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Nos anos setenta, começam a ser constituídas as comunidades no Município de Muaná. Nos anos de 1980, as comunidades proliferaram em todo o município e também no rio Atuá, chegando ao número atual de 52 sendo 03 na cidade e 48 no meio rural 72.

Com muitas comunidades para atender, a paróquia resolveu mapear as áreas de atuação. No caso do rio Atuá, sendo o mais extenso maior rio do Município houve a necessidade de dividí-lo em áreas de ação ao longo do seu curso. A setorização do rio foi considerada pelos responsáveis da paróquia como uma maneira de melhor atender os fiéis e facilitar o trabalho dos párocos, principalmente, por serem os padres, em sua maioria, estrangeiros ou de outra região do país e terem dificuldade para se situarem. A Igreja adotou a divisão: Alto, Médio e Baixo Atuá73. Na realidade a identificação dos rios em alto, médio e baixo é de uso comum na Amazônia para os rios de grandes dimensões. Estas divisões no caso do rio Atuá, passou a ser adotada por todos, com a chegada da Igreja da Teologia da Libertação.

72 Dados colhidos na entrevista Fátima Cobel, em 19/05/2005.

73 Esta divisão é explicada por Fátima: foi dividido assim porque ele [o rio Atuá] é muito longo, no caso, então,

as comunidades Cristo Libertador, Menino Jesus, que são mais distantes lá pro Alto Atuá. Por exemplo, melhora na identificação do trajeto. Médio Atuá, por exemplo, é quando entro no furo, tem Nossa Senhora das Graças, tem o Espírito Santo, tinha o Mariahy, mais acabou. Tem o São Benedito Branco, tem já o Bom Jardim; Para o Alto Atuá já começa a Sagrada Família, tem, também, o São Miguel furo, igarapé São Miguel, depois tem Jaratuba, tem Menino Jesus e São Sebastião das Baratas que chamam, (...) o Recreio tem também no Alto Atuá. (...) Então devido a toda essa dificuldade espacial, foi criada essa divisão para facilitar e ajudar quem não conhece a região, principalmente aos padres que chegam e não estão “por dentro” vão através do mapa que tem o alto o médio e o baixo Atuá. (Fátima Cobel, cidade de Muaná, 19/05/2005).

Essa classificação facilitou a ação da Igreja e trouxe para o contexto local uma forma diferente de conceber o espaço, agrupando os indivíduos por suas identificações de comunitários. Ao separar os grupos por região, a Igreja redefiniu a condição anteriormente estabelecida. A relação dos grupos das comunidades de acordo com os espaços de pertencimento revela uma identificação diferencial com relação aos demais.

Subjacentes às denominações Alto rio Atuá e Comunidade Recreio há sentidos de afirmação e diferenciação. Vão aparecer “disposições distintas e coexistentes” desses grupos em relação aos demais grupos da região. Levando em consideração a ocupação histórica de terras na região, Loureiro (1987) identificou as populações que desenvolvem agricultura na região, como aquelas que ocuparam os cursos dos rios em pequenas propriedades “espremidas” entre as grandes propriedades de fazendas de gado e o rio. Até a década de sessenta os “da beira” eram quase invisíveis, uma vez que a identificação de seu espaço se confundia com o das fazendas da região. No caso do antigo “Barracão” este pertencia a um único proprietário, com seus moradores. Com o aparecimento das comunidades os trabalhadores anteriormente invisíveis são claramente localizados no espaço e identificados por meio do nome de sua comunidade, sobrepondo-se e se confundindo com um ou mais “territórios de parentesco”.

Com o aparecimento das comunidades, o domínio que antes estava concentrado no poder dos grandes proprietários como donos de mais de 500 hectares, sobre esses trabalhadores, foi sendo aos poucos substituído pela ação da Igreja, que reorganizou os grupos de pequenas propriedades com até aproximadamente 20 hectares e os colocou sob sua orientação. Deve-se considerar, que este foi um momento de transformação das relações. A dominação que se reproduz por meio das relações personalizadas agoniza, enquanto as relações que se estabelecem com os representantes dos novos empreendimentos são marcadas, pelo menos de início, pela despersonalização. Nesses interstícios entre as duas formas de dominação, os novos espaços físicos e sociais são criados.

A Igreja, conforme visto, exerce, igualmente, um poder sobre os trabalhadores, mas ao mesmo tempo, fornecem-lhes instrumentos para que estes possam incrementar seu capital cultural. Através da ação da Igreja os trabalhadores reorientam suas ações, participando de sindicatos, associações de produtores, cooperativas, conselhos e outras formas de organização74.

O capital econômico reduzido desses grupos tem sido superado pelo aumento no capital cultural ao longo dessas décadas, após o aparecimento das comunidades. Anteriormente o poder era concentrado na figura do pai, mas, por intermédio da ação da Igreja, aos poucos, a juventude passou a tomar decisões nas reuniões comunitárias e reflete nas relações no interior do grupo doméstico. Nesse momento, os jovens assumiram as primeiras coordenações comunitárias, passaram a participar dos STRs e a assumir lideranças.

Para compreender melhor esse processo, tomei como referência para análise a noção de “espaço social” de Bourdieu (2003), entendida como o: “... conjunto de posição distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também, por relações de ordem como acima, abaixo e entre;...” (BOURDIEU, 2003, p.18-9).

De acordo com essa concepção, entendo que os agentes ou os grupos são distribuídos de acordo com sua posição e suas funções são diferenciadas, como os trabalhadores das margens dos rios, que possuem pequena propriedade com agricultura e produtos extrativistas em relação aos grandes proprietários pecuaristas. Estando eles separados e diferenciados por seus capitais econômicos, mas servindo na região de referência para identificação de um com relação ao outro. Mesmo, coexistindo exteriores um do outro e ao mesmo tempo sendo definido a partir um do outro. Segundo Bourdieu (ibid, p.21), “o espaço de posições sociais retraduz um espaço de tomadas de posição, pela intermediação do espaço de disposição (ou habitus)”. Havendo “um sistema de separações diferenciais”.

Segundo Bonnewitz (2003), o estudo da diferenciação social apresenta duas abordagens sobre as desigualdades sociais que são: uma marxista, que “considera que a sociedade está dividida em classes antagônicas a partir de um critério econômico” e a outra, baseada nas obras de Weber, que “analisa a sociedade em termos de estratos constituídos a partir de três princípios de classificação: poder, prestígio e riqueza”.Bourdieu vê essa diferenciação social como aquela que apresenta “conceitos e instrumentos que permitem não apenas analisar a posição dos grupos e suas relações, mas também compreender a tendência à reprodução da ordem social” (BONNEWITZ, 2003, p. 51-2).