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Análise do texto Sobre a questão do multilinguismo na infância

2. Bilinguismo na infância e a teoria histórico-cultural

2.2 Análise do texto Sobre a questão do multilinguismo na infância

Em sua tese de Doutorado, a pesquisadora Zoia Prestes analisou diversas traduções de obras de Vigotski feitas no Brasil e mostrou como “certos equívocos e descuidos na tradução constituem adulterações de conceitos fundamentais de sua teoria e distorcem seriamente suas ideias” (PRESTES, 2010, p.11). Prestes acrescentou que o nosso país precisa envidar esforços para que a bibliografia de Vigotski disponível em português (traduzida do inglês) seja traduzida diretamente do russo e a partir de textos integrais. Até mesmo na Rússia, somente nas últimas décadas, vem-se respeitando os textos originais do pensador soviético, uma vez que muitas obras de Vigotski sofreram mutilações e deturpações devido à censura (PRESTES, 2010).

No Brasil, as obras de Vigotski foram conhecidas pelo mundo acadêmico a partir dos anos 80. Porém, grande parte dos seus trabalhos em português foi traduzida do inglês. Inclusive, alguns tradutores das versões para o português reconhecem que realizaram cortes, entretanto “disfarçam” essa atitude mediante as justificativas, como, “Ao traduzir o livro, simplificamos e tornamos mais claro o estilo de Vigotski, ao mesmo tempo que nos esforçamos para reproduzir com exatidão o seu sentido (VIGOTSKI, 2005, p. XVII apud PRESTES, 2010, p.25). Prestes concluiu que os primeiros textos de pensador soviético a que tivemos acesso no Brasil sofreram, além da censura do Regime Soviético, cortes lastimáveis pelo Estados Unidos da América. Por isso, vemos ainda hoje prevalecer certas deturpações na interpretação de ideias de Vigotski, principalmente, em cursos de formação acadêmica.

O texto Sobre a Questão do Multilinguismo na Infância de Vigotski (2004) nos remete a uma discussão referente ao objeto do multilinguismo no processo de desenvolvimento da criança. A primeira versão deste texto em português no Brasil foi publicada na Revista Teias (UERJ, 2005, n. 10-11) e foi traduzida por Zoia Prestes, tendo por base a versão russa publicada numa Coletânea de Textos de diferentes autores em 1981, na União Soviética. No entanto, posteriormente, ao comparar o texto traduzido e publicado pela revista acadêmica brasileira e o que foi publicado em 2004 na Rússia, evidenciaram-se cortes de vários trechos. Ao analisar o texto de Vigotski em inglês The Question of Multilingual Children (A Questão de Crianças Multilíngues) publicado em The Collected Works of L.S. Vygotsky - volume 4 - Problems of the Theory and History of Psychology (Obras escolhidas de L.S. Vygotsky - volume 4 - Problemas da Teoria e História da Psicologia), percebemos que esta versão também sofreu cortes, uma vez que possui apenas nove páginas.

Esse fato mostra como o trabalho de tradução das obras de um autor que sofreu censura abrange necessariamente conhecimentos que ultrapassam os limites do domínio de dois ou mais idiomas. Antes de traduzir, é preciso saber se o texto utilizado é aquele que o autor realmente escreveu ou o que foi estenografado de sua fala, pesquisando em inúmeras fontes históricas e consultando estudiosos de sua obra. No caso de Vigotski, em edições que vem sendo publicadas na íntegra na Rússia, os autores informam ao leitor sobre as introduções e os possíveis erros das edições anteriores. A própria Profª Drª. Zoia Prestes afirma em sua tese que a tarefa do tradutor demanda dedicação e pesquisa. Prestes assumiu que: “Ainda hoje não me sinto à vontade para traduzir um texto de Vigotski sem a colaboração de alguém que transite no campo da psicologia no Brasil. Faltam-me termos e conceitos que podem esclarecer o que Vigotski quis dizer” (PRESTES, 2010, p.26).

No texto que analisamos, Vigotski, inicialmente, enfatizou o fenômeno da mundialização que foi apresentado na introdução desse trabalho. Vigotski narra situações que exemplificam a expansão do bilinguismo no mundo, como, por exemplo, a existência de grandes massas populacionais em diferentes países, o que representa povos entrelaçados em relações geográficas, econômicas e sociais. Desde aquela época, este fato convertia-se na eclosão de escolas que precisavam recorrer ao ensino de duas línguas às crianças para suprir essas necessidades educacionais. E, nos dias atuais, a procura por escolas bilíngues tem se propagado cada vez mais.

