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A Teoria da Língua em Ato e o pronome lembrete

4 O PRONOME LEMBRETE NA TRADIÇÃO LINGUÍSTICA

4.3 A Teoria da Língua em Ato e o pronome lembrete

Ainda que não trate diretamente do problema dos pronomes lembrete, a TLA oferece um arcabouço teórico que permite uma análise inovadora da questão, levando adiante a proposta de Pontes.

Para compreender isso, considere-se que, na visão de Pontes: (a) o tópico tde uma sentença estabelece uma referência cognitiva para a predicação realizada no comentário, (b) não existe uma marcação prosódica sistemática que separe, no interior da sentença, o tópico do comentário, sendo o pronome lembrete um recurso usado para sinalizar, no nível textual, essa divisão e (c) o comentário deve constituir uma oração completa, com sujeito, verbo e complementos.

Observando essas características, nota-se uma grande semelhança entre a visão da autora e aquela proposta pela TLA (apresentada com detalhes no capítulo 2). Pode-se dizer que as divergências existentes entre as mesmas devem-se sobretudo à concepção geral de língua que fundamenta cada uma delas56. Na visão de Pontes, a língua é usada para exprimir predicações, enquanto a TLA entende que a língua é usada para realizar ações (ilocuções). Apesar dessa diferença primária, nota-se um certo paralelismo na forma com que as teorias descrevem a estruturação da unidade mínima de análise da fala (a sentença para a primeira e o enunciadot para a segunda) e o modo com que tais estruturas são realizadas para alcançar o objetivo básico da fala.

Para Pontes, a predicação é realizada em uma parte da sentença chamada de comentário, o 56 Nesse aspecto, vale lembrar mais uma vez que, na época em que a autora realizou suas análises, os recursos

para a análise da fala espontânea do PB eram enormemente limitados, o que certamente condicionou as suas análises. Deve-se destacar ainda, não obstante as limitações metodológicas impostas à autoras, o seu comprometimento teórico com a análise da língua em uso e os resultados de seus trabalhos, muito influentes na linguística brasileira.

qual deve ter uma estrutura oracional, dotada de um verbo. A TLA, por sua vez, entende que a ilocução é realizada em uma unidade interna do enunciado que recebe o nome de Comentário57. O que faz, na proposta da TLA, que um Comentário realize uma determinada

ilocução não é o seu conteúdo locutivo, mas sim a sua entoação segundo formas prosódicas específicas. Ainda, a unidade informacional de Comentário não deve necessariamente ter uma estrutura oracional, nem mesmo apresentar uma forma verbal58.

Além disso, observa-se um paralelismo também em relação ao tópico discursivo de Pontes e a unidade informacional de Tópico da TLA. O primeiro é definido como uma delimitação semântica para a predicação realizada no comentário. Já o segundo seria uma delimitação semântica para a ilocução realizada na unidade informacional de Comentário.

Pontes observa ainda que, em alguns casos, os limites entre tópico e comentário são marcados no plano prosódico por uma pausa (mas que, em tantos outros, não existe pausa alguma entre as partes da sentença). A TLA, por outro lado, considera que o fluxo do discurso é segmentado não por pausas, mas sim por quebras prosódicas. Dessa forma, mesmo nos casos em que não é possível atestar a presença de pausa entre as unidades informacionais de Tópico e de Comentário, percebe-se ali uma quebra prosódica59 que separa as unidades informacionais.

Com base nas semelhanças e diferenças entre as propostas de Pontes e da TLA, e considerando a descrição fornecida por Pontes sobre o uso do pronome lembrete, elaborou-se uma das hipóteses investigadas nesse trabalho. A hipótese seria a de que as retomadas por pronome lembrete presentes na fala estão sempre sujeitas a uma restrição de ordem prosódica e funcional: a estruturação em unidades tonais diferentes e, preferencialmente, em unidades informacionais de Tópico e Comentário. Assim, acredita-se que a forma mais comum de se 57 O termo Comentário, grafado com a inicial maiúscula, refere-se à unidade informacional de Comentário da

Teoria da Língua em Ato (CRESTI, 2000), diferenciando-se das demais acepções de comentáriotpresentes na literatura. A mesma notação é usada para a unidade informacional de Tópico e para as demais unidades informacionais da TLA.

58 Naturalmente, a semelhança maior para que se quer chamar a atenção não é a coincidência na nomenclatura utilizada por Pontes e pela TLA, as quais valem-se dos termos “tópico” e “comentário” para se referir a partes da unidade mínima de análise da fala. A semelhança que se pretende apontar é a de que em ambas as propostas, a unidade mínima de análise da fala (a sentença em uma e o enunciado na outra) possui: (a) uma parte voltada para a realização daquilo que cada proposta julga ser o objetivo da fala (a predicação para Pontes e a ilocução para a TLA) e (b) uma parte que serve como uma referência cognitiva.

realizar a retomada por pronome lembrete seja colocando elemento retomado na unidade informacional de Tópico e o pronome lembrete na unidade de Comentário. Caso se confirme, essa hipótese vai além daquela proposta por Pontes pois pressupõe que, em todos os enunciados em que te tem o uso de pronome lembrete, (a) o elemento retomado é sistematicamente separado do elemento que o retoma por uma quebra prosódica, (b) o elemento retomado encontra-se em uma unidade tonal que é sempre realizada de acordo com uma das formas entonacionais de Tópico60 e (c) que o elemento retomado deve servir, no plano cognitivo, como âmbito de aplicação da ilocução realizada no Comentário.

