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A transmissão dos conhecimentos e a construção do corpo

Lista de Tabelas

BRASIL COLÔMBIA ARAWAK BRASIL COLÔMBIA

2. Formas de Transmissão e de Circulação dos Conhecimentos

2.2 A transmissão dos conhecimentos e a construção do corpo

Sobre a transmissão de conhecimentos pretendo apresentar as informações colhidas em campo e com base na literatura etnológica. Primeiramente, será mencionada a formação do kumu e do ye’e e, em seguida, serão discutidas as distintas formas de transmissão de conhecimentos xamânicos.

Antes de entrar no tema, é importante relembrar que os grupos tukano são altamente hierarquizados. Cada grupo (Desana, Tukano, Tuyuka, por exemplo) é dividido em clãs hierárquicos, ordenados de acordo com a ordem mítica de nascimento. Além da hierarquia entre os clãs de cada grupo, há a hierarquia dentro do próprio clã. Assim, as famílias que pertencem ao mesmo clã também são ordenadas de acordo com a ordem de nascimento. Contudo, a hierarquia não é rígida, mas flexível devido as constantes disputas que resultam em movimentos de alternância, reversibilidade, de modo que a ordem dos clãs também não é rígida, mas pode ser alterada. Levar em conta esta estrutura é fundamental para a compreensão da transmissão dos conhecimentos. Em consequência, o conhecimento encontra-se num gradiente cuja distribuição é desigual.

33 Não se pode afirmar com segurança o seu desaparecimento completo, no entanto, não há nenhum registro etnográfico recente da figura do ye’e entre os povos Tukano Orientais do lado brasileiro.

117 Vale ressaltar que o processo de formação do kumu tem sofrido alterações devido às mudanças históricas na região. Com base na visão histórica dos próprios desana, é possível identificar esta formação em três gerações.

José Maria Lana apresenta através da tabela abaixo a história dos Desana desde o começo dos tempos. A história dos Desana se encontra dividida em cinco gerações, desde o surgimento da humanidade, passando pela dispersão do grupo pelos rios Papuri e Tiquié, que foi sucedida pela educação não indígena promovida pelos salesianos até chegar o momento atual, marcado pela atuação indígena na região através de projetos com o apoio de organizações como a

FOIRN e o ISA. José Maria Lana explica que hoje (era moderna), os Desana planejam ter seus próprios antropólogos para cooperar com seus projetos. Como o capítulo três demonstrará, os kumua utilizam as habilidades do antropólogo para ajudá-los na publicação de seus livros.

Com base nesta linha do tempo, foi possível identificar três gerações ou fases da história pelas quais a transmissão de conhecimento passou por alterações. A primeira fase corresponde ao período das malocas, momento em que o ye’e se fazia presente nas comunidades. A segunda geração, marcada pela escolaridade, corresponde à vinda dos salesianos que alterou o sistema de transmissão de conhecimentos e, por fim, a quinta geração é marcada por uma transformação da política econômica do conhecimento em que o livro aparece como resultado de projetos indígenas e através da colaboração do antropólogo. A transmissão de conhecimentos continua inclusive na cidade ou nas comunidades maiores.

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Período Geração Oralidade para Escrita Ancestral 1 Aparecimento de Yebá-Buró Aparecimento da Gente Mármore-Buhpua Aparecimento de Yebá- Guamu Aparecimento de Boreka Aparecimento das primeiras mulheres Pahmuri- Mahsã

2 Boreka Localização dos grupos de Boreka Pahmuri-wiara Malocas 3 Poya-ya

Wariro-wi

Dispersão pelo rio Papuri Dispersão pelo rio Tiquié

Pea- Mahsãturi

4 Escolaridade Organizações Indígenas Lideranças Indígenas Era Moderna 5 Projetos

Indígenas

Sustentabilidade (Participação / Controle Social)

Formação e Pesquisa (Tradicional, Técnica e

Científica)

Tabela 3: O Começo Antes do Começo por José Maria Lana

A primeira geração, tanto do kumu quanto do ye’e, formou-se nos moldes que antecederam à chegada dos missionários. Será apresentado apenas um apanhado geral deste período com a finalidade de dar uma ideia do processo de formação naquele tempo (malocas, no quadro). A segunda geração foi formada durante o momento marcado pela interferência dos salesianos (escolaridade). Neste momento, o trabalho do ye’e foi profundamente afetado pela repressão religiosa de forma que o seu número começou a se reduzir drasticamente trazendo sérias implicações para a transmissão de conhecimentos para aqueles que poderiam seguir esta carreira. No entanto, a atuação missionária, embora também afetasse os kumua, não conseguiu eliminá-los. O processo de formação se alterou, mas prosseguiu. Os kumua que participaram como interlocutores deste trabalho pertencem a esta segunda geração. Por fim, há a terceira geração (projetos indígenas), que não está mais sob o domínio salesiano e tem procurado desenvolver atualmente novas formas de aquisição de conhecimentos.

