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Protocolo 15 – Comparando preços e quantidades de um mesmo produto

2 O CAMPO MULTIPLICATIVO E A COVARIAÇÃO: DO

2.2 A Teoria dos Campos Conceituais e a covariação

A teoria dos Campos Conceituais (TCC) foi criada por Gerard Vergnaud, um psicólogo francês, sob influências teóricas de Piaget e Vygotsky (MOREIRA, 2002; VERGNAUD, 2003). Como discípulo de Piaget, Vergnaud busca ampliar e direcionar sua teoria para compreender o funcionamento cognitivo do 'sujeito-em-situação', por meio das estruturas gerais de pensamento, em contextos escolares. Apesar de reconhecer contribuições de Piaget em relação aos conceitos de adaptação, de desequilibração e de reequilibração, põe em destaque em sua teoria o conceito de esquema. As influências Vygotskyanas estão relacionadas ao papel atribuído para a interação social, a linguagem e o simbolismo à conceptualização (MOREIRA, 2002; VERGNAUD, 2003).

Enquanto Piaget atribui o papel de construção de conceitos às operações lógicas, para Vergnaud (1988), o processo de conceitualização do real é ponto determinante para o desenvolvimento cognitivo. O desenvolvimento do conceito, para Vergnaud (1988, 1990), requer a compreensão de uma tríade de conjuntos: [s, I, S]16, em que 's ' está relacionado ao conjunto de situações que dão significado ao conceito; 'I' o conjunto dos invariantes (objetos, propriedades, relações) necessários para o domínio das situações e 'S ' é o conjunto das representações simbólicas, usadas para representar os invariantes, as situações e os procedimentos para lidar com ambos.

Desse modo, um conceito não pode ser reduzido a uma definição, pois é por meio das situações que um conceito passa a ter sentido para a criança. Logo, um conceito vai sendo desenvolvido à medida que se vivenciam situações diversificadas.

Muitas situações podem envolver a covariação, verificando o modo como as relações invariáveis são expressas, foco de estudo desse trabalho. Considera-se como relação invariável, a relação entre duas quantidades em uma situação multiplicativa.

Como exemplo, é preciso pensar em uma situação em que é possível relacionar duas quantidades a uma terceira. Ao se verificar que uma torneira despeja 2 litros de água a cada minuto, pode-se referir a relação 'litros por minuto' a esta terceira variável que está conectada às duas primeiras (quantidade de litros e minutos).

Se a quantidade de água despejada em um reservatório aumenta à medida que o tempo passa, nesse caso, o operador a ser considerado, que é uma relação invariável, será '2 litros por minuto', pois independente do tempo transcorrido e da quantidade de água despejada, a relação '2 litros por minuto' será mantida a mesma (Figura 3).

Figura 3 – Situação de covariação: o caso da torneira.

Fonte: Elaboração própria

Na Figura 3, é possível verificar a relação invariável, 2 litros por minuto, por meio do quociente entre a associação de litros e minutos, em qualquer das opções: 2 litros em 1 minuto, 10 litros em 5 minutos, 20 litros em 10 minutos. Essa relação invariável, presente nesse tipo de situação, é denominada de operador funcional por Vergnaud (1983).

Considerando a importância das situações para a compreensão dos conceitos, Vergnaud assevera a necessidade de conhecê-las, a partir do ponto de vista conceitual e estrutural. Outras situações mais complexas, além do exemplo do caso da torneira, e que envolvem covariação devem ser consideradas. Nessas situações, há mais de duas quantidades

Operador escalar

Minutos Litros

Operador funcional: litros por minuto

1 minuto 2 litros

5 minutos 10 litros

que se relacionam, visualizados em problemas que envolvem proporções duplas e múltiplas, as quais serão melhor detalhadas na seção seguinte.

