• Nenhum resultado encontrado

Lista de Tabelas

BRASIL COLÔMBIA ARAWAK BRASIL COLÔMBIA

3. A construção da relação entre os interlocutores e o pesquisador

3.4 Luís Gomes Lana

Assim que fiquei sabendo que Luís Lana estava em São Gabriel da Cachoeira, hospedado na casa de sua filha, interrompi meu trabalho com Feliciano Lana e Raimundo Galvão para poder aproveitar ao máximo a estadia de Luís na cidade. A princípio não foi fácil encontrá-lo. Luís estava em São Gabriel para resolver alguns problemas na prefeitura e também para participar de um projeto de revitalização da língua desana. Diversas vezes o procurei em sua casa, mas não o encontrei. Mas, ele sabia que um antropólogo estava interessado em conversar com ele. Comecei a desconfiar que a dificuldade de um encontro não fosse tanto por seus compromissos, mas porque Luís

51 provavelmente não deveria estar interessado em encontrar mais um pesquisador. Luís é conhecido por não gostar do trabalho dos antropólogos, como já haviam me contado seus parentes. Isso, porém, não era novidade. A introdução da primeira edição de seu livro, escrita por Berta Ribeiro (1980:31) e a experiência relatada por Larissa Menendez (2009:17) mostram as dificuldades que ambas tiveram no início de suas pesquisas com Luís. Sua queixa é que invadimos sua vida, ganhamos muito com isso e pouco retribuímos. No início dos contatos, sempre os tratava de forma ríspida. O trabalho que estes pesquisadores conseguiram realizar com ele foi possível porque tinham um tempo prolongado que permitia que ganhassem sua confiança e, aos poucos, Luís passasse a se sentir mais à vontade com a intromissão na sua vida, característica do trabalho de campo. Mas, eu não tinha este tempo. Precisava elaborar uma estratégia para conquistar a sua confiança de forma mais rápida e ao que lhe parecesse justa.

Meses antes, soube por intermédio de José Maria, seu irmão, que Luís estava interessado em publicar a terceira edição do livro Antes o Mundo Não Existia. Uma das dificuldades que o narrador enfrentava era encontrar uma editora que publicasse esta nova edição e estivesse disposta a firmar um contrato que garantisse o pagamento dos recursos advindos dos direitos do autor. Pensei que esta seria uma boa entrada e que poderia oferecer minha ajuda para estabelecer um laço de trabalho que fosse não só do meu interesse, mas também do interesse de Luís.

Com isso em mente e, quando finalmente encontrei Luís, me apresentei como um advogado que estava realizando uma pesquisa de antropologia que tinha como objetivo entender os direitos intelectuais dos Desana. Expliquei que estava interessado em entender detalhes sobre o processo de escrita de seu livro, a sua história e as formas de transmissão de conhecimentos. Quando tirei de minha mochila as duas edições do livro Antes o Mundo Não Existia, Luís que até o momento estava taciturno, abriu um sorriso enorme e começou a contar a história de sua vida. Falou sem parar por mais de uma hora. Fiquei maravilhado com o que disse, não só porque estava obtendo informações importantes para a

52 minha pesquisa, mas porque estava diante de alguém que falava sobre o universo desana com tamanha paixão e riqueza de detalhes que não era necessário fazer nenhum esforço para acompanhá-lo, visualizar e sentir o caminho que percorria em suas descrições.

No final, agradeci pela conversa, expressei meu apreço pela sua disposição e tempo em me atender e perguntei se poderíamos conversar no dia seguinte com mais tempo para que eu pudesse fazer algumas perguntas e anotar alguns detalhes. Para minha surpresa Luís concordou e sugeriu que nos encontrássemos na sede da FOIRN. Objetei argumentando que no domingo a

FOIRN estaria fechada, mas Luís insistiu que fossemos lá porque assuntos de tamanha importância como as histórias e os benzimentos requerem um lugar tranquilo e com um ambiente propício à concentração.

