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2. Formas de Transmissão e de Circulação dos Conhecimentos

2.5 Mestre e aprendiz: diferentes formas de transmissão

2.5.3 Manuel Tukano e Feliciano Pimentel Lana

Uma terceira via de transmissão é exemplificada pela relação entre sogro e genro. A história de Feliciano Lana é emblemática. O avô paterno de Feliciano era bayá. Seu pai era benzedor na comunidade São João Batista, no rio Tiquié. Feliciano aprendeu um pouco com seus tios Firmiano e Eduardo e com seu avô Manuel. Da mesma forma que Américo e Raimundo, Feliciano quando pequeno começou seu treinamento para preparação de seu corpo a fim de iniciar o processo de aprendizagem.

Quando ainda morava em São João Batista, pedi para Firmiano, meu tio, para aprender as rezas. Ele levantou saiu e foi fazer algumas coisas, me deixou esperando e voltou. Começou a dizer que as pessoas querem aprender as rezas apenas quando estão doentes. Quando estão boas não respeitam os mais velhos e nem tem interesse em suas histórias. Para essas pessoas, o kumu que sofreu em discussões anteriores, não deram comida ou ajudaram, o kumu não vai contar. Mas, quando tratam o kumu bem, ele conta a reza, a história. Mas, se desprezar e quando não dividem com os velhos benzedores, não vão ajudar. Por isso, quem quer aprender tem que tratar bem o kumu. Depois, de falar bastante sobre isso, começou a falar sobre as histórias.

Feliciano conta que a preparação de seu corpo foi muito importante para a memorização dos ensinamentos naquela fase de sua vida. Explica que tomava caapi todos os dias antes de ouvir as histórias e pouco se alimentava. Certa noite, teve um sonho que lhe permitiu se ver como kumu realizando o ritual de benzimento. Este sonho foi o sinal de que Feliciano deveria continuar com sua busca por este tipo de conhecimento.

Mas a despeito do sonho, aos onze anos, Feliciano interrompeu sua formação. Entrou para o internato em Parí-Cachoeira, “por vontade própria” – faz questão de declarar. Com lucidez, Feliciano explica suas razões.

Vi que tudo estava sendo dominado pelos padres. Por isso, pensei que precisava aprender as coisas do branco. Não tinha vontade nenhuma de aprender mitologia e benzimento. Até os onze anos falava desana. Depois no internato aprendi com muita dificuldade o português, mas foi bom.

148 Feliciano estudou por cinco anos e após este período permaneceu na missão trabalhando como assistente de aula por um ano. Enquanto vivia no internato, aconteceu algo que ressalta a importância da preparação do corpo quando o processo de formação do kumu já se iniciara.

A minha inteligência, colocada por meu avô se estragou e meu corpo não aguentou. Eu estava morrendo. Comia terra, carvão. Entrei no internato e lá tinha caça, assado, jabá [...] e comiam sem benzer. Mesmo antes de terminar aquele ano, meus pais foram lá e me levaram para casa. Quando meu avô me viu, disse que eu não estava doente, mas estragado pela alimentação da escola. Meu avô fez os benzimentos sobre a alimentação e logo fiquei bom. Se você está estudando os benzimentos, está praticando as rezas, se elas se encontram na sua mente e na sua língua e você deita com sua mulher, já estragou. Esquece tudo. Se for soprar fogo, esta soprando todo o ensinamento que aprendeu, queimou no fogo. Isto que é jejum. Sentiu cheiro de churrasco, já estragou o corpo. Quando meu avô fez o benzimento para me curar da loucura que eu tinha, teve que retirar tudo o que eu havia aprendido. Foi tudo embora.

A declaração de Feliciano é fundamental para que se possa entender a relação entre corpo e conhecimento. Acima já foi explicado que o aprendiz passa por restrições alimentares e sexuais e consome substâncias que purificam o corpo e o preparam para que o conhecimento se armazene dentro de si e o auxiliem em sua memorização. Para iniciar este processo, o kumu realiza um benzimento. Contudo, durante o curso de sua formação, a alimentação do aprendiz precisa ser constantemente benzida, incluindo as substâncias alucinógenas. Feliciano interrompeu o processo de formação e passou a comer alimentos não benzidos sem seu corpo estar protegido para esta alimentação. Para resolver o problema, seu avô precisou fazer um benzimento para tornar seu corpo novamente sadio, mas com isso, os conhecimentos que Feliciano havia recebido até então foram retirados de seu corpo também.

