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A urbe, a intelligentsia higiênica e a saúde pública

Mapa 3. Mapa geográfico do Paraná em 1951

2.2 A urbe, a intelligentsia higiênica e a saúde pública

As estruturas criadas para a gestão do Estado do Paraná e, consequentemente, da Educação e da Saúde Pública, estiveram diretamente relacionadas às ações de seus governantes. As sucessivas reestruturações na gestão da Saúde no Brasil nas décadas de 1920 até o final dos anos 40 tiveram reflexos diretos na organização no Paraná. As reestruturações foram motivadas por fortes impulsos. Trata-se de impulsos que partiram, de um lado, da estrutura da história da saúde pública produzida por intelectuais e instituições com as teses fundamentais que institucionalizaram os princípios do eugenismo, do nacionalismo e do sanitarismo, criando perfis de atendimento social bastante típico. Por outro lado, vinham impulsos de um movimento externo, forçado pela determinação dos gestores políticos. Estruturas de distribuição de assistência percorreram um caminho típico, como se andassem atrás das ações da economia. Nesse caminho, os primeiros Dispensários apareceram com os portos. O Porto de Paranaguá foi o primeiro a distribuir assistência aos viajantes e aos imigrantes em uma época em que as doenças chegavam de navio (ELIAS, C. 1932). Só posteriormente a capital do Estado recebeu a modernidade médica; depois o norte e, por último, o oeste do Estado.

O discurso sobre a higiene da sociedade foi produzido por muitos indivíduos e por muitas instituições. Ambos os casos envolviam a Faculdade de Medicina do Paraná, que esteve fomentando a formação e oferecendo a reprodução do quadro de médicos, de engenheiros, de dentistas e de obstetras desde a sua fundação no começo do século até o final da década de 1940. Nela estiveram sanitaristas e engenheiros que planejaram a modernidade da capital e do interior, fosse como alunos, fosse como mestres. Foram também esses intelectuais que organizaram a enfermagem como quadro fundamental da saúde pública e, nela, os papéis diferenciados assumidos pela visitadora sanitária. Esses papéis das visitadoras foram se modificando em conformidade com os papéis da saúde pública propostos pelos governos. Foram se modificando também em função da necessidade de

expandir as práticas de saúde – seja na capital ou no interior, se nas comissões itinerantes ou nos centros de saúde ou nos distritos. Também primeiramente esses papéis foram desenvolvidos nos dispensários ou centros de saúde da capital; depois nos portos e, por último, nos sertões.

Essas expansões da saúde tinham muito de “práticas modernas”. Como afirmou George Rosen, a proteção da comunidade passou a fazer parte das ações dos governos modernos, protegendo-a contra doenças transmissíveis, realizando o saneamento do ambiente – ao longo dessas linhas originárias do movimento de reforma sanitária e da bacteriologia – e que produziu efeitos higiênicos positivos, resultando no declínio da taxa de mortalidade na primeira década do século XX. (ROSEN, 1994, p. 253).

Embora George Rosen não esteja se referindo ao contexto brasileiro, pauta, no entanto, o surgimento de práticas de saúde pública a partir de uma determinada evolução das relações produtivas e tecnológicas por que a França e a Inglaterra estavam passando e teve dois reflexos importantes no Brasil. O primeiro foi o de envolvimento dos governos, como acima pautado. O outro foi o de favorecer uma racionalidade interna para o próprio discurso médico. Aglomerado urbano, êxodo rural, condições subumanas de moradia, de alimentação, de escolaridade, de higiene, dentre outras situações desfavoráveis, foram apontadas como motivadoras de ações assistenciais. Esse mesmo ambiente, segundo o autor, propiciou o surgimento de profissionais voltados aos quadros assistenciais, como médicos sanitaristas, engenheiros, enfermeiras e as visitadoras. Nesse aspecto, registrou o autor:

Novas situações, no entanto, ampliaram os horizontes dos sanitaristas e dirigiram sua atenção para novas tarefas. Alguns, mais críticos, não ficaram inteiramente satisfeitos com o que viram. Viram, por exemplo, que o saneamento de áreas urbanas tinha pouca utilidade diante dos problemas do bem-estar de mães e crianças, da tuberculose, ou de uma série de outras dificuldades das classes mais pobres. Na passagem do século, essa consciência se alargou ao menos nos Estados Unidos e em países da Europa ocidental. Esse processo se deu em um mundo de industrialização crescente e de expansão das comunidades urbanas. (ROSEN, 1994, p. 253).

O Brasil fará uso das experiências norte-americanas nessa investida da saúde pública destacada por Rosen. Aqui o grande crescimento populacional e a ausência de estruturas de assistência à saúde e à educação – de uma cultura de atenção à população, enfim – foi terreno fértil para o desenvolvimento das teses do

sanitarismo. Não bastasse esse quadro negativo que florescia na urbe paranaense, os sertões se aglutinavam também nessa negatividade. No quadrilátero dos rios, na imensidão do hinterland, afirmava-se o predomínio de pestilências de forma que impediam um sadio desenvolvimento (ELIAS, 1932).

Também o biotipo humano enfrentava, na lente da medicina, o grande desafio do meio insalubre das matas, do campo e do clima para promoverem desenvolvimento. Fosse pelas iniciativas privadas ou públicas, os assentamentos nos vazios do sertão enfrentavam mais essa dificuldade. Embora toda a expressão positiva de Euclides da Cunha em defender a tese do sertanejo forte, porque justamente forjado pelo meio, prevaleceu a tese da necessidade do branqueamento. Talvez essa necessidade fosse enfatizada pela rapidez com que sanitaristas e políticos desejavam a integração e o desenvolvimento econômico da sociedade paranaense, uma vez que o discurso da eugenia falava em séculos para a “amalgamia completa do homem regional” (CARNEIRO, 1930; MARTINS, 1889).