Ao deparar-se com determinada situação, o sujeito pode dispor ou não de competências necessárias para a sua resolução (VERGNAUD, 1990). Logo, é preciso disponibilizar um repertório variado de situações para que a criança possa desenvolver novas competências e ampliar seus esquemas. Sobre isso, Magina et al. (2001, p. 13) explica que:

Problemas teóricos e práticos levam à formação de conceitos, enquanto conceitos explícitos e conhecimentos implícitos levam à formação de competência. A competência é traçada pela ação do aluno diante das situações (no caso, resolução de problemas) e as concepções dos alunos podem ser traçadas por suas expressões verbais ou outras representações simbólicas (tais como a escrita ou o gesto).

O desenvolvimento das concepções e competências acontece após um longo período, pois requisitam de experiência, maturação e aprendizagem (MAGINA et al., 2001; VERGNAUD, 1988, 1998).

A criança, ao se deparar com um problema, analisa a situação e opta por uma operação ou uma sequência de operações para resolvê-lo. Quando a situação faz parte do repertório da criança, esta, por já possuir competência, utiliza regras conhecidas e, portanto, o automatismo, o que não contribui para ampliar seu conhecimento. Todavia, ao deparar-se com situações que ainda não possui competência para resolvê-la, a criança passa a refletir sobre a situação e buscar outros esquemas, o que possibilita novas descobertas.

Diante disso, em termos práticos, é fundamental saber avaliar o conhecimento dos estudantes e escolher situações didáticas adequadas que auxiliem a construção do conceito e mobilizem diferentes esquemas. Segundo Gitirana et al. (2014), as competências estão vinculadas com a combinação de esquemas. A noção de esquema foi primeiramente desenvolvida por Piaget e, também utilizada por Vergnaud (1990, p. 136), que define como "[...] organização invariante da conduta para uma determinada classe de situações". Dessa forma, o esquema gera regras de ação para resolver uma determinada situação.

Um exemplo de esquema comumente utilizado na escola é o algoritmo17 da multiplicação e da divisão, pois são compostos por uma regra ou conjunto de regras. Nesse caso, pode-se dizer que a utilização desses algoritmos para resolver determinada situação, por crianças dos anos finais do Ensino Fundamental, gera o automatismo, embora, possa-se requisitar outras competências, ao se alterar o campo numérico, por exemplo.

17 Um algoritmo é uma regra de um conjunto eficaz de regras para resolver uma determinada classe de problemas. Este conjunto de regras faz com que seja possível encontrar uma solução para todos os problemas de classe num número finito de passos, se tais soluções existem, ou para mostrar que não há solução (VERGNAUD, 1998, p. 171, tradução nossa)

O esquema pode envolver: (1) objetivos, antecipações; (2) regras de ação usadas para tomar decisões; (3) invariantes operatórios; e (4) inferências em situações (VERGNAUD, 1998, p. 173, tradução nossa18). Dessa forma, o esquema está relacionado a uma conceitualização implícita, já que se associa com a ação, isto é, com a forma de uma pessoa organizar seus invariantes (MAGINA et al., 2011; VERGNAUD, 1990). A expressão invariante operatória está relacionada com os conhecimentos mobilizados nos esquemas. Segundo Vergnaud (1990; 1998), são gerados pelo esquema dois tipos de invariantes operatórios: o conceito-em-ação e o teorema-em-ação. Esses invariantes operatórios estão direcionados ao reconhecimento, por parte do indivíduo, dos elementos pertinentes à situação e, portanto, guiam a construção dos modelos mentais.

Conceitos-em-ação são objetos, predicados, ou categorias de pensamento, tidos como pertinentes, relevantes à situação (VERGNAUD, 1998, 2009). Sendo, portanto, a estrutura de pensamento que o indivíduo convoca para sustentar sua elaboração de resolução do problema, mas não sabe explicitar, formalmente, o esquema. Não faz sentido, portanto, classificá-los em verdadeiros ou falsos, já que estão relacionados com os conceitos matemáticos.