Com base na importância prática do ensino de duas ou mais línguas às crianças, tal qual já foi dito, estudiosos de diversos países propuseram-se a investigar a questão do bilinguismo. Além disso, o desenvolvimento da língua apresentou relevância central para o desenvolvimento do pensamento infantil e do desenvolvimento psíquico infantil. Desta maneira, além da importância prática, apontou-se também a abordagem teórica uma vez que

(...) o ensino de duas línguas é uma forma peculiar de desenvolvimento infantil. Esclarecer as leis a quais essa forma peculiar se submete apresenta um interesse teórico de primeira ordem e tem também uma grande importância para as conclusões pedagógicas relacionadas ao método de ensino da fala à criança (VIGOTSKI, 2004, p.1).

No Brasil, o número de escolas bilíngues tem crescido significativamente. Contudo, no âmbito da pesquisa acadêmica em nosso país, esta prática ainda é muito recente. Isto levanta diversas questões pertinentes à área, principalmente no que se refere à relação do bilinguismo com o desenvolvimento do pensamento infantil e à interferência de uma língua na outra no processo de desenvolvimento da criança. Por isso, o artigo de Vigotski perseguiu o objetivo principal “de servir de material para a apresentação do problema e indicar

persistentemente para a necessidade de abordar em pesquisas essa questão” (VIGOTSKI, 2004, p.2).

Apesar de ter sido escrito há aproximadamente 90 anos e suas ideias terem chegado ao Ocidente após longos anos desde sua produção, o artigo indica uma necessidade ainda atual para os estudiosos do bilinguismo: ser explorado em pesquisas empíricas. No mundo, há um eminente número de pesquisadores que se inspiram nas ideias de Vigotski para realizar suas investigações e, no Brasil, sua teoria encontrou um terreno fértil. Mesmo que alguns profissionais atuantes no campo do ensino e na pesquisa universitária afirmem que suas ideias estão ultrapassadas e devem ser substituídas por outras mais atuais, consideramos inquestionável a atualidade de seu pensamento (TUNES, 2015).

Em seu artigo, Vigotski argumentou que a maioria dos estudiosos daquela época, assim como ocorre no Brasil e no hemisfério ocidental atualmente, utilizou-se de um ângulo de pesquisa que se preocupava, primeiramente, em questionar a influência de uma língua sobre a outra e mais amplamente em definir vantagens ou desvantagens do bilinguismo na infância. Em oposição a estes estudos, ele ressaltou que “o bilinguismo tem que ser estudado em toda sua amplitude e em toda a profundidade de suas influências no desenvolvimento psíquico da personalidade da criança de forma integral” (VIGOTSKI, 2004, p.20).

Os pesquisadores com os quais Vigotski dialogou englobaram diversas perspectivas de análise do bilinguismo. Desde os que realizaram suas investigações por meio de seus filhos (crianças bilíngues), como Pavlovitch, Folts e o francês Ronjat, aos que analisaram, mediante os distúrbios patológicos, as dificuldades na fala e no pensamento do poliglota, consoante ao que Sepp, Epstein e Hents desenvolveram. A fim de compreender melhor a escolha desses estudiosos pelo escritor bielorrusso, buscamos por suas biografias e principais obras, porém, sobre alguns deles não encontramos informações disponíveis, como Esperens e Ogredi. Como sabemos, em suas aulas e apresentações, Vigotski não costumava consultar anotações ou livros. Prestes (2010) exemplificou essa afirmação relatando o que aconteceu em uma apresentação proferida por Vigotski no Congresso Russo de Neuropsicologia, realizado na cidade de Petrogrado (atual São Petersburgo), em 1924. “A.R. Luria ficou tão impressionado com a exposição, que assim que o orador terminou sua fala, aproximou-se e pediu licença para ver seu texto. Qual não foi sua surpresa, quando viu que diante de Vigotski havia uma folha em branco” (IAROCHEVISKI, 1996, apud PRESTES, 2010, p. 44). Logo, a consulta às bibliografias das obras de Vigotski torna-se um desafio ao pesquisador moderno. A seguir, destacam-se algumas características do estudo do escritor e linguista hebraico Izhac Epstein (1862-1943) a quem Vigotski dedicou grande parte do seu texto.

