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O papel social da educação sanitária no Paraná

Mapa 3. Mapa geográfico do Paraná em 1951

2.4 Educação e higidade do escolar paranaense: impossível colher sem

2.4.1 O papel social da educação sanitária no Paraná

Inspetoria Geral de Ensino tinha como órgão oficial a Revista O Ensino. Um artigo divulgado em 1922, “para todas a escolas do Estado”, pretendia ser um manual de controle das atividades de higiene que os escolares do Paraná deveriam adotar. O manual tinha também a pretenção de ser um instrumento policialesco (ROCHA, 2005), porque estaria na mão do mestre e este, com poder de polícia, poderia fazer uso para disseminar a disciplina higiênica escolar. Ipsis literis, o artigo dizia:

a) Asseio do corpo e do vestuario, são condições essenciaes para conservar a saude.

b) Banhos diarios no verão, cada dois dias no inverno, tonificam o corpo. c) Cabellos curtos nos meninos, aparados nas meninas, concorrem para a hygiene da cabeça.

d) Dentes limpos diariamente pela escovagem e conservados pelo tratamento, constitui dever.

e) Escabiose ou sarna é molestia contagiosa, que produz comichão e feridas; trata-se com pomada de Helmerick e banhos diarios.

f) Fato modesto não desdoira ninguem, mas sujo ou rasgado denota relaxamento condemnavel.

g) Graves molestias podem resultar de falta de asseio e da pratica de medidas hygienicas.

h) Habitua-vos a deitar e levantar cedo, comer e trabalhar a horas certas. i) Irritações e molestias da pelle são produzidas quasi sempre por falta de asseio.

j) Jogos e exercicios racionaes, praticados com moderação, estimulam as funcções organicas, beneficiando a saude.

l) Lede sempre com boa luz, vinda do lado esquerdo e detraz, á distancia de 20 a 30 centimetros.

m) Moléstias não faltam no meio escolar como em todas as aglomerações: é preciso evital-as.

n) Não andeis descalços, pois o calçado protege os pés contra os ferimentos e as infecções.

o) Olhos e ouvidos são orgãos preciosos, que merecem especial cuidado e tratamento, quando doentes.

p) Pediculose (molestia dos piolhos) evita-se com asseio e cabellos curtos; trata-se com pomada mercurial, ou mistura de azeite e kerozene (partes iguaes).

q) Querer é poder! – diz o provebio: só não se cuidam os que não querem. r) Raspar a cabeça é o melhor remedio para acabar depressa com piolhos e lêndeas.

s) Saúde é o bem mais precioso que existe, mas só o goza quem o merece pelo esforço que emprega para conservar os órgãos perfeitos pelo asseio e pela hygiene.

t) Ter sempre o corpo direito, as mãos limpas, os pés asseados e calçados é elegante e saudavel.

u) Urge tratar-vos ao menor incommodo pois é mais fácil e economico combater, o mál em começo do que quando não tem, ás vezes, mais remédio.

v) Velai por vossa saude como se fosse e como é de facto um inestimavel thesouro sem o qual não existe a felicidade.

z) Zeloso é todo aquelle que se trata e se respeita, como aquelle que só faz aos outros o que deseja que lhe façam. (O A. B. C. da Hygiene Escolar. O Ensino, 1922)

O título das recomendações já dizia o seu sentido: A, B, C. Com as letras do alfabeto (em que alfa ou A indicava a partir de onde tudo começava e em que o ômega ou Z indicava o ponto de chegada) se pretendia atingir a situação de um sujeito hígido, cônscio, disciplinado. Esse sujeito era o aluno, mas também o professor.

A Revista O Ensino era o órgao oficial da Inspetoria. Circulava nao só no interior do sistema administrativo, como também, e sobretudo, nas escolas. Seu objetivo era atingir o campo dos mestres. Na “educação higiênica”, esse instrumento se cruza com outros do saber médico o tempo todo, sobrepondo-se a um e outro e criando ambientes novos bem como subsidiando o próprio papel da visitadora escolar. Esse sentido também pode ser extraído das regras publicadas pela Inspetoria: alfabetização sanitária também significou o congrassamento de esforços e de áreas do conhecimento distintas focando um mesmo objetivo: o ser hígido nacional. Esse congrassamento novamente conduzia às salas da Universidade do Paraná, mediante os Cursos de Medicina, de Engenharia, de Odontologia e de Obstetrícia, e também mediante as revistas médicas, os jornais, a Rádio PRB2, a Rádo Club do Paraná e os engenheiros e sanitaristas do serviço de profilaxia do Estado. Educar ia além das ações escolares.

