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2. Bilinguismo na infância e a teoria histórico-cultural

2.1 A trajetória de Lev Semienovitch Vigotski

Como mencionamos no início, o texto Sobre a Questão do Multilinguismo na Infância escrito por Vigotski (2004) será o aporte principal dessa dissertação. Antes de analisarmos detalhadamente sua obra, iremos relatar brevemente a curta, todavia marcante, trajetória do pesquisador bielorrusso com uma produção intelectual impressionante que tem início quase concomitantemente com a Revolução de 1917. Lev Semienovitch Vigotski nasceu em 1896, numa pequena cidade da Bielorrússia chamada Orcha. Quando bebê, sua família mudou-se para Gomel, também na Bielorrússia. Apesar de não ter frequentado a escola primária, Vigotski ingressou direto na 6ª série do ginásio, após prestar os devidos exames, e destacava- se por seus conhecimentos e interesse pela filosofia. Vale dizer que Vigotski era fluente não apenas nos idiomas russo, bielorusso e iídiche, mas também em alemão, inglês e francês, estes últimos três aprendidos em casa com a mãe.

Aos 17 anos terminou o ginásio com distinção e, seguindo as recomendações dos pais, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Imperial de Moscou, passando por todas as provas que eram impostas aos judeus pelas diferentes leis do regime monárquico russo para cursar uma Universidade. Entretanto, rapidamente desistiu da carreira de médico e logo se transferiu para a Faculdade de Direito da mesma Universidade. Concomitantemente, conseguiu também ingressar no Departamento Acadêmico da Faculdade de História e Filosofia da Universidade Popular Chaniavski. Nesta instituição, iniciou seus estudos de psicologia (PRESTES, 2010).

Vigotski se formou nas duas faculdades no mesmo ano em que estourou a Revolução Socialista de Outubro de 1917 na Rússia. No início de 1918, ele retornou para Gomel e, depois da instalação do poder soviético na cidade, em 1919, começou a lecionar e também a desenvolver trabalho na área cultural ligado ao teatro; escreveu e publicou mais de 70 resenhas teatrais e literárias e participou, com o primo David Vigodski, da criação e edição da revista semanal Veresk.

Em Gomel, Vigotski lecionou em várias instituições e, na Escola Técnica de Pedagogia, organizou o gabinete de psicologia. Com a organização deste espaço, Lev Semienovitch impulsionou seu trabalho cientifico na Educação e na Psicologia, sendo convidado para trabalhar no Instituto de Psicologia Experimental de Moscou, após brilhante

apresentação de dados de estudos realizados no gabinete de psicologia e sistematizados em trabalho científico.

Em 1924, Vigotski começou a dedicar-se à Defectologia9. Seus estudos eram motivados pelo crescente número de crianças órfãs e abandonados na recém-formada União Soviética. Suas pesquisas estudavam especialmente a instrução e a educação de crianças com um desenvolvimento diferenciado (cegas, surdas e mudas). O trabalho realizado com estas crianças e os livros publicados neste período, além dos cargos ocupados em órgãos da URSS10, demonstravam o compromisso de Vigotski com o novo regime.

Vigotski insistia no fato de que todo trabalho de pesquisa em psicologia deveria estar relacionado ao mundo real e focalizar principalmente os fenômenos centrais da existência humana (TUNES, 2015). Com base nas ideias de Spinoza e de Marx, Vigotski empreende a tarefa de por a psicologia como ciência em bases materialistas, históricas e dialéticas, apresentando uma crítica da psicologia “que se desenvolveu nos primórdios da filosofia idealista e considerava o psiquismo uma das propriedades primárias do homem e a consciência como manifestação direta da „vida espiritual‟” (LURIA, 1979, p. 29). Os processos psíquicos, nas palavras de Vigotski, deveriam ser estudados pela abordagem histórico-cultural que “é histórica, em função de seu método, e cultural por força do fato de que o desenvolvimento da cultura humana, em que se cristaliza o que a história da humanidade cria e se generalizam as práticas históricas e sociais, é essencial para a emergência da psique humana” (LEONTIEV, 2007, p. 38). Quer dizer, era necessário transformar a consciência no principal problema da psicologia.

E, com isso, o pensador traz para o centro do debate a questão do desenvolvimento humano, pois a consciência não é algo dado a priori, mas surge no processo de desenvolvimento. Além disso, a teoria histórico-cultural rompe com a visão dualista do humano, que divide os fenômenos humanos em físicos, os passíveis de explicação causal, e em psíquicos, que não podem ser observados e, portanto, não se submetem à análise científica. Apoiando-se em Spinoza, Vigotski concebeu os fenômenos físicos e psíquicos em unidade, inclusive ressaltou que, a análise dos fenômenos humanos não poderia ser realizada de modo separado ou isolado do desenvolvimento como um todo.