Assim como Vigotski, Epstein13 nasceu na Bielorrússia, mas foi enviado à Palestina aos 24 anos, onde após receber treinamento em colônias agrícolas, tornou-se professor e pioneiro com um novo método para ensino de hebraico. No que tange a esse método, as explicações são realizadas apenas na língua que está sendo ensinada. Logo, parte de seus estudos concentrou-se na linguística da língua hebraica, principalmente na questão da fonética.

O levantamento realizado por Epstein, na sua tese de doutorado La penseé et la polyglossie (O pensamento e a poliglossia), baseou-se em observações e questionários aplicados a pessoas que dominavam várias línguas e, em alguns testes realizados na Suíça, com o ensino de diferentes línguas. Nesse estudo, o linguista propôs-se a questionar a relação entre multilinguismo e pensamento, além de abordar o conceito de entravamento associativo, que consiste na afirmação de que algumas ligações associativas, com o complexo sonoro e significado correspondente, exercem uma ação de entravamento uma sobre a outra. Epstein estabeleceu

(...) que dois ou vários sistemas linguísticos podem existir concomitantemente como dois sistemas mais ou menos autônomos, sem um entrar em relação direta com o outro, mas proporcionando um sobre o outro um entravamento associativo (VIGOTSKI, 2004, p.3).

Entre esses sistemas, diz Epstein, “em que cada um está relacionado à ideia de ligação associativa totalmente semelhante, surge um antagonismo” (IBIDEM). Epstein concluiu, dessa forma, que esse antagonismo leva à disputa entre diferentes tendências associativas, à mistura de elementos de um sistema com os elementos de outro, à dificuldade e ao empobrecimento não só da língua nova, mas também da língua materna. A partir do entravamento linguístico ocorre juntamente a interferência (ou mistura) e a ação mútua entre um e outro sistema.

Assim sendo, Epstein defendeu que o sentimento de dificuldade, embaraço nos erros estilísticos, mistura e ausências frequentes de palavras idênticas em diferentes línguas expressam a influência negativa de uma língua na outra. Por consequência, diz o autor, a poliglossia torna-se um obstáculo para o pensamento.

Nos resultados de sua produção, Epstein inferiu que o bilinguismo “é um mal social e toda tarefa do pedagogo é a de, dentro de suas possibilidades, reduzir ou aliviar a influência desse mal sobre o desenvolvimento da criança” (VIGOTSKI, 2004, p.4). Por isso, na perspectiva de Epstein, a criança deve falar somente uma língua, com o propósito de evitar

13 As informações sobre Epstein foram encontradas na ENCYCLOPAEDIA JUDAICA, Segunda Edição, Volume 6.

que a mistura ativa de duas línguas acarrete um prejuízo nocivo à criança. Como um dos fatores impulsionadores do mal trazido pelo bilinguismo, Epstein evidenciou a questão da idade da criança. Para o linguista, o bilinguismo

(...) revela-se ainda mais nocivo na primeira infância, quando a criança começa a formar os primeiros hábitos e formas pensar, quando as ligações associativas entre seu pensamento e sua fala ainda não são resistentes e quando, consequentemente, a disputa entre outras ligações associativas, estabelecidas no sistema de outra língua, revela-se mortal para todo o destino do desenvolvimento intelectual e da fala (Ibidem, pp.4-5).

Levando em consideração os argumentos de Vigotski, a fraqueza do trabalho citado estava em seu lado puramente psicológico. Epstein embasou seu estudo e métodos na teoria psicológica da ligação da fala e do pensamento, o que, como entendia Vigotski, não pode ser justificado do ponto de vista da psicologia científica contemporânea. Vigotski sugeriu, portanto, que as conclusões e métodos da tese de Epstein deveriam ser revistos à luz de uma teoria mais correta e de métodos mais adequados.

Mas o trabalho de Izhac Epstein não recebeu apenas críticas negativas da parte de Vigotski. Como o lado mais forte do trabalho do linguista, ele destacou as observações diretas do cotidiano, a auto-observação direta de pessoas bilíngues e a prática pedagógica. Esses fatores forneceram muitos dados que confirmaram suas conclusões pessimistas atinentes ao retardamento mútuo das línguas em uma perspectiva bilíngue. Vigotski relata que, ao começar a assimilar uma ou mais línguas estrangeiras, sem ter assimilado completamente as formas da língua materna, as crianças apresentam problemas no desenvolvimento da fala. Esses problemas englobam dificuldades fonéticas, sintáticas e estéticas em dominar completamente a língua materna e a nova língua adquirida. Na opinião de Vigotski, como consequência da exposição precoce ao bilinguismo, a língua materna torna-se “poluída” (grifo nosso) por elementos da segunda língua, gerando uma mistura, e, assim, “a criança une sincreticamente os significados de palavras que não concordam em diferentes línguas” (VIGOTSKI, 2004, p.5), produzindo um dialeto que mescla a língua materna e a estrangeira.

