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Lista de Tabelas

1. O caminho da pesquisa

Esta é uma pesquisa que trata da transmissão e circulação dos conhecimentos dos kumua (kumu no singular), espécie de xamã do noroeste amazônico. Procura entender os movimentos pelos quais os conhecimentos são transmitidos em suas diversas formas e sua circulação, analisando o papel dos sujeitos transmissores (kumua) e receptores (aprendizes), da sua legitimidade, do próprio conhecimento em si, ou seja, de seu conteúdo (mitos, genealogias e benzimentos), do local em que este conhecimento circula e das formas de transmissão quer por via oral, quer pela circulação de livros. Por fim, é feito um esforço para entender a articulação entre as políticas de publicação, os direitos intelectuais costumeiros e o direito autoral positivo. Portanto, esta não é uma tese sobre xamanismo nem uma etnografia sobre um grupo específico, embora os Desana tenham sido escolhidos como colaboradores desta pesquisa. Mas, é uma tese que, em parte, se distancia das pesquisas clássicas de etnologia por seu caráter pragmático apresentado no fim do trabalho e privilegia um movimento entre campos de estudos distintos.

A região do noroeste amazônico é conhecida pelo seu sistema social aberto (Hugh-Jones, S., 1979:241; Århem, 1981:19-22; Jackson, 1983:5-8) que se estende por milhares de quilômetros quadrados entre o Brasil, a Colômbia e a Venezuela. Habitada por diferentes grupos linguísticos, esta ampla região foi escolhida para a realização desta pesquisa porque salta aos olhos de qualquer interessado no tema de direitos intelectuais o trabalho, em especial dos Tukano Orientais, em publicar seus conhecimentos. Enquanto a transmissão e posse de conhecimentos poderiam ser estudados com qualquer grupo indígena do Brasil,

31 o noroeste amazônico, mais especificamente, o alto rio Negro, é um local fértil para estudar a circulação destes conhecimentos através da coleção Narradores Indígenas do Rio Negro (Narradores).

Antes mesmo de conhecer as etnografias do noroeste amazônico, a popularidade desta coleção me chamou a atenção por ser um fenômeno único entre os ameríndios. Embora no Brasil a publicação de livros seja fenômeno corrente entre índios de diferentes etnias, a coleção Narradores se destaca por sua natureza, seus objetivos e seu público-alvo. É uma coleção composta, até este momento, por oito volumes escritos por sábios kumua, respeitados em suas comunidades, com a participação de seus filhos e com o auxílio de um antropólogo. Os livros são versões da mitologia dos diferentes grupos e apresentam, com destaque, a história do clã ao qual pertencem os narradores. Foi através da publicação desta coleção que dirigi minha atenção ao alto rio Negro e, a partir de então, passei a considerar esta região como o local onde poderia realizar um estudo sobre as formas de transmissão e posse de conhecimentos.

A investigação dessa pesquisa nasceu de uma trajetória entre dois campos distintos de estudos. Meu percurso pelo estudo do direito foi marcado por enormes conflitos intelectuais ao ser doutrinado por um ensino positivista e acrítico. Muito mais próximo a um curso de legislação, o ensino do direito ainda é hoje no Brasil, com raríssimas exceções, marcado por uma didática que desconsidera e até mesmo nega outras juridicidades além do direito oficial, o qual é imposto a todos e elege o Estado como fim último do direito. Os “Cursos de Direito”, títulos dos manuais didáticos utilizados nas diversas disciplinas dos cursos de graduação, carecem da percepção de que o direito é fundamentalmente uma construção, um debate, que é a todo o momento, negociado e é fruto de infindáveis processos sociais.

Desta forma, procurei pensar o direito através das questões levantadas pela antropologia. Ingressei em um programa específico de mestrado em

32 antropologia do direito que me ajudou a perceber o direito de dentro para fora. As generalizações e universalizações almejadas pelo Estado deram lugar às especificidades e localidades. Não que o geral e universal deixassem de ser importantes, mas passaram a ser considerados a partir de um coletivo específico e localizado, privilegiando-se as categorias jurídicas e as suas relações com o direito do Estado.

Foi a partir deste estudo mais concreto do direito, longe das vagas definições e descrições que marcam os cursos de direito, que percebi que os direitos intelectuais, assim como os outros direitos, deveriam, ao abranger outras sociedades, ser formulados levando em conta as categorias de transmissão de conhecimentos. Em minha dissertação de mestrado sugeri que a adoção por parte do Estado de normas de direitos intelectuais internacionais, como o acordo TRIPs, por exemplo, traria mais benefícios às indústrias do que aos agentes produtores de conhecimentos tradicionais. Entretanto, haveria alternativas mais interessantes à proteção destes conhecimentos como a CDB, que oferece a garantia de benefícios a estes povos sobre os recursos genéticos e aos conhecimentos associados à biodiversidade, exigindo o consentimento prévio e informado e a repartição de benefícios.

Durante o mestrado, entrei em contato com pesquisadores e seus trabalhos que direta ou indiretamente abordavam o letramento, os direitos intelectuais e o próprio livro, em suas diferentes categorizações. As pesquisas de Maurice Bloch (1998), Chris Fuller (2003), James Leach (2000; 2004) e Brinkley Messick (1993) acabaram chamando minha atenção para o importante papel do livro em diferentes contextos que, mais tarde, me ajudariam a fazer conexões com o fenômeno da publicação de livros no noroeste amazônico.