Antes da chegada dos missionários, a formação inicial do bayá,34 do kumu e do ye’e era comum aos três. A começar pelo nome que a criança recebia

34 Nome dado ao mestre que comanda a abertura dos rituais. É profundo conhecedor das músicas e danças.

119 ao nascer. A motivação de uma criança pode receber influência dos pais ao escolher nomear seu filho com o nome que reflete o papel de kumu ou bayá, por exemplo, embora o nome por si só não seja garantia de que este papel será seguido no curso da vida do iniciante. Os kumua do Pirá-Paraná diriam que há uma interação entre a atitude e a motivação e a influência do kumu e de seus pais que se inicia logo após o nascimento quando o filho recebe seu nome que pode estar relacionado com os papeis de chefe, kumu ou bayá.35 De forma que a escolha do nome pode ter um papel influente no futuro da criança.

A mera intenção de um filho se especializar em uma destas categorias já seria suficiente para que o treinamento de uma criança se iniciasse cedo em sua vida. Durante este período, a criança sofria restrições alimentares, realizava sessões de limpeza estomacal através de vômitos induzidos (Buchillet, 1983:99- 100; 1987:10; 1992:213; Goldman, 2004:307), inalava pimentas e tomava banhos matinais – de acordo com Luís e Feliciano Lana os banhos eram tomados de madrugada – com a finalidade de tornar a criança forte (Hugh- Jones, S., 1979:87) e “fria”. Ao aprendiz eram ensinadas técnicas semelhantes às de meditação com a finalidade de torná-lo capaz de manter o controle sobre si mesmo, a se concentrar e a permanecer num estado contínuo de serenidade (Hugh-Jones, S., 1979:111). Os mitos também começaram a ser ensinados desde a tenra idade (Hugh-Jones, S., 1976:106), principalmente para quem frequentava as rodas de ipadu. Este processo de aprendizagem continuava após a adolescência e prosseguia durante a vida adulta (Hugh-Jones, S., 1976:106).

A passagem para a fase adulta era marcada pelo jurupari. Durante essa fase, ensina Viviano, kumu da comunidade Villa Real do rio Apaporis, os neófitos são submetidos a uma sessão de consumo de uma variedade de caapi que proporcionam visões indicando ao jovem qual dessas três modalidades ele deverá seguir. O objetivo desta iniciação é dar a oportunidade para que o iniciado seja relembrado da nominação ocorrida após o seu nascimento e do papel que o seu nome representa. Se, por exemplo, aparecesse em sua mente

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120 um recipiente com água e quatro folhas indicando as janelas do universo, o jovem havia sido escolhido para ser ye’e. Se em sua visão fosse lhe mostrados a cuia de ipadu, o cigarro e o breu, o iniciado estaria destinado a ser kumu. Mas se visse o diadema, o cetro maracá e o bastão de ritmo, significava que havia sido escolhido para desempenhar o papel de bayá. Por fim, se em suas visões esses objetos não lhe fossem revelados, era uma indicação de que não possuía as habilidades necessárias para seguir estas carreiras. Estava assim, livre para dar rumo à própria vida. A partir de então se iniciava a formação específica do ye’e, do kumu ou do bayá (Barreto, 2013:72). A seguir serão apresentados alguns detalhes da antiga formação, particularmente do ye’e e do kumu.

A descrição acima aponta para um fator importante. A posição do xamã pode ser hereditária, mas não ocorre assim necessariamente. Uma pessoa não se tornava ye’e ou kumu por sua própria e única vontade, pois o conhecimento primário (aquele que vem diretamente dos Waimahsã) não pode ser adquirido por simples vontade. Cabe ao interessado se expor à experiência xamânica e observar as suas próprias reações. É esta força ativa quem escolhe o futuro xamã e não o contrário (Reichel-Dolmatoff, 1975:81).