Atualmente, entretanto, existem diversas pesquisas avaliando que o bilinguismo precoce não prejudica o desenvolvimento da fala. O novo dialeto, descrito por Vigotski como uma mistura confusa das duas línguas, é, na verdade, parte normal do desenvolvimento bilíngue (Byers-Heinlein e Lew-Williams, 2013). Como vimos na definição de bilinguismo mesclado empregada por Scherba no capítulo 1, indivíduos bilíngues, normalmente, criam uma forma específica da língua, que abrange as duas línguas e suas formas.

O estudo de Epstein analisou apenas um lado da questão do bilinguismo e preocupou-se se “ensino da segunda língua pode refletir-se como um aspecto benéfico ou maléfico para o desenvolvimento da língua materna.” (VIGOTSKI, 2004, p.9). No que diz respeito à relação entre o bilinguismo e o pensamento da criança, Epstein também chegou a conclusões pessimistas. O bilinguismo, na opinião dele, é um mal para o desenvolvimento da fala e principalmente o pensamento da criança.

Os resultados pessimistas sobre o bilinguismo apresentados por Epstein, com base em observações únicas e em ambientes propícios para o desenvolvimento da fala, foi contestada por alguns psicólogos. Ao afirmar que a questão do bilinguismo não pode ser considerada ainda resolvida, do ponto de vista da psicologia infantil, o psicólogo alemão William Lewis Stern (1871 – 1939)14 defendeu que o desvio entre as diferentes línguas

(...) no sentido do significado das palavras, sintaxe, fraseologia e gramática, pode levar não apenas a fenômenos de interferência associativa, mas também pode servir de fator potente que impulsiona a criança a atos do raciocínio próprios, à atividade de comparação e diferenciação, à resposta a si mesma relativa ao volume e aos limites dos conceitos, ao entendimento de nuances delicadas no significado das palavras. (VIGOTSKI, 2004, p.6).

Stern é conhecido como o fundador da psicologia personalista e inventor do Quociente de Inteligência (QI). Sua psicologia personalista atentou para a neutralidade da pessoa no mundo, ou seja, todas as atividades psicológicas e físicas constituem um ato da pessoa ou estão radicadas na estrutura e disposição dela. Segundo o psicólogo, seria um absurdo considerar os fenômenos fisiológicos e psicológicos e abstrair a pessoa que é o ato fundamental e suficiente da existência. O indivíduo, para Stern, é um todo vivo, individual, único e autônomo, no entanto, acessível ao mundo que o cerca e capaz de ter experiências. Além disso, ele foi um pioneiro no campo da psicologia infantil, diferencial, educacional, legal (forense).

O trabalho de Stern foi retratado por Vigotski não apenas no texto que estamos analisando, mas também em seu livro Michlenie i retch (Pensamento e Fala). No terceiro capítulo do referido livro, Vigotski discute o desenvolvimento da fala na teoria de Stern. O sistema do estudioso alemão concebia a fala e seu desenvolvimento de uma forma puramente intelectualista, qualificada por ele mesmo como genético-personalista. Porém, na visão de Vigotski, a teoria de Stern “é antigenética pela própria essência, como qualquer teoria intelectualista” (VIGOTSKI, 2007, p. 97).

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A crítica de Vigotski (2007) à teoria intelectualista de Stern deve-se ao fato desta tese substituir a via genética real em toda a sua complexidade por uma explicação que visa à lógica. O problema estava no propósito de Stern em encarar a intencionalidade característica do discurso desenvolvido como uma das raízes (força motora) do desenvolvimento da fala. A intencionalidade do discurso desenvolvido, na acepção de Vigotski, exige explicação genética, por isso, ao ver a intencionalidade desta maneira, Stern substitui a explicação genética por intelectualista. A concepção do psicólogo alemão superestimou os fatores internos e ignorou a natureza social do indivíduo.

No artigo sobre bilinguismo, Vigotski positivamente apontou que, para Stern, o curso percorrido pelo ser humano em desenvolvimento faz parte de um ato contínuo de evolução. Ao longo de seu ciclo vital, os seres humanos estão sujeitos a confrontarem dificuldades na evolução de suas funções.