Após deixar a missão, Feliciano continuou em Parí-Cachoeira por dois anos, agora trabalhando como ajudante de pedreiro. De Parí-Cachoeira, Feliciano passou algum tempo na comunidade de seu avô no rio Papuri. O tempo passou e Feliciano já casado com a tukano Joaquina e agora com filhos, resolveu que era hora de retomar o seu treinamento inicial há muito interrompido e se esforçar para se aprofundar nas histórias e aprender os

149 benzimentos. Nesta época, seu pai e seus tios já haviam falecido. Mas, Feliciano ainda poderia ter acesso a alguma fonte de conhecimento. Seu sogro, Manuel, do grupo tukano, era um kumu e bayá respeitado em sua comunidade. Tinha três filhos. O irmão mais velho de Manuel tinha três filhos também e faleceu quando eles eram pequenos. Assim, Manuel cuidava deles, além de seus filhos. Seus sobrinhos eram mais velhos que seus próprios filhos. Desta forma, Manuel pensou em transmitir seus conhecimentos primeiramente a eles. No entanto, nem seus filhos nem seus sobrinhos demonstraram interesse algum em aprender esses conhecimentos quando cresceram.

Frente à impossibilidade de transmitir o que lhe era mais caro e, depois de muita insistência de Feliciano, Manuel aos poucos foi compartilhando o que sabia.

Manuel, meu sogro era um homem muito sério. Depois que insisti muito ele resolveu ensinar aos poucos. Mas, não ensinava tudo. Ensinava só parte do benzimento e a outra parte eu aprendia com outros kumua que conversava. Depois, ele resolveu ensinar as rezas completas, mas depois de muito tempo.

O comentário de Feliciano faz alusão a uma faceta da circulação dos conhecimentos que será comentada mais adiante. Ao saber que os benzimentos que até então aprendera de seu sogro não eram completos, Feliciano se empenhou em completá-los ou aprimorá-los com outros kumua. E até hoje, Feliciano e outros kumua que me ensinaram sobre os benzimentos costumam “trocar ideias” entre si. Embora a troca de detalhes seja limitada, o exemplo de Feliciano demonstra que em determinadas circunstâncias, a transmissão de conhecimentos pode ocorrer entre sogro e genro. A princípio, pensava que esta era uma subversão à forma de transmissão patrilinear, mas ao apresentar o caso para outros kumua, passei a entender que esta é mais uma forma de transmissão de conhecimentos que se soma às demais.

Foi só quando me mudei para São Gabriel da Cachoeira que comecei a benzer. Tinha 62 anos, já sabia benzer, mas achava que não estava pronto. O meu primeiro benzimento foi o parto do meu neto. No começo fazia só os benzimentos de parto acompanhados de minha mulher. Ela verificava se as rezas estavam certas e se davam os

150 resultados bons, sem problemas de saúde para o bebê e a mãe. Depois viu que eu sabia benzer de verdade!

O benzimento é ensinado por partes, relatou Feliciano. E não só entre sogro e genro. A memorização completa é um processo demorado porque o kumu nem sempre ensina o benzimento completo de uma vez. Este também foi o caso de Américo ao ensinar Durvalino. Américo começava um benzimento falando de forma corrida e rápida e sem parar, mas não ensinava Durvalino por completo. Durvalino aprendia o restante ao perguntar a outros kumua.

No caso de Feliciano, uma interpretação rápida poderia levar a conclusão de que seu sogro não desejava realmente lhe transmitir plenamente seus conhecimentos. No entanto, esta situação mudou com o decorrer do tempo. Manuel, ao ver que Feliciano progredia em seus conhecimentos, passou a ensinar cada vez mais. Mas, o mesmo não pode se dizer sobre Durvalino, que será o sucessor de Américo como o chefe dos Dihputiro Porã. Não tenho informações do kumu para explicar por que Américo ensinava desta forma. Para Durvalino, seu pai queria com isso ver o quanto seu filho iria buscar se aprofundar através de seus próprios esforços.

Geralmente, o kumu ensina toda a reza completa aos seus filhos por repeti-la até seu filho conseguir memorizar. Entretanto, para seu sobrinho ou genro, ensina apenas parte da reza e repetirá apenas uma vez. Não passa todo o conhecimento. Mas, de acordo com Feliciano – sua explicação não é cabível ao caso de Américo – o kumu ensina o benzimento pela metade ou faltando algumas partes por duas razões. Primeiro, o kumu não deseja que seu aluno se torne mais sábio e, portanto, mais poderoso que ele mesmo. Segundo, o instrutor percebe as habilidades intelectuais de seu aprendiz e pode ficar temeroso que ele perceba de que partes do benzimento provêm os estragos. Estes trechos específicos acabam sendo eliminados durante o processo de aprendizado. De qualquer forma, se esta era a situação inicial entre Manuel e Feliciano, o tempo alterou essa forma de transmissão. Feliciano hoje não se limita a benzer para

151 proteção e cura, mas realiza os benzimentos que são transmitidos na linha patrilinear tais como o de nominação e de formação do coração.