Já os teoremas-em-ação podem ser verdadeiros ou falsos e estão diretamente ligados à competência que o indivíduo possui e que são utilizadas em situações específicas. O estudante, ao se deparar com um problema, analisa a situação e opta por uma operação ou uma sequência de operações para resolvê-lo. Essa trajetória de estratégias utilizadas em processos de aprendizagem pode utilizar representações certas ou erradas, explícitas ou totalmente implícitas. Conhecer os teoremas-em-ação ou relações da ação do aluno é importante para a proposição de situações-problema adequadas à expansão do conhecimento matemático (MAGINA et al., 2001).

Para explorar melhor os teoremas-em-ação e sua relação com a TCC, será retomado o exemplo da torneira, apresentado no início dessa seção. Tem-se que um conceito presente em uma determinada situação pode ser representado de diversas formas. No exemplo da torneira, verifica-se que o operador '2 litros por minuto' é um invariante e pode ser representado na forma de figura, tabela e gráfico, dentre outras representações (Figura 3, Figura 4 e Figura 5).

18 1. goals and anticipations; 2. rules of action, information seeking, and control; 3. operational invariants; 4. possibilities of inference.

Figura 4 – Representação icônica: o caso da torneira.

Fonte: Elaboração própria

Figura 5 – Representação por tabela e gráfico: o caso da torneira.

Fonte: Elaboração própria

De acordo com a TCC, a representação é utilizada como sendo um sistema simbólico, pois isso pode ajudar a estabelecer relações entre os conceitos e o conjunto de situações. Para explicar a importância da representação, Vergnaud recorre à ideia de função simbólica defendida por Piaget (MAGINA et al., 2001).

Vergnaud (1998) considera que as representações oferecem possibilidades de inferência. Assim, além da linguagem natural, a simbolização também pode contribuir para a

Tempo (min) Litros Gráfico

1 minuto 2 minutos 3 minutos

aquisição de conceitos, sendo que as diferentes representações simbólicas podem ter efeito diferente na compreensão dos conceitos.

O conhecimento não é em sua essência simbólico, por esse motivo, o reconhecimento de invariantes e a construção de objetos em níveis mais altos são aspectos essenciais do conhecimento (VERGNAUD, 1982). Diante dessas colocações, pode-se entender que um campo conceitual é composto por um grupo de problemas heterogêneos, isto é, que envolve diferentes situações, propriedades, relações e operações de pensamento, sendo necessário que todos esses elementos estejam conectados para garantir o processo de aprendizagem.

Para Vergnaud (1990), o conhecimento está organizado em campos conceituais, podendo ser explícito, quando estão ligados à concepção, e implícito, quando ligados à competência. Ao pensar na situação da torneira a partir de diferentes representações (figuras, tabela e gráfico), ilustrada na Figura 3, Figura 4 e Figura 5, pode-se solicitar, por exemplo, que o estudante indique quantos litros de água a torneira teria despejado em 8 minutos, lembrando que a torneira despeja, a cada minuto, 2 litros de água. Ilustra-se, na sequência, algumas das resoluções possíveis desse problema.

a) 2+ 2+ 2+ 2+ 2+ 2+ 2+ 2 = 16 litros de água b) Tempo decorrido Litros 1 2 2 4 3 6 ... ... 8 16 c) 2 . 8 = 16 litros de água d) 8 vezes tempo decorrido 1 minuto 2 litros 8 minutos x litros litros x= 2 . 8 x= 16 litros

e) f(x) = 2x→para x = 8 minutos, têm-se: f(8) = 2 . 8 →f(8) = 16

Observa-se que todas essas resoluções utilizaram representações diferentes, embora o resultado de todos esses teoremas-em-ação seja 16 litros, é importante ressaltar que eles podem ter respostas verdadeiras ou falsas (VERGNAUD, 1983, 1998; GITIRANA et al., 2014). Nas cinco resoluções apresentadas, pode-se observar as diferentes estratégias utilizadas.