A qualificação dos profissionais da educação já havia sido iniciada no ano de 1920. A informação é veiculada pela Revista Archivos afirmando haver sido realizado, em setembro de 1920, um curso de higiene para professores do Estado.

A Chefia do Serviço se propôs a realizar um curso de hygiene para os professores públicos do Paraná a fim de prepará-los não só a orientar a educação

de seus discípulos, como também para formar no professorado um grupo de propagandistas da moderna hygiene pública:

[...] com o esforço do Dr. Souza Araújo os professores da capital paranaense tiveram um Curso Elementar de Hygiene, de setembro a novembro de 1920, onde lhes foram ministrados os mais completos e modernos ensinamentos de que poderiam precisar na vida prática. (REVISTA ARCHIVOS PARANAENSES DE MEDICINA, 1921, p. 373ss.)

O texto rememora os objetivos do higienismo: educação, formação técnica e cidadania. Esses saberes sendo modernos e completos, faziam do professorado um “grupo de propagandistas”. Esse empenho do governo estadual em qualificar e especializar o professorado paranaense em sintonia com o sanitarismo foi um dos grande motivos da contratação de César Prieto Martinez. Segundo Ratacheschi (1953, p. 20-21), a história da educação no Paraná passou por uma reestruturação significativa e que perdurou por muito tempo, fundamentada na educação como princípio de civilidade.

Quase imediatamente após essa iniciativa foi criado o Serviço de Inspeção Médica Escolar em 1921. Funcionava anexo à Inspetoria Geral de Educação, tendo como função principal sua atuação na “análise das doenças dos escolares e a formação dos professores”, tudo com base na crença de que, pelo crivo da educação e da saúde, se produziria um sujeito higienizado.

Em 1921, Prieto Martinez assumiu a Inspetoria Geral de Educação até 192523. Nesse período, a racionalidade técnica e a científica enraizaram formas de tratamento e de aproximação da educação com a higiene. Foram, nesse período, reelaborados os currículos e os programas de ensino, a função e a formação docente, bem como a atuação de técnicos produtores da racionalidade higiênica, como a visitadora escolar e, posteriormente, a enfermeira de saúde pública.

No relatório de governo, ainda do ano de 1921, foi informado que Martinez:

[...] organiza uma inspeção vitalizada que, tendo ele mesmo à frente, bate o próprio sertão paranaense em seus confins; organiza cursos para o magistério; publica uma revista pedagógica; institui prêmios aos professores

23 Em 1925, o Dr. Lysimaco Ferreira da Costa assume a Inspetoria Geral, acumulando essa função

com a de diretor do Ginásio Paranaense e da Escola Normal até 1928, quando foi exonerado. De acordo com a Lei nº 2501, de 25/2/1928, a Inspetoria passa à Diretoria Geral do Ensino e passa a ser dirigida por Hostilo Cesar de Souza Araujo (1928 a 1930), Benjamim Batista Lins de Albuquerque (1930-31), Antonio Jorge Machado de Lima (1931) e Otávio da Silveira (1932-34). Preceituada pela Lei nº 40, de 8/11/1935, a Diretoria passa a ser dirigida por Gaspar Duarte Veloso (1934-38) e Hostilo Cesar de Souza Araujo (1938-43).

pelo seu rendimento; organiza um serviço de distribuição gratuita de material escolar para todos os alunos das escolas públicas; faz atender à saúde do escolar; estimula a educação física; proclama a importância das histórias, dos contos, na vida das classes; estimula a realização de festas escolares; faz publicações destinadas à educação geral do magistério; estimula, amplia, influencia em toda parte. (PARANÁ, 1921, p. 14-15).

No discurso oficial, a realidade estava próxima do ideal visibilizado, enfim, pela organização técnica e profissional do ensino público. É a transformação da sociedade através da ação da educação evidenciando a saúde, o aumento da produção e o engrandecimento da nação, pois além da "disciplina do corpo", as "ações de escolaridade desbravavam o sertão". É esse o teor manifestado nas palavras de Martinez ao Secretário Geral do Estado, ao relatar os primeiros meses de trabalho à frente da Inspetoria, em 1921:

Sem moral não há sentimento humano, não há solidariedade humana, não há Pátria, pois é dessa communhão de idéias sans que fazem a felicidade collectiva que os povos se formam para viver, falando a mesma língua, seguindo os mesmos costumes, obedecendo a mesma tradição, trabalhando o mesmo solo, formando, em summa, a mesma nação, inspiradas na mesma religião. Nada disso é possível sem o trabalho da escola, do mesmo modo que é impossível colher sem semear. O povo ignorante é como o cego que tactea. Está sujeito a ser guiado por mão estranha. Será, portanto, escravo submisso sem esperança na redempção [...]. (MARTINEZ, 1921, p. 66).