Em 1928, Stalin se consolidou no poder na URSS e lançou a autocrítica como um meio de análise da relação entre a massa e seus líderes. Para superar a ruptura entre os líderes e a massa, segundo Stalin, era necessário manter a autocrítica, permitir ao povo soviético

9 Assim se denominavam os estudos do desenvolvimento de pessoas com deficiência à época. 10 União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

apresentar críticas aos que ocupavam cargos no poder soviético para não permitir a presunção e o distanciamento entre os homens do poder e o povo. Estabeleceu-se uma forma de controle por parte das massas sobre as ações de seus líderes e “se a crítica contiver ao menos de 5% a 10% de verdade, então deveria ser saudada, ouvida atentamente e sua semente saudável deveria ser considerada” (STALIN apud BASSOV, 2007, p. 10). O controle recaiu sobre todas as esferas, inclusive sobre os cientistas e, em 15 de março de 1931, o Comitê Central do Partido Comunista Russo (bolchevique) aprovou a Resolução intitulada Todos os esforços dos trabalhadores da ciência para a elaboração teórica dos problemas da construção socialista e da luta de classe do proletariado. No cerne desse documento, estava a tensão que permeava principalmente os debates na psicologia e na pedagogia daquela época: o biológico e o social no desenvolvimento humano. Alguns autores indicam que as perseguições aos cientistas que desempenhavam um papel de vanguarda nesse debate tiveram início com a aprovação do referido documento e não com a Resolução de 1936 que aboliu a pedologia11 (LEVTCHENKO apud BASSOV, 2007, p. 10).

Ao analisarmos a trajetória de vida e obra de Vigotski, é possível perceber que é exatamente neste período (final dos anos de 1920 e início da década de 1930) que ele e seus colaboradores começam a enfrentar sérias dificuldades em seus locais de trabalho e, em função disso, aceitam o convite para colaborar na criação do Instituto Ucraniano de Psiconeurologia. Porém, a Ucrânia vivia uma época de extrema fome. Este fator foi decisivo para Vigotski, acometido de tuberculose por mais de uma década e pai pela segunda vez com o nascimento da segunda filha, não se mudar para a capital Rharkov, deixando a cargo de Leontiev e Luria a condução dos trabalhos no Instituto ucraniano.

Até sua morte aos 37 anos, em junho de 1934, a vida de Vigotski não foi sem percalços, tendo que lecionar em várias instituições em cidades diferentes para sobreviver. No entanto, não abriu mão das reuniões com os colaboradores espalhados pelo país e que desenvolveram estudos que ele sistematizaria no livro Michlenie i retch (Pensamento e Fala) terminado às vésperas da última crise da doença que o levou à morte.

Dois anos depois, em 1936, com a aprovação da Resolução Sobre as Deturpações Pedológicas no Sistema Narcompros, a obra do pensador é censurada na União Soviética. Esse fato favoreceu para que seus escritos sofressem cortes e intromissões por parte de editores, acarretando distorções e intepretações equivocadas de seu pensamento. No ocidente, o mundo acadêmico teve acesso às suas obras a partir da década de 60. A maioria dos

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trabalhos a que temos acesso ainda hoje no Brasil foi traduzida do inglês para o português e também sofreram cortes significativos, além de intromissões por parte dos organizadores (PRESTES, 2010).

“Como um intelectual brilhante, Vigotski falava várias línguas e lia, no original, trabalhos de estudiosos franceses, alemães, americanos, ingleses” (PRESTES, 2010, p.15). Talvez sua fluência em vários idiomas tenha sido concomitante à importância dada ao estudo do desenvolvimento das crianças e tenha impulsionado também seu interesse em investigar o multilinguismo na infância.

Em poucos anos, e em parte deles acamado e/ou adoentado devido às crises de tuberculose, Vigotski desenvolveu diversas pesquisas metodológicas, teóricas e experimentais. Segundo Elizabeth Tunes e Zoia Prestes, que estudam teoria histórico-cultural no Brasil, a grandeza de um cientista não se deve medir pelo volume de obras que escreveu ou publicou, não obstante aqueles que conhecem a obra deixada por Vigotski, são impressionados exatamente pela dimensão de seu estudo (PRESTES e TUNES, 2015). As escritoras destacaram, ainda, que em aproximadamente quinze anos de trabalho científico, Vigotski dedicou-se quase que exclusivamente às suas pesquisas. Conforme rememorou sua filha mais velha: “Como lembram seus colegas, sua rara capacidade para o trabalho estava no limiar do total esquecimento do dia e da noite, dos cuidados consigo mesmo, com sua saúde” (VIGODSKAIA, 2006, p. 16 apud PRESTES e TUNES, 2015, p.1).

Mais de oitenta anos após a morte precoce de Vigotski, investigadores de sua teoria, como Elizabeth Tunes, defendem a atualidade das ideias deste pesquisador. Tunes (2015) argumenta que os conceitos elaborados e apresentados pelo pensador inspiram um grande contingente de estudiosos e pesquisadores, convidando-os e desafiando-os a pensarem a psicologia e a sua relação com a educação à sombra de perspectivas e possibilidades ainda não realizadas. Em um prefácio para uma nova edição revisada e expandida da obra Michlenie i retch (Pensamento e Fala) publicada em 2012, Alex Kozulin12 observou que o número de referências a Vigotski chegou a 34 mil até o ano de 2010 de acordo com o Google Scholar, e que uma teoria desenvolvida na Rússia quase um século atrás, continuou a captar a imaginação da geração atual (KOZULIN, 2012, p.IX apud CAMPBELL-THOMSON, 2016, p.17). A análise a seguir dos estudos de Vigotski sobre crianças bilíngues testemunha esse pressuposto.

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