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Mapa 3. Mapa geográfico do Paraná em 1951

1.9 Os sertanejos e interiorização da saúde

1.9.2 O caboclo nortenho

O norte do Estado também passou por esse mesmo crivo. Ainda mapeando os sertões, agora para o norte do Estado, o relatório de setembro de 1922 fez breve descrição do Distrito de São Jerônimo da Serra. O município dista 345 km da capital do Estado, caricaturado por Barros Barreto como “talvez o mais penoso, pela sua situação em pleno sertão do Paraná”, justamente pela sua localização. Foi divido em 8 Zonas de “A” a “H”. Nesse relatório transmite a Belisario a cultura local do povo, bem como fotos das instalações, também inauguradas no ano de 1921.

Esse distrito era dirigido pelo inspetor Dr. Gumercindo Otero, com o apoio de um só guarda sanitário e de uma visitadora. Barros Barreto afirma que, “ao lado dos números, os hábitos e costumes da gente de São Jeronymo [...] merecem transcrição trechos de um excellente relatório do Dr. Gumercindo Otero”. Segue o longo trecho:

[...] distante dos meios fáceis de locomoção, usam ainda o carro de boi, com sua toada plangente e monótona, ao passo lento, trilhando estradas sem fim, vermelhas de pó, margeadas por campinas e mattas muito verdes. E assim andam 60, 100 légoas e mais. Também há a carroça puxada por bois ou burros, todos elles com opolaque ou campanhinha e assim seguem aos seus destinos, debaixo do ressoar ensurdecedor do chocalho, não tirando em nada a poesia bucólica destes logares.

Vem depois a tropa formada por lotes de burros que, nas cangalhas, supportam as cargas, na maior parte das vezes constituídas por fumo, arroz, feijão, matte, farinhas. Finalmente, o transporte moroso e perigoso feito pelo rio Tybagi em canoas, demandando os sertões maleiteiros de Matto Grosso, passando pelos rios Paranapanema e Paraná. Viagem de trinta dias penosa e arriscada – e de preferência fazem-na na seca.

A alimentação é um dos “costumes” que mais chama a atenção:

A sua alimentação é pouca variada e, ás vezes, quasi nada nutritiva. As verduras pouco existem por cá, alguns nabos e cenouras, pouco repolho, raros alfaces e muita couve. Na classe pobre, classe essa que constitue a maioria, a sua comida é deficientissima; quando há o feijão, o arroz não apparece, sendo este substituído pela quirera, prato indígena feito com milho, sal e água quente. A carne é para os dias de grande festa e não está ao alcance de todos os seus habitantes, o seu preço exhorbitante, quer seja ella de gado vacum ou suíno. Nas zonas marginaes do Tibagy (o rio) há bom peixe e ótima caça. Tomadores antigos e viciados de erva matte, café, fumam desde creança e bebem a pinga sem abusar.

E para lembrar que nos sertões a raça precisa ser forte e a eugenia talvez fosse posta à prova, narra:

Tem a verdadeira noção de família. O lar é sagrado para elles. A moralidade é absoluta. Os filhos acatam e respeitam os seus progenitores. Os casamentos são feitos de comum accordo entre os paes dos nubentes, acontecendo muitas vezes elles não se conhecerem. Debaixo dos costumes austeros e moraes são educadas as moças, que na totalidade são boas esposas, bôas mães e optimas filhas.

Eram crédulos, mas ignorantes:

As suas festas, na maioria, são para solemnisar os dias santificados e elles o fazem com a maior pompa e respeito. Por ocasião das seccas que ameaçam suas roças, saem em procisao a fim de que os santos lhes dêem chuvas para as plantações vingarem.

São extraordinariamente religiosos e credulos de uma superstição enorme e espalhada. Curadores, fazedores de mandingas aproveitam-se dessa credulidade e ignorância para os explorarem, creando ao redor de si lendas phantasticas, fama de santos, adquirindo um prestigio extraordinário, capaz, muitas vezes, em poucas horas, de um levante de homens abnegados, promptos a todos os sacrifícios. Pouco felizes são estes indivíduos no seu métier. As desillusões das suas panacéias, elles as tem a cada momento: os casos fataes com suas medicações, se produzem em cada doente.