O treinamento ocorria em lugar isolado, onde o aprendiz era afastado de sua comunidade e vivia por meses ao lado de seus companheiros junto com um

ye’e de renome. Seus colegas não eram necessariamente do mesmo clã e podiam

incluir ainda membros de outros grupos. O conhecimento não vinha de graça, contudo. Esperava-se que o aprendiz retribuísse de alguma forma o bem imaterial que recebeu (Reichel-Dolmatoff, 1975:78).

Em primeiro lugar, o futuro ye’e precisava adquirir alguns objetos que seriam utilizados durante o seu trabalho. A essência de tais objetos se encontra na “Casa do Trovão” que era visitada pelo jovem através do consumo de substâncias alucinógenas. Este demiurgo indicaria aonde tais materiais poderiam ser encontrados na floresta. Uma vez encontrados, a manufatura em objetos de prática xamânica bem como a sua utilização eram ensinados pelo

121 pajé-instrutor. O kumu também possui apetrechos como a pedra de quartzo, por exemplo, mas não os utiliza em seu trabalho.

Enquanto encontrava-se por este período isolado com seu mestre, o futuro ye’e ou kumu permanecia afastado do contato com mulheres e sujeito a uma dieta alimentar rigorosa. Durante o treinamento, a comida devia ser benzida antes de ser consumida, caso contrário, podia causar doenças e até mesmo a morte. Alimentos quentes, apimentados, doces e pratos feitos com grandes quantidades de peixe ou caça debilitavam o corpo, causavam vômitos, febre e induziam o aprendiz a comer enorme quantidade de terra, levando-o à loucura (Goldman, [1963] 1979:264; Hugh-Jones, S., 1979:92).

O principal momento desta formação começava ao anoitecer. As noites eram ocupadas com o aprendizado de músicas e danças, fumo de tabaco e consumo de substâncias alucinógenas. Diferentes espécies de caapi eram consumidas quase que diariamente junto com paricá, pois são nestes momentos de alucinação que os Waimahsã transmitem seus conhecimentos diretamente ao aprendiz. Todas as substâncias utilizadas funcionam como meio de preparação do corpo para a conexão que lhes permitirá acessar os conhecimentos dos benzimentos. O aprendizado ainda incluía conhecer e preparar plantas alucinógenas de diferentes espécies que possuem diversas finalidades – atrair a caça, fazer uma moça se apaixonar loucamente, curar doenças ou matar um inimigo (Reichel-Dolmatoff, 1975:80). As substâncias alucinógenas precisam ser benzidas. Há reconhecimento que o seu consumo é prejudicial à saúde – produz males distintos, no entanto – assim os efeitos das substâncias são neutralizados através dos benzimentos antes de serem inaladas ou tomadas (Ramos, 2013:136). A dieta junto com o consumo de paricá diariamente alterava a percepção de mundo do aprendiz a ponto de ser modelada pelo xamã instrutor e abria a mente aos seus ensinos: mitos, instrumentos, origem

122 mitológica e tratamento de doenças e os demais poderes associados aos mitos a ponto do aprendiz internalizar estes conhecimentos36.

Este período longo que compreendia restrições alimentares, ausência de sono e os efeitos dos produtos alucinógenos produzia um profundo estresse emocional e físico. Assim, ao retornar para a maloca, o novo xamã se encontrava num estado delicado que demandava certas precauções tanto sobre si mesmo quanto daqueles que se encontravam ao seu redor. A abstinência sexual devia continuar e o contato com mulheres grávidas ou menstruadas devia ser evitado. As restrições alimentares continuavam ainda por meses. O consumo de pimentas, de qualquer alimento assado e de caça continuava proscrito. A dieta era restrita à sopas leves, pedaços de biju e à algumas espécies de peixes miúdos e formigas. Não deviam ser preparados assados dentro da maloca, pois a fumaça e o cheiro dos alimentos que passam por um processo de alto aquecimento são extremamente prejudiciais à saúde do jovem xamã (Reichel-Dolmatoff, 1975:82).