Muitos pedagogos-linguistas apresentaram uma visão otimista acerca do ensino de línguas estrangeiras ao afirmar que o desvio (significado das palavras, sintaxe, fraseologia e gramática), observado durante o estudo de várias línguas, favorece ao desenvolvimento psíquico e não ao seu retardamento. Tal conclusão remete à noção de compensação investigada por Vigotski que, ao estudar crianças com deficiência, disse que:

A educação de crianças com diferentes deficiências deve basear-se em que, simultaneamente com a deficiência também estão dadas as tendências psicológicas de orientação oposta, estão dadas as potencialidades compensatórias para superar a deficiência e que precisamente são estas as que saem em primeiro plano no desenvolvimento da criança e devem ser incluídas no processo educativo como sua força motriz (VIGOTSKI, 1997, p. 47).

Este conceito de compensação descreveu o processo substitutivo que pode garantir o desenvolvimento. Logo, Vigotski estabelece que a partir do momento quando uma ou mais vias de apreensão do mundo e de expressão não estão íntegras ou não podem ser formadas, o indivíduo pode eleger outras possiblidades que estejam íntegras.

De outra maneira, a descoberta de Stern demonstrou que as crianças bilíngues, ao invés de apresentarem dificuldades na instrução e interferências de uma língua na outra, como apontado por outros estudiosos, foram impulsionadas a um desenvolvimento psíquico que favorece principalmente a melhor compreensão da língua materna. Neste caso, como definiu Vigotski, a criança bilíngue demonstra potencialidades compensatórias, que as fazem superar os desvios entre as línguas.

Corroborando com a teoria de Stern, Vigotski apresentou o experimento do linguista francês Jules Ronjat (1864-1925)15, que durante sete anos observou o desenvolvimento da fala de seu filho Louis nascido em 1908. Como Ronjat era francês e sua esposa alemã, a educação do menino do casal seguiu o seguinte princípio: uma pessoa – um idioma, isto é, o linguista sempre falava com o filho em francês e a mãe sempre em alemão. Até mesmo as outras pessoas que conviviam com a criança, falantes de francês ou alemão, seguiam esse princípio. A criança, consequentemente, cresceu dominando as duas línguas paralelamente e quase totalmente independente uma da outra, tanto no aspecto fonético, quanto nas formas gramaticais e estilísticas. Ronjat observou que, relativamente cedo, seu filho desenvolveu uma longa independência de um e de outro sistema linguístico. Quando precisava expressar a mesma ideia ao pai e à mãe em diferentes idiomas, a criança o fazia sem qualquer confusão e interferência de uma língua na outra. O linguista francês concluiu que a assimilação paralela de duas línguas não prejudicou o desenvolvimento do intelecto e da fala de seu filho.

Apoiado no estudo de Ronjat, Vigotski inferiu que, apesar de raramente observar-se a transferência de uma língua para a outra, a disposição das palavras e das expressões e a passagem literal de palavras não traduzíveis, “erros e misturas são característicos da fala infantil em geral e representam mais exceção do que regra” (VIGOTSKI, 2004, pp.7-8). Vigotski inferiu que o sucesso do experimento do estudioso francês deu-se devido ao preceito seguido: uma pessoa – uma língua. Bem cedo na criança surge a consciência da duplicidade de línguas. No caso de pais falantes de idiomas diferentes, “a criança denominava os objetos nas duas línguas e somente mais tarde ela começou a diferenciar as línguas, convencionando- as assim: fala com a mãe, fala como o pai” (IBIDEM, p.8).

Nos dias atuais, vemos, nos estudos da professora Ofélia Garcia (2009), uma reflexão semelhante àquela realizada por Vigotski há noventa anos. Em seu trabalho, Garcia retomou o termo translanguaging16 que Cen Williams17 cunhou em 1994, para nomear uma prática pedagógica que varia entre línguas em uma sala de aula. Por exemplo, a leitura é realizada em um idioma e a escrita em outro. Na visão de Garcia, translanguaging ―são práticas discursivas múltiplas em que os bilíngues engajam-se a fim de dar sentido aos seus mundos bilíngues18” (GARCIA, 2009, p.45). Assim, famílias e comunidades devem

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Ronjat publicou sua pesquisa no livro “Le développement du langage observé chez un enfant bilingue.” em 1913.

16 Em seu livro, Garcia (2009) explica o conceito de translanguaging. O termo pode ser traduzido aqui como “translinguagem”, mas optamos por mantê-lo na língua inglesa em nosso texto.