Até aquele momento, havia criado concepções essencialistas e totalizantes, uma oposição entre a antropologia e o direito – enquanto a antropologia se preocupava com as concepções do outro, o direito o ignorava. Mas, aos poucos fui percebendo que há juristas, trabalhos e propostas

33 normativas que consideram os interesses dos grupos indígenas e, mais importante ainda, aprendi que os povos indígenas são autores de seus próprios direitos alcançados em face do Estado. Esta percepção alterou minha posição rígida de direito versus antropologia, fazendo com que esta oposição cedesse progressivamente lugar a encontros e contribuições de ambos os campos de estudos.

Com interesse em dar prosseguimento ao estudo dos direitos intelectuais, o ingresso no doutorado tinha como projeto inicial de pesquisa o estudo sobre os sistemas sui generis de proteção dos conhecimentos tradicionais. O objetivo era tentar estudar de que forma se poderia pensar em um sistema sui generis tendo como ponto de partida as concepções tukano de propriedade, criatividade e transmissão de conhecimentos. Contudo, este projeto estava viciado pela minha idealização, pela falta de experiência no trabalho de campo e completa ausência de contato com os ameríndios até então. Foi através das primeiras experiências de trabalho de campo em São Gabriel da Cachoeira que ficou claro que este projeto era amplo demais, senão impossível de ser cumprido dentro de um programa de doutorado e, como bem alertavam minhas orientadoras e outros professores, era de completude inexequível tamanha a sua ambição.

Logo no início do doutorado, Manuela Carneiro da Cunha me aconselhou a deixar este projeto de lado e sabiamente me orientou a fazer uma pesquisa dentro da FOIRN ou que tivesse como foco as legislações que tratam de direitos intelectuais – enfim, algo que ao mesmo tempo se encontrava dentro dos meus interesses de pesquisa e que fosse muito mais próximo à minha formação jurídica. Com tal orientação, Manuela perspicazmente visava um trabalho a ser apresentado com melhor qualidade e que requeria um esforço menor do que fazer uma etnografia com os kumua. Desanimado, tentei elaborar diversos projetos de pesquisa diferentes deste, mas nada fluía. Confesso que no íntimo, não havia aceitado seu conselho. O tempo passou e próximo da data do exame de qualificação pouco havia sido feito. Até que, pouco tempo antes do exame, diante do desespero de Marta Amoroso, decidi repentinamente voltar a São

34 Gabriel da Cachoeira e, com obstinação, dar prosseguimento ao trabalho que havia planejado inicialmente.

Ao longo do trabalho de campo, o projeto foi remodelado e somente a partir das ricas sugestões dadas no exame de qualificação pelos professores Marco Antônio Barbosa, Marta Amoroso e pela própria Manuela Carneiro da Cunha que a pesquisa tomou um rumo certo. De forma que o trabalho de campo propriamente dito foi realizado nos últimos anos do doutorado. Neste ínterim, sofri um acidente e precisei colocar uma prótese no quadril esquerdo. O processo de recuperação foi lento e postergou uma das fases do trabalho em campo, mas, esta nova condição física não impediu as longas viagens de barco pelo rio Tiquié para chegar em São João Batista e em Parí-Cachoeira bem como pelo rio Uaupés com destino às comunidades do Apaporis na Colômbia.

Todavia, Manuela, desde o princípio tinha razão. Talvez a etnografia não tenha atingido o padrão esperado. Contudo, o que se intentava fazer desde o início era um estudo que permitisse vislumbrar os direitos intelectuais desana, que possibilitasse uma reflexão de cunho comparativo e que, talvez, contribuísse para entender a sua relação com o direito positivo.

Assim, este projeto idealizado, com o tempo, transformou-se num plano de pesquisa ainda relacionado com os direitos intelectuais, mas passível de ser concretizado quando seus objetivos foram delimitados ao estudo dos processos de transmissão e circulação de conhecimentos entre os kumua e sobre os direitos autorais. Ficou claro também, no decorrer do tempo em campo e com as orientações de Geraldo Andrello, Pedro Lolli e Stephen Hugh-Jones, que acompanhar o movimento de um livro da coleção Narradores seria um caminho fértil para compreender uma das possíveis formas de circulação de conhecimentos.

Dentro deste novo panorama de pesquisa, qualquer kumu, de qualquer grupo do noroeste amazônico e qualquer sábio que contribuiu com algum volume para a coleção Narradores poderia colaborar com seus conhecimentos.

35 No entanto, os contatos foram limitados a um grupo específico dos povos tukano. Os Desana foram escolhidos por dois motivos. Primeiro, por razões mitológicas. De acordo com a narrativa dos Dihputiro Porã tanto os benzimentos como os rituais foram transmitidos por Boreka, o ancestral maior, aos seus descendentes, os Desana, e também aos outros grupos tukano. Até aquele momento, apenas Boreka tinha domínio sobre este conhecimento, tanto é que foi o responsável pela segurança durante a viagem do barco-transformação a fim de proteger a proto-humanidade dos ataques de outros seres e foi bem sucedido. De forma que desde Boreka, os conhecimentos do kumu têm sido transmitidos através das linhas patrilineares (Diakuru & Kisibi, 1996:178).

Segundo, os clãs desana, até o momento, compõem o grupo tukano que mais publicou na coleção Narradores. Seria impossível trabalhar com todos os narradores, e assim, restringir a pesquisa a um grupo específico possibilitaria o entendimento das relações hierárquicas dentro dos clãs dos narradores por meio das publicações. No entanto, os interlocutores não se limitam apenas aos narradores da coleção. Além dos próprios Desana, vários kumua de outros grupos tukano foram contatados, embora não se tenha realizado um trabalho sistemático com eles.