Embora passassem de certo modo por uma iniciação quase similar, as características adquiridas com a finalização da formação destes dois especialistas eram contrastantes. Como mencionado, para Stephen Hugh-Jones (1996:46) enquanto o principal atributo do ye’e é o seu poder, a qualidade marcante do kumu é o conhecimento. Esta distinção estabelece posições diversas dos xamãs perante sua comunidade. O ye’e ocupava uma posição relativamente baixa na hierarquia do grupo, embora fosse temido pela sua agressividade. Diferentemente, o kumu, ocupava e permanece hoje usufruindo uma posição de respeito junto aos demais, principalmente devido aos seus conhecimentos (Goldman, 2004:300). Contudo, parece que poder e

36 Os sonhos são elementos fundamentais no processo de aquisição de conhecimentos, como uma vez salientou Feliciano Lana. Sonhar é uma forma de atuar que não se restringe a sistema de relações entre signos, mas é uma prática a ser aprendida. O sonho é uma habilidade, um fazer que opera como um desdobramento ou continuidade do aprendizado. Infelizmente, este tópico apareceu apenas no final de meu trabalho de campo, mas é um item que precisa ser investigado com maior profundidade devido à sua importância na formação do kumu. Agradeço a Danilo Paiva Ramos pela sugestão.

123 conhecimento não estão dissociados como o exemplo de Luís Lana demonstrará.

Conhecimentos de que fala Goldman devem ser vistos por uma perspectiva ampla. Não se restringem às curas, preparação de alimentos ou proteção para uma viagem. Mas, relacionam-se com uma economia política. Os grupos patrilineares são definidos não tanto pela consanguinidade ou pela filiação, mas pela transmissão de nomes, genealogia, mitos, cantos e músicas (Hugh-Jones, S., 2010:200). A legitimidade de uma pessoa ou de um clã diante da reivindicação de um território ou da posição hierárquica, por exemplo, depende do seu conhecimento (adquirido através da preparação do corpo que envolve muita disciplina) e de sua performance. Por um lado, é necessário conhecimento profundo das histórias de origem e da genealogia do clã. Por outro, este conhecimento precisa ser demonstrado e as reivindicações validadas através de performances públicas. Este é um contexto em que o conhecimento, a política e a performance andam de mãos dadas. Não é de se estranhar que a escrita seja apropriada nestes termos (Hugh-Jones, S., 2016:180). A mesma explicação pode ser dada para o recepcionamento da educação e do letramento oferecidos pelos missionários que exerceram forte atrativo no momento em que os salesianos atuavam na defesa dos índios contra as explorações dos comerciantes.

Os livros da coleção Narradores se inserem nesta economia política de conhecimento porque operam como uma transformação da tradição de transmissão e circulação de conhecimentos e partem do processo de recuperação da “perda cultural” que chegou ao custo da educação missionária (Hugh-Jones, S., 2010:199). Ademais, os livros são uma demonstração concreta da relação entre política e conhecimento promovida pelos kumua. Através dos livros, os kumua hoje continuam, como Goldman sugeriu, usufruindo uma posição de respeito devido aos seus conhecimentos.

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Com a chegada dos salesianos, o processo de formação especializado foi profundamente alterado. O afastamento da comunidade para o ensinamento em grupo deixou de ser prática corrente e o próprio tempo de aprendizado e de restrições alimentares e sexuais foi aos poucos reduzido. Gradativamente, os

ye’e foram desaparecendo sem instruir outros jovens.37

Por realizarem seu trabalho em público, os ye’e tiveram suas casas e material de trabalho destruídos38 enquanto os kumua, por desempenharem suas atividades de forma mais discreta e solitária, sofreram menos perseguição por parte dos salesianos (Buchillet, 1992:228, nota 4).

A despeito destas tentativas, o kumu permaneceu. Como antes dos missionários, os jovens começavam seu aprendizado por escutarem os mitos. Explica Feliciano Lana que o jovem que desejava aprender devia se sentar junto com os mais velhos à noite quando conversavam, mascando ipadu e cheirando paricá também quando bebiam caxiri. É através da sua presença junto aos outros kumua nestas ocasiões que o jovem demonstrava seu interesse em aprender. Estas rodas de ipadu, que continuam até hoje, são os locais onde se conversa diariamente sobre mitos e benzimentos. Elas proporcionam a circulação de conhecimentos que é fundamental para o aprendizado. O consumo de coca permite o contato com os Waimahsã que é fonte primária dos conhecimentos dos kumua. Geralmente, também é o momento quando benzimentos são solicitados pelos membros da comunidade. Esta exposição contínua não só lhe acrescenta conhecimento, mas eventualmente, reforça seu pedido para aprender os bayiri.

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Para uma descrição em detalhes da figura equivalente ao ye’e entre os grupos Arawak hoje e do processo de transmissão de seus conhecimentos, veja Wright, 2013.