A história de Feliciano mostra que a transmissão e a circulação são formas complementares de aprendizagem. Por meio de comparações entre os bayiri, os kumua acabam acrescentando detalhes aos seus próprios benzimentos, que não constavam no ensino durante a sua formação. Isso não significa, contudo, que os kumua relatam os bayiri em sua inteireza para seus amigos, pois, novamente, o conhecimento pleno implica em questões de prestígio. A transmissão de conhecimentos, seja qual for a forma é sempre uma decisão política. Uma oração incompleta ou pela metade não será eficaz. Um episódio envolvendo o sogro de Feliciano ilustra a questão. Quando Feliciano mudou-se para Parí-Cachoeira um de seus colegas de trabalho era um kumu tuyuka. Trocando seus conhecimentos sobre as histórias mitológicas e bayiri, Feliciano perguntou ao seu colega se ele sabia curar reumatismo, utilizando o bayiri do majuba. O kumu tuyuka respondeu afirmativamente e fez a mesma pergunta a Feliciano que respondeu da mesma forma e pronunciou o bayiri do majuba do início ao fim. Seu colega o elogiou, mas disse que Feliciano estava começando pela metade, pois faltava mencionar elementos fundamentais como o tipiti e o arumã para que o bayiri tivesse efeito. Além de informar o que faltava, fez referência à história sobre a maloca do chocalho e casa da cobra grande, mito que servia de base para este bayiri. O kumu tuyuka ainda elogiou a pronúncia e o conteúdo da oração, ressalvando, no entanto, que faltava a parte inicial.

As histórias de aprendizagem acima relatadas mostram ao menos três formas de transmissão de conhecimentos. A primeira ocorre dentro do clã e entre pai e filho. A segunda forma é a transmissão que se origina do tio-avô paterno e da mãe. Estas duas formas implicam na transmissão plena de conhecimentos. A terceira forma diverge das demais. A transmissão entre sogro e genro envolve partes de grupos tukano diferentes. Neste caso, não é uma prerrogativa do aprendiz o direito de transmissão. Ao sogro é facultada a escolha do que transmitir. No caso apresentado, parece que a transmissão

152 atingiu um nível maior do que comumente ocorre na relação entre sogro e genro. Estas distintas formas de transmissão de conhecimento permitem chegar à seguinte conclusão: quem ensina o quê e a quem é uma questão política que envolve questões na relação interpessoal e interclãs. Conhecimento, ensino e aprendizagem estão intimamente relacionados com prestígio e hierarquia.

Além de demonstrar que existem diferentes formas de transmissão de conhecimentos que não se limitam a preferencial do modelo preferencial entre pai e filho, as histórias revelam que a preparação do corpo para a recepção dos conhecimentos44 bem como a legitimidade do transmissor implicam na competência do futuro kumu.

A aprendizagem requer uma longa e complexa preparação do corpo e a legitimidade do transmissor de conhecimentos envolve a identificação do seu elo de ancestralidade com o ente mítico (Carneiro da Cunha, 2009:365). Não é sem razão que todos os livros da coleção Narradores têm um componente principal: a genealogia do clã que marca a posição do narrador como descendente e sucessor dos conhecimentos de seu ancestral mítico.

A legitimidade é fundamental para que os conhecimentos possam ser exibidos, como se fossem objetos de adorno, elevando o prestígio e o respeito do kumu. A publicação de livros requer tal legitimidade e este requisito será afirmado ou questionado a todo o momento no âmbito da economia política de conhecimento.

Disputas entre kumua são terminantemente proibidas. Mas, às vezes acontecem quando o orgulho de um deles está ferido por algum motivo. No

44 De acordo com Bruce Albert, um dos fatores responsáveis pelo sucesso de Davi Kopenawa em atuar como porta-voz dos Yanomami e por ser considerado um xamã reputado foi “a legitimidade decorrente

153 passado, as disputas eram mais comuns e tinham como ponto de partida discussões sobre hierarquia ou o ataque à família de um kumu (Buchillet, 2004a:118).