Cedo na manhã seguinte Luís estava lá me aguardando. Conversamos com mais profundidade dessa vez. No final, Luís comentou sobre seu novo projeto de escrever a terceira edição de seu livro. Mencionou a dificuldade de encontrar uma editora fora do Estado do Amazonas que estivesse interessada na publicação e que pagasse pelos direitos autorais. Em suas palavras, “que assinasse um contrato”. Expressei minha compreensão pela sua ansiedade e disse que infelizmente não tinha contatos com nenhuma editora e assim não poderia fazer esta intermediação naquele momento. Contudo, lhe assegurei que poderia lhe fornecer assistência jurídica na formulação de um contrato que assegurasse seus direitos de autor e, futuramente, após a escrita da tese, poderia tentar conversar com algumas editoras. Novamente, Luís abriu aquele sorriso de satisfação e disse: “É disso que eu preciso! Preciso de alguém que se interesse pelo meu trabalho.” E subitamente indagou: “Você poderia ajudar na revisão do meu livro?”.

Foi assim que apenas dois dias após nosso primeiro encontro, atei minha rede ao lado da de Luís no barco que nos levaria para a comunidade Parí- Cachoeira, no rio Tiquié. A viagem foi lenta e longa; levou quatro dias e

53 felizmente possibilitou que Luís me transmitisse uma pequena parcela de seu acervo de informações sobre as casas de transformações pelas quais íamos passando no caminho.

Na comunidade Parí-Cachoeira fiquei hospedado na missão salesiana entre os meses de janeiro e fevereiro de 2015. Neste período, trabalhava todos os dias com Luís Lana, especificamente sobre as formas de transmissão de conhecimentos e um pouco da história da coleção Narradores. Luís também contou em detalhes a sua história de vida como tuxaua da comunidade São João Batista, também no rio Tiquié, e especificamente, tratou dos problemas políticos que enfrentou como chefe e kumu de sua comunidade.

4. Metodologia

Antes de entender o processo de transmissão e circulação de conhecimentos, era necessário, como frisou Feliciano Lana através de seu método de ensino, ter noções gerais deste próprio conhecimento. Assim, a primeira etapa da pesquisa, realizada com Feliciano Lana e Américo Fernandes, consistiu no aprendizado dos mitos e de sua relação com os benzimentos.

A partir do momento em que passei a frequentar as suas residências diariamente, entrei em contato com pessoas que compunham as suas redes de relações. Desta forma, pude não só acompanhar o dia a dia de um kumu, incluindo as suas práticas xamânicas, mas também perceber como meus interlocutores eram conhecidos na cidade. Logo após o benzimento, aproximava-me do cliente e procurava saber onde morava, o grupo a que pertencia, o motivo da procura daquele kumu, se antes já havia procurado outras ajudas, incluindo outros kumua e médicos ou hospitais. Depois desta conversa inicial, procurava entender qual era a relação do cliente com o kumu (parentesco, afinidade, vizinhança ou amizade), se fora indicado por alguém e alguns detalhes do tratamento. Por fim, lhe apresentava os volumes da coleção

54 Narradores, procurando saber se havia alguma relação entre a procura por aquele kumu e a publicação ou se ao menos, já tinha visto alguns livros em algum momento.

A segunda etapa da pesquisa envolveu entender melhor os processos de transmissão e circulação dos conhecimentos. Nesta fase, trabalhei diretamente com os narradores, inquirindo sobre o processo de aprendizado e de escrita dos livros bem como sobre as políticas de publicação. Vez por outra, acompanhava os benzimentos, mas o foco neste momento era outro. Decidi, como já mencionado, limitar o círculo de kumua aos narradores desana. Esta estratégia se mostrou proveitosa porque permitiu que as discussões com e entre os narradores se aprofundasse e revelasse as suas disputas políticas em detalhes. Contudo, é importante salientar que, adicionalmente, a etnografia dos livros desana da coleção Narradores abrangeu os produtores dos livros. De forma que a análise procura ultrapassar a materialidade dos livros e atinge os interessados e incentivadores em sua produção como é o caso do padre Casimiro Béksta e dos antropólogos que participaram efetivamente na publicação dos volumes. Buscou-se dar também maior visibilidade à circulação dos livros para fora do âmbito rionegrino com a inteção de demonstrar a cadeia ou rota que os livros percorrem.