38 Diante da atuação dos missionários, alguns ye’a fugiram para o baixo rio Negro ou para Manaus enquanto outros permaneceram no alto rio Negro, mas se recusaram a transmitir seus conhecimentos a novos aprendizes (Buchillet, 2004a:112).

125 É importante ressaltar, todavia, que os meios de aprendizagem e aquisição de conhecimentos são amplos e vão muito além dos exemplos citados acima.39 Ao mesmo tempo em que há o ensino formal, é comum que enquanto os velhos conversam à noite na maloca, um jovem que está em processo de formação, mas é de outra maloca (clã ou grupo), aprenda com a conversa; pode até pertencer ao mesmo grupo ou clã, mas está ouvindo um kumu que não é seu pai e aumentando, assim seu repertório. O conhecimento ainda pode ser comprado ou vendido. Os conhecimentos que são transmitidos entre pai e filho, tio e sobrinho, avô e neto são conhecimentos que, além de pertencerem ao clã, são a sua vitalidade e representam a sua proteção. A aprendizagem do kumu ultrapassa o mundo indígena e pode envolver o aprendizado das coisas do branco. O conhecimento adquirido nas escolas tornou-se parte fundamental da formação da segunda e terceira geração do kumu. Como já mencionado, os salesianos desempenham este papel ao fornecer ferramentas para que os conhecimentos dos kumua permanecessem e fossem amplamente divulgados. Como ficará claro no decorrer desta tese, Feliciano Lana aprendeu a desenhar com os padres. Luís Lana aprendeu a falar em público com confiança e desembaraço após o internato. Não tiveram a formação “tradicional” de Raimundo que permaneceu aprendendo com seu pai. São, por este motivo, criticados por ele. Mas, por outro lado, usufruíram outros benefícios através do contato com os brancos.

Diferentemente de outros lugares da Amazônia, os conhecimentos não são revelados através de experiências traumáticas, mas são adquiridos por meio de um aprendizado lento e constante. É um processo individual que envolve uma relação estreita entre o kumu e o aprendiz. Uma vez oficializado o início do ensino e com a finalidade de ajudar o aprendiz a memorizar as informações, o kumu realiza um bayiri específico sobre um cigarro cuja fumaça, ao penetrar no corpo do aprendiz, atua como estimulante ao aprendizado e o fixava em seu banco – expressão que indica foco, concentração e reflexão (Buchillet,

39 As situações descritas foram fornecidas por Stephen Hugh-Jones em contato pessoal realizado em 15.02.2016.

126 1983:107-108; 1987:10; 1992:213). Assim, o kumu está preparando ou refabricando o corpo do aprendiz para que esteja apto a aprender e pronto para receber substâncias como ipadu e paricá que, se disponíveis, auxiliarão o aprendizado (Ramos, 2013:138).

A principal forma de transmissão dos benzimentos continua até hoje: são transmitidos patrilinearmente. Este modo de transmissão é fundamental porque é através da linhagem entre o kumu e seu ancestral mítico, detentor destes conhecimentos que a posição do kumu como tal é legitimada (Buchillet, 1990:328). No entanto, é importante ressaltar a interação entre o ideal que funciona como referência e a prática. Pode-se dizer que idealmente a transmissão de conhecimentos segue a linha patrilinear bem como os clãs e os irmãos mais velhos são considerados mais sábios. Mas, não é assim que as coisas operam no cotidiano. As experiências de transmissão dos conhecimentos dos kumua que serão apresentadas a seguir embasam este argumento.

De qualquer forma, não se aprende assistindo às curas. Diferentemente do ritual do ye’e que não deixa de ser uma performance, o ritual do kumu é silencioso. À medida que o jovem vai se aprofundando no conhecimento dos mitos, deverá memorizar os benzimentos. Este é um processo que apresenta enormes dificuldades devido à complexidade dos bayiri e da profundidade dos mitos que, como disse Feliciano, é necessário que o kumu apreenda as informações que se encontram por trás das histórias, para que elas não resumam a um romance. Assim, memorizar é apenas um passo inicial. Mais importante é conhecer a base dos benzimentos que se encontra nos mitos.

Para auxiliar este processo, as regras de abstinência sexual e das dietas alimentares bem como o banho matinal, a limpeza estomacal, o estado de permanência brando e “frio” e os modos específicos de andar e de sentar continuam a ser aplicadas como antes (segunda e terceira gerações), embora os kumua de hoje tenham declarado que não as cumpriram na mesma medida de seus antecessores. A prática da dieta purifica o corpo (Hugh-Jones, S., 1996:42)