A ética do kumu que procura inibir a demonstração de suas habilidades, não encontra paralelos em outros grupos da Amazônia, onde parece acontecer o inverso. A demonstração pública da sua força de atuação, talentos e habilidades pode ser um meio para que o xamã aumente sua reputação (Buchillet, 2004a:118). Mas, no noroeste amazônico, a ética proíbe um kumu chamar a atenção de outros kumua sobre suas habilidades como benzedores e conhecedores dos relatos mitológicos. Promover-se ou menosprezar seus colegas é algo que não deve ser feito, pois geralmente, as consequências não são boas para ambas as partes. Nem mesmo espera-se que o kumu relate seu sucesso como benzedor, vangloriando-se da sua popularidade diante dos demais.45 Caso isso aconteça, há a possibilidade de o kumu vir a ser vítima de feitiçaria por parte de outro kumu (Buchillet, 2004a:117-118). Isso é também válido para outros especialistas, como os bayá por exemplo. Buchillet (2004:117) relata que um bayá de repente perdeu sua voz em uma festa que estava sendo realizada em uma comunidade distinta da sua. Imediatamente, o bayá acusou o líder da outra comunidade de feitiçaria por causa da inveja que tinha de seu conhecimento profundo. Ameaçou este líder caso ele não recuperasse a sua voz, o que aconteceu pouco tempo depois.

Enquanto esta pesquisa estava sendo realizada, um kumu tukano contou a Feliciano que até a pouco tempo tinha bastante conhecimento, mas este conhecimento havia “ido embora”. Ele se esquecera de tudo. Feliciano apontou

45 Embora uma exibição competitiva de conhecimentos não seja bem vista e politicamente não seja aconselhável, é certo que para o reconhecimento de um kumu pela comunidade é necessária certa medida de demonstração, sempre discreta, do domínio de conhecimentos. Assim, a frequente solicitação da comunidade para a realização de bayiri é uma forma de demonstração da profundidade de conhecimento, pois as pessoas saberão quem os realiza. O mesmo se pode dizer sobre o kumu que organiza um ritual de iniciação em sua própria maloca ou comunidade ou que aceita o convite do chefe de uma outra maloca para conduzir este ritual. Ambas as formas são o equivalente de uma reivindicação do reconhecimento de seu papel como kumu a ponto de ser motivo de fofoca ou de recusa por alguns em comparecer a festa. Comunicação pessoal com Hugh-Jones realizada em 15.02.2016.

154 dois prováveis motivos para isso: primeiro, este kumu era muito popular em sua comunidade e, provavelmente, outro kumu fez com que seu conhecimento desaparecesse por meio de um cigarro sobre o qual ele benzeu. Para que isso não tivesse acontecido, era necessário que o kumu fizesse, constantemente, um bayiri de proteção sobre si mesmo. A segunda possibilidade deste esquecimento é o resultado das críticas que este kumu tukano tem dirigido aos livros que os Desana publicaram na coleção Narradores Indígenas do Rio Negro sobre mitologia, argumentando que os Desana não deveriam publicar, pois estas histórias foram contadas primeiramente pelos Tukano. Diante de suas fortes críticas aos Desana, algum kumu poderia ter enviado um dohari para fazê-lo esquecer seus conhecimentos.

É preocupação corrente entre os kumua que os dohari e os bayiri não sejam recitados para quem não esteja qualificado. As consequências podem ser graves a ponto de trazer inúmeras doenças para as pessoas e prejudicar mulheres e crianças. A incompetência do uso deste conhecimento é a explicação dada para o aumento de doenças na região, fenômeno que não acontecia na mesma escala no passado e Buchillet (2004:127) ressalta a importância que os Desana dão para as regras específicas de transmissão durante o treinamento e as práticas do kumu. Se levado a sério, o treinamento contribui para o controle, a serenidade e a disciplina do kumu. Assim como para os Piaroa, a quem Overing chama de “os intelectuais do Orenoco”, devido à sua tendência ao debate, a prática do conhecimento do kumu deve ser norteada pela capacidade reflexiva. O conhecimento em si não basta, é preciso saber os modos de usá-lo, o que envolve consciência, controle, intencionalidade e responsabilidade. Como ensina Joanna Overing (1999:88), “cada pessoa é, em última instância, responsável por dominar dentro de si as capacidades que tornam possível uma vida social e uma existência material do tipo humano”.

A ética kumu vai além, a ponto deste especialista não se sentir coagido a benzer caso não queira. Inversamente à ética hipocrática dos médicos do Ocidente, a qual requer que o profissional de saúde atue em qualquer

155 circunstância emergencial, o kumu pode recusar-se a benzer, não sendo passível de punição por sua escolha (Buchillet, 2004a:124). O consentimento também aparece nos tratos do kumu com seu paciente. Feliciano explica que o pedido de uma mulher casada para se tornar infértil não deverá ser atendido caso não houver o consentimento do marido ou a não ser que já tenham muitos filhos e passam por dificuldades em prover a sua subsistência.