E eram bizarros ou tinham mau gosto:

Veste-se mal o povo da roça. Affrontam o frio, o calor e a chuva com roupa de um feitio leve e fino. Gostam muito as mulher, de cores berrantes, muitas fitas, que lhes dão um aspecto interessante ás reuniões e acompanhamentos religiosos. São muito amantes das danças, praticando- as ao som da viola ou da gaita. Catiras, sambas, batuques e bailes são as denominações de suas reuniões dançantes. (ARCHIVOS... 192, p. 479).

As descrições feitas pelos médicos fazem referências a toda uma gama de representações sobre a cultura do homem rural. Ora para enaltecer valores da pessoa, ora para ressaltar seus pontos fracos, alvos de toda a ação de higienização.

Os alimentos, as vestimentas e as crenças foram os centros da disciplinarização dos costumes (ROCHA, 2005), como acima descritos.

Mapa 2. Mapa Geográfico do Estado do Paraná - 1940 Fonte: Secretaria de Estado do Meio Ambiente

Mapa 3. Mapa geográfico do Paraná em 1951 Fonte: Secretaria de Estado do Meio Ambiente

2.1 Introdução

Nos anos de 1920, dois termos passaram a ser utilizados com frequência, tanto no discurso político, como no médico: salubridade e higiene (ou higienismo). O sentido desses termos era intercambiável e estava entre o político, o médico e o educacional, sempre dilatando o seu significado conforme as apropriações do campo social e essas áreas em específico. A escolaridade, a saúde pública, a imigração e a migração, o meio, os edifícios e a urbe foram lugares em que esses discursos do salubre e do higiênico se adornaram em formas que desejam o controle social. Políticas públicas, instituições, estratégias de ação, códigos ou leis, métodos de ensino. Nesses lugares, as estratégias discursivas foram tornadas produtos cuja finalidade era a ordenação do espaço e dos corpos e gerir tomando esses produtos como pressupostos de racionalidades. O aparelhamento do Estado, tanto em educação quanto em saúde pública, através de criação de suas instituições abaixo descritas, teve como pressuposto essas racionalidades.

Definiu-se a salubridade como a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível aos indivíduos. Como se fossem dois personagens, foram colocadas em diálogo a salubridade e a higiene. Um ambiente salubre devia, nesse diálogo, ser disposto conforme as regras racionais adornadas por esses pressupostos. É no jogo dessas regras que os princípios de higiene pública – técnica de controle e de modificação dos elementos materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, de prejudicar a saúde, segundo Foucault (1996a, p. 93) – aparecem. Não se trata de formas mágicas controladas pela determinação do criador, mas de regras simbólicas que sustentam sujeitos e grupos sociais de interesses bem específicos. Dessa forma, tornar salubre é criar condições propícias a uma correta “aplicação das coisas”, no dizer do médico Chafic Elias (ELIAS, 1949). Por essa razão, salubridade vem logo acompanhada ou associada a uma outra condição pertinente ao indivíduo: a sanidade.

No Estado do Paraná, as ações políticas e médicas preocupavam-se com a sanidade do indivíduo e também do meio. A cidade e, dentre um quadro de restrições já apontadas, também o hinterland, eram alvos de ações de profilaxia. O

controle das doenças infectocontagiosas, a reprodução humana, a vida infantil e as endemias recebiam colaborações das três esferas de governo (federal, estadual e municipal) para a sua promoção. A higienização da sociedade seguia o ritmo das regulamentações, da estruturação burocrática do aparelho estatal, da viabilidade jurídica dessas intervenções e da qualificação dos recursos humanos. Essa higienização fazia o embelezamento de seu espaço e a erradicação das epidemias (SEGAWA, 1999, p. 18-21). É ela que adorna os sentidos das ações políticas e profissionais para que o salubre tomasse forma.

A sanidade do meio produziu técnicas de isolamento como forma salutar de criação/manutenção dos espaços e dos corpos. As ações sociais, ou a medicina social, admitiam que, ao intervir no meio físico e afastar do centro urbano a população potencialmente perigosa, o poder público realizaria uma primeira etapa do isolamento. Nas situações em que o isolamento não se aplicava ao indivíduo e sim ao espaço, a salubridade o enfrentava com o discurso da engenharia: drenar, remodelar uma edificação, conceber os espaços públicos e de circulação em conformidade com a posição da luz, do sol, codificar as regras de edificações na urbe, dentre outros. Esses procedimentos tinham como sustentação a ciência higienista, que definia novos parâmetros urbanos e, consequentemente, novos hábitos de