Na primeira resolução (a), percebe-se que a estratégia envolve a adição de parcelas repetidas, isto é, raciocínio aditivo, mesmo o problema sendo multiplicativo. Isso demonstra que os alunos podem utilizar alguns esquemas aprendidos em outras situações para auxiliá-los na resolução de problemas, contudo, para algumas situações, esse esquema pode não ser suficiente. Nunes e Bryant (1997) chamam essa estratégia de progressão aritmética entre dois conjuntos.

Na segunda resolução (b), utiliza-se de uma tabela para explicitação do pensamento. Percebe-se que o estudante pode conseguir solucionar o problema ao estabelecer o padrão que existe em cada coluna. Carraher, Schliemann e Brizuela (2000), ressaltam que em muitos casos as crianças costumam tratar as colunas de uma tabela como problemas separados e que, apesar de essa estratégia levar à resposta correta, em alguns casos não propicia o entendimento das relações entre as colunas e como essas relações influenciam o conjunto de dados apresentados (covariação).

Na terceira resolução (c), a terceira variável (litros por minuto) é multiplicada pela variável tempo. A resolução somente é correta quando se estabelece uma relação entre as grandezas, encontrando o valor unitário, ou seja, em 1 minuto a torneira despeja 2 litros de água. Porém, como o valor unitário já está subtendido, não é possível, verificando apenas na solução, saber se essa relação foi compreendida, pois essa composição binária está correta apenas se as variáveis forem consideradas como números e não como dimensão (VERGNAUD, 1983). Vergnaud (2009) expõe essa estratégia como sendo a utilização de uma lei binária, onde os alunos estabelecerão uma relação entre as grandezas diferentes, como, no caso, litros e minutos.

Na quarta resolução (d), percebe-se a utilização do algoritmo, também conhecido como regra de três ou método do produto cruzado. Vergnaud (1998) considera o algoritmo como uma regra ou conjunto delas, que pode ajudar a encontrar a solução ou mostrar que ela não existe. Verifica-se no referido exemplo que, sendo dados a, b e c, é preciso determinar o

termo desconhecido 'x': . Essa é uma estratégia muito encontrada nos livros didáticos e ensinada na escola (VERGNAUD, 2009), mas, devido à má compreensão dos alunos e ao seu automatismo, não favorece o raciocínio proporcional (HART, 1984; POST; BEHR; LESH, 1988).

Para Vergnaud (1990), o automatismo é uma manifestação do invariante da organização da ação, pois, "[...] a automatização não impede que o sujeito conserve o controle das condições sob as quais tal operação é apropriada ou não" (VERGNAUD, 1990, p. 138). De certa forma, pode-se dizer que as condutas de um indivíduo em uma determinada situação pode ser parte automatizada e parte consciente (VERGNAUD, 1998).

Na resolução 5 (e), é observado um procedimento em que se expressa simbolicamente um caso especial de uma função linear [ f(x) = ax; função afim]. Essa forma de resolução não é muito comum aos estudantes, já que compreender as relações funcionais e explicitá-las algebricamente requer esquemas mais elaborados.

Percebe-se, a partir dos exemplos apresentados, que na resolução de uma única situação é possível obter diferentes teoremas-em-ação. Compreender os teoremas-em-ação utilizados pode ser "[...] um caminho de analisar as estratégias intuitivas dos estudantes e ajudá-los na transformação do conhecimento intuitivo para o conhecimento explícito" (VERGNAUD, 1988, p. 149).

Diante das discussões levantadas, entende-se que os conceitos precisam ser definidos não só pela estrutura, mas pelas suas propriedades, pelas situações nas quais podem surgir e pelas representações simbólicas que representam os invariantes desse conceito. Dentro de um campo conceitual, os conceitos estão interligados podendo estar em mais de um campo, formando uma rede complexa de conceitos (VERGANUD, 1996).

Por isso, um conceito não deve ser estudado de forma isolada (MAGINA et al., 2001). Existem vários campos conceituais: o campo das estruturas aditivas, o campo das estruturas multiplicativas, o campo algébrico, dentre outros. Logo, requisitam raciocínios diferentes, os quais serão discutidos a seguir.