A escola foi proposta como elo da nacionalidade e essa caracterização é muito conveniente ao Estado diante da sua miscelânea racial, da concentração urbana e da ocupação estrangeira no hinterland. Muito mais que formar, a escola precisava nacionalizar, unir e construir uma unidade cultural. Foi nesse sentido que a “profissionalização” justificou a continuidade da formção docente em Hygiene Elementar por parte da Inspetoria Geral do Ensino, como relatado pelo seu Diretor:

Prosseguiu com toda regularidade durante o mez de Outubro, o Curso de Hygiene Elementar creado pelo Serviço de Prophylaxia Rural no Paraná, por solicitação do Sr. Inspetor Geral do Ensino, Profº Cezar Pietro Martinez. Esse curso é destinado aos Profº Públicos do Estado e consta de parte teórica e prática, sendo aquella dada em conferências públicas no Gymnasio Paranaense e estas no laboratório Bacteriológico do Serviço de Prophylaxia. (O ENSINO, 1921, p. 6).

Professores e escolares precisavam inculcar hábitos saudáveis. No mesmo texto de 1921, continua Martinez: “Não nos esqueçamos de que a escola é, antes de tudo, uma casa de educação e como tal temos direito de educar, isto é, de corrigir

tendências e hábitos e de encaminhar novas tendências e formar novos hábitos”. (MARTINEZ, 1921, p. 66).

Há aqui um elemento novo e importante: o jurídico. Quando apela ao direito, falando a partir do Estado, lembra os elementos disciplinares dos corpos, criadores da docilidade e afeição, dos quais muito falou Heloisa Helena Pimenta Rocha (2005). Esse aspecto também é lembrado por Stephanou, ao considerar que a medicina propunha habilidades para tratar de diversas áreas, desde aspectos elementares da vida diária, passando pelas condições higiênicas das habitações, condições sanitárias dos espaços urbanos, “[...] rigidez das instituições sociais, sanidade das organizações econômicas, até o aparato jurídico penal das sociedades”. (STEPHANOU, 1999, p. 111).

Ter direito de educar significa o mesmo que ter direito de corrigir, sendo esse o poder coativo que se empregou pelo exercício da educação como construção nacional. Beirando os caminhos do eugenismo, no Relatório do ano seguinte, 1922, afirmou-se:

Pelo nosso caboclo, pela sua redempção, que é a nossa própria independência, - a hygiene e a escola dêm tudo quanto podem dar, amparados pelos poderes da União e dos Estados, protegidas pelos governos das pequenas circunscripções, - os municípios – e tendo a frente, para o combate em campo aberto, o médico e o professor, num perfeito apostolado. (MARTINEZ, 1923, p. 66).

João de Barros Barreto, à frente dos serviços da saúde, também se dedicou a publicar artigos demonstrando o trânsito da saúde por entre a seara da educação e higiene, para atingir tal apostolado. Nas páginas dos Archivos Paranaenses, na propalada Secção de Educação Hygiene, escreveu uma série de artigos nos quais vinculava educação, educadores e higiene. Em Da necessidade do ensino de hygiene nas escolas, Barreto recomendava que os professores produzissem orientações práticas aprendidas a partir das escolas e Grupos Escolares do Estado, porque “são os professores que conhecem a realidade do escolar, especialmente os do interior”. Sugeria à Inspetoria Geral de Educação que recolhesse tais experiências, que as formulasse em forma de texto e distribuísse através do seu órgão oficial, a revista O Ensino. Essa metodologia adotaria “diretrizes para compreensão dos hábitos do escolar e do conhecimento de seus mestres”. O médico sugere ao mestre (ao Inspetor de ensino) que os práticos criam saberes. Invertendo o raciocínio, poderíamos afirmar que os saberes são criados na prática,

lá onde o cotidiano realmente se faz. Barretos tem essa percepção possivelmente a partir das práticas de saúde emanadas da experiência de uma visão extraprofissional. O saber das cuidadoras de saúde, de parteiras, benzedeiras e todo o aparato de curar desses atores o fazem “migrar” observações fundadoras da medicina para a educação.

O período de atuação de Pietro Martinez à frente da educação pública no Estado foi marcado por atitudes de formação professoral e de extensão da educação escolar, tendo a higidez como linha de frente. Esse ritmo foi quebrado por algumas alternâncias no controle da política estadual.