvela o sentido dos acontecimentos, traduzindo-o numa narrativa comunitária175. Este existir histórico não é apenas o existir de um objeto,

mas é o existir de uma consciência que supõe a iniciativa da subjetividade. Os acontecimentos temporais só adquirem dimensão histórica quando se

173 Cf. idem, Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura, p. 242. 174 Cf. ibidem, p. 249.

referem ao devir intencional que existe para as consciências176. A história

depende da livre iniciativa dos seres humanos, pelo que não é uma realidade acabada, mas uma realidade em devir cuja unidade se dá nesse fazer-se para a consciência enquanto construção de sentido177.

A história resulta da correlação entre a exterioridade pura do tempo em- pírico e a interioridade das significações dadas pela consciência. Por um lado, o homem é objeto submetido aos determinismos e condicionalismos do mundo, mas, por outro lado, o homem é sujeito e constitui o mundo como totalidade de sentido, que se desdobra não apenas em significação objetiva na natureza, mas também em significação subjetiva de liberdade178.

Ao imprimir sentido aos acontecimentos através da narração, a consciência é comunicação enunciadora de sentido e referida a outras consciências. Neste sentido, a História constitui-se como comunhão de consciências no tempo pela mediação da cultura179. É no plano da intersubjetividade que se situa a

possibilidade da consciência encarnada e se joga o seu destino: um estar-no- -mundo no sentido puramente natural ou no sentido misterioso da intersub- jetividade e do reconhecimento.

6. O diálogo histórico-cultural entre essência e existência que re-

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