O exame prévio de uma amostra do subcorpus não só se mostrou favorável a essa hipótese, mas também abriu novas perspectivas de investigação. Nessa primeira análise, além de retomadas por pronome lembrete do tipo de (4.1) no contexto de Tópico e Comentário, encontrou-se também outra forma de retomada não pronominal que sofre a mesma restrição prosódica e informacional: a retomada de tipo (4.16), em que o elemento é retomado não por meio de um pronome, mas sim pela sua repetição.

(4.16) – bfamdl05

*CES: [112] aqui o' /=CNT= aquela ali /=TOP= aquea ali que é a Joaquim Nabuco //=COM=

Naturalmente, seria possível argumentar que a retomada do SN “aquela ali” pela sua repetição trata-se, na realidade, de uma disfluência (ou seja, de uma mera repetição do conteúdo locutivo do enunciado, sem qualquer valor comunicativo). Contudo, analisando prosodicamente o trecho em questão, é possível ver que o primeiro “aquela ali” é entoado segundo uma das formas entonacionais de Tópico previstas pela TLA. Segundo a opinião defendida nesse trabalho, esse constitui um motivo expressivo para considerar que o caso em exame não se trate de uma mera repetição, mas sim de uma retomada análoga à retomada por pronome lembrete61.

60 Umatformatentonacionaltpode ser definida genericamente como modelos prosódicos de realização de uma unidade informacional, tendo como base parâmetros prosódicos como frequência fundamental, duração e alinhamento. Para uma definição elaborada de formatentonacional, remete-se à seção 5.2.

61 A esse respeito, comparem-se os áudios 4.16-bfamdl05[112]0, 4.16-bfamdl05[112]1 e 4.16-pfamdl05[112]2. O primeiro contém somente o Tópico do enunciado (4.16), e segundo exibe o enunciado inteiro e o terceiro mostra somente o “aquea ali” presente na unidade de Comentário. Ouvindo-se os exemplos, não há dúvidas de que o primeiro “aquela ali” trata-se de um caso exemplar de Tópico de tipo 2.

A hipótese levantada nesse trabalho – a de que a retomada por pronome lembrete ocorre somente em contexto de Tópico e Comentário – entra em contradição com uma das motivações apontadas por Pontes para o uso do pronome lembrete: considerando a existência de uma marcação prosódica sistemática entre Tópico e Comentário, não seria necessária a retomada do elemento em Tópico justamente visando sinalizar a fronteira entre essas unidades informacionais. A retomada nesse contexto seria, então, redundante.

Por outro lado, ainda com base nos pressupostos da TLA, pode-se compreender uma outra motivação para o uso do pronome lembrete – a qual, inclusive, permite entender porque esse tipo de retomada não ocorre em línguas como o PE. Para compreender essa motivação, cabe lembrar que, segundo a TLA, o limite da sintaxe é a unidade informacional e que, sendo assim, um constituinte localizado em uma unidade informacional não pode nunca servir como argumento de um verbo que se localiza em outra unidade informacional. Com base nessa análise, em um caso como (4.17), não se pode afirmar que o SN “o Pereira” é sujeito do verbo “comer”. Uma análise sintática da sentença que se encontra em comentário deveria se ater aos elementos “comeu a ração toda”62. Por outro lado, uma análise funcional possibilita compreender de uma forma mais profunda a relação existente entre as unidades informacionais.

(4.17) – Em estúdio

o Pereira /=TOP= comeu a ração toda //=COM=

Assim, o pronome lembrete seria uma forma de preencher o argumento de sujeito da sentença localizada no Comentário, o qual, caso contrário, não seria preenchido. A tendência de se usar o pronome lembrete inexiste – ou é, ao menos, muito rara – em línguas como o Português Europeu e como o Italiano, visto que ambas são línguas a sujeito não obrigatório. Já no Português Brasileiro, o qual está deixando de ser uma língua a sujeito não obrigatório por meio de um processo de redução morfológica no seu sistema verbal, existiria uma motivação cada vez maior do uso do pronome lembrete.

62 Segundo a descrição de Cunha (1971), por exemplo, essa seria uma sentença com sujeito oculto (determinado), definido como “aquele que não está materialmente expresso na oração, mas pode ser identificado”.

Por fim, a análise do pronome lembrete pela TLA aponta soluções para uma outra questão. Como foi observado, certos autores da tradição gerativista apontam alguma relação entre estruturas de tipo (4.1) e (4.2) e estruturas de tipo (4.3) e (4.4). A posição de Galves (2001), nesse sentido, é significativa pois a autora inclui no rol dos pronomes lembrete ambos os tipos de estrutura. Quanto a isso, a hipótese levantada nesse trabalho é a de que estruturas como (4.3) e (4.4) podem ocorrer dentro de uma mesma unidade informacional (seja ela de Tópico ou de Comentário, por exemplo) e que, portanto, essas estruturas constituem um fenômeno diferente da retomada lembrete.

Considerando todos os argumentos apresentados na presente seção, conclui-se que a TLA mostra-se apta a servir de base para a análise consistente de um fenômeno tão controverso na literatura linguística.