Para traçar o mapa da circulação dos livros, precisava saber quem os oferecia e quem os adquiria e para qual finalidade. Para tanto, procurei os distribuidores dos livros em São Gabriel da Cachoeira, FOIRN e ISA, e pedi que anotassem os dados de cada comprador. Visitei as escolas de São Gabriel da Cachoeira e procurei conversar com os professores das comunidades que porventura passavam pela cidade.

Todos os narradores desana relatavam basicamente os mesmos fatos sobre as publicações. Não parecia haver nenhuma espécie de discórdia entre eles. Por mais que perguntasse, sempre com o cuidado de não induzir a resposta, parecia tudo muito perfeito e coeso. Isto me incomodava porque em uma

55 sociedade fortemente hierárquica como esta, era de se esperar um mínimo de implicações, divergências e até mesmo disputas políticas. No entanto, até aquele momento, todos os narradores estavam muito felizes com os seus livros e contentes com o seu lugar na hierarquia desana. Assim me falavam.

Embora passasse dias alternados com cada narrador em suas casas, não havia tido a oportunidade de encontrá-los juntos num mesmo ambiente. Diferentemente de uma comunidade, onde há mais chances de encontros, a dinâmica da vida de uma cidade, mesmo que pequena, pode dificultar encontros frequentes. Desta forma, resolvi que talvez fosse proveitoso para a pesquisa se os narradores pudessem se encontrar. Assim, algumas vezes passava na casa de um deles e o levava para visitar o outro e lá discutíamos o assunto do dia.

Logo percebi pela forma de se portar e de falar de cada um, que muito poderia ser aprendido sobre os livros, mas, por algum motivo, não estavam dispostos a comentar comigo, pelo menos, inicialmente. No entanto, estas poucas oportunidades foram suficientes para incitar o desejo e a disposição dos narradores em me explicar as batalhas políticas que foram travadas através da publicação dos livros. A partir de então, quando voltei a perguntar, todos resolveram falar abertamente e sem rodeios de que forma a publicação da coleção Narradores atravessa de forma incisiva as disputas hierárquicas. As falas de cada narrador ficaram cada vez mais abertas sobre o uso do livro como meio para sustentar os conflitos hierárquicos de seus clãs.

Conversar sobre os conflitos entre os clãs não é assunto corriqueiro, pois pode alimentar discórdias. No entanto, sempre achei que a transparência seria a melhor estratégia. Desta forma, falava abertamente com cada narrador o que havia discutido na casa do outro. Não lhe contava apenas os assuntos, mas mencionava o que cada um havia falado especificamente sobre o outro. Ao falar, o narrador já estava ciente que no dia seguinte eu comentaria com o outro narrador aquilo que havia escutado no dia anterior. No início fiquei apreensivo com esta dinâmica, mas, aos poucos fui percebendo que os próprios narradores

56 apreciavam este método, pois estava criado um espaço para que cada um falasse ao outro através de meu intermédio sobre a sua legitimidade, seus conhecimentos e suas posições hierárquicas. Tão motivados quanto eu, os narradores se empolgavam com o conhecimento que circulava.

Desde o início de minhas relações com os narradores, apresentei um termo de consentimento informado que esclarecia os objetivos da pesquisa e estabelecia um acordo com cada kumua estabelecendo que tinham plena liberdade em não responder qualquer pergunta, sem a necessidade de justificar sua recusa e que poderiam interromper o trabalho a qualquer momento que desejassem.