Os discursos médicos promoveriam um confronto com esses quadros. As políticas de atendimento aos pobres, às crianças, às mães solteiras, às prostitutas e aos desocupados passaram pela lente do saber médico e das instituições. Paralelamente a essa política, o combate à “[...] ignorância, às crendices, à falta de informação” seguia uma missão de formação moral e técnica – entenda-se “higiênica” –, formação essa disseminada para a população através de meios como a propaganda radiofônica, a impressa escrita e a panfletagem. Essa também foi a missão de sociedades de senhoras de caridade, que muito atuaram na urbe curitibana nesse período. Nenhum outro espaço se demonstrou, porém, tão focado para a propaganda e formação da educação higiênica como a escola. A vida do escolar e do mestre, bem como a sua estrutura física, isso se iniciando na construção do prédio escolar até o espaço entre carteiras, a entrada e o posicionamento em relação ao sol, da latrina, sofreu uma organização muito esquemática de adequação sanitária.

No Estado do Paraná, o período estudado foi demarcado por um forte crescimento populacional, sendo este indicado em várias instâncias da vida urbana, como no escolar. No interior paranaense, da mesma forma houve crescimento, sendo mensurado através das políticas de assentamento e mesmo das de saúde pública, quando na ocasião do atendimento nos Distritos Sanitários.

Este quadro foi descrito como “tempos de crises e de modernização”. Embora polissêmico, o termo “modernização” serviu para consubstanciar o discurso sanitarista, aproximando o significado dos termos “moderno” e “higiênico”. Como afirmou Lilia Mori Schwarcz (1988, p. 491):

Em momentos como esse uma imperiosa necessidade de reorganização de idéias se impõe, seja para compreender melhor o que aconteceu, seja para se poder planejar o futuro, que se anuncia perceptível e inevitavelmente como novo. Tempos de crise são, assim, tempos de modernização [...].

E foi justamente na reorganização de ideias que o movimento sanitarista encontrou o clima propício. Conforme acentuou Nicolau Sevcenko (1998, p. 7), os séculos XIX e XX, no Brasil, constituem um período de confronto no qual um fluxo de transformações atingiu vários níveis das relações sociais. Transformações como mudanças estruturais da economia, mas também dos pequenos acontecimentos do cotidiano, alteraram a percepção de tempo e espaço. Essas percepções confrontaram com práticas cotidianas de intervenção política, fosse regulamentando a produção fabril ou modificando a paisagem urbana mediante a destruição de moradias tidas como “cortiços” para edificações modernas, iniciativas decorrentes da pena do escritor Georges Eugéne Haussmann, em Paris. Consecutivamente, no Brasil, os higienistas espelharam-se nas iniciativas da engenharia francesa para também “corrigir”, conceber e direcionar o crescimento urbano.

A modernidade debatia-se com a questão da cultura, mas defendia-se que cultura poderia ser elementos costumeiros degradantes ou elementos sinergéticos, construtores. Enquanto engenharia do saber, cultura era uma produção de costumes que os intelectuais pretendiam consolidar em forma de estrutura científica e política, estando eles inseridos nela e fazendo parte da criação. Os artigos de jornais e outros textos indicam esse rumo: a modernidade. São visões de grupos sociais que consomem representações diversas diante da realidade existencial. Como afirmou Bazcko (1997, p. 35), trata-se de uma combinação de múltiplas representações, às vezes contraditórias, informando e mobilizando a imaginação de forma mais ampla. Segundo esse autor, “[...] os territórios do imaginário envolvem um amplo conjunto de valores, crenças, idéias e comportamentos, reconhecidos e compartilhados de modo difuso, mas duradouro”. Bazcko (1997, p. 35). O imaginário da modernidade é isso: uma comunidade de sentidos.

Ao lado de salubridade e da higiene, esteve um outro discurso mediatizado com um conceito que terá muitos desdobramentos nas representações e nas práticas políticas; “revolução”. Este será um outro termo polissêmico que, ao lado de moderno e sanitário, irá figurar no imaginário de autoridades, cientistas, enfermeiros e professores, fomentando as suas práticas sempre no sentido de horizontalizar a cultura e a educação higiênica. Falar-se-á de revolução social, de revolução política, de revolução educacional, de revolução industrial e de revolução científica e tecnológica. A modernidade trará um repertório de palavras, dentre as quais o termo revolução galgará ares de fidalguia, circulando por entre a determinação estatal, mas também por entre as atitudes do mestre em sala de aula, nas ações do inspetor médico ou do inspetor escolar e da visitadora sanitária ou professora. O termo estará lá. Será uma forma eficiente de organizar o combate contra o insalubre e promover o saneamento. Forma-se, então, um mesmo discurso, em que formação e higiene têm sentidos alargados. O “abandono” do termo “prática” querendo representar a cauidadora de saúde pela adoção de “visitadora sanitária” reveste-se dessa representação de modernidade da saúde pública veiculada pelo Departamento Nacional, pela Fundação Rockfeller e por toda uma intelligentsia médica que tinha na especificidade de seu discurso um fundamento de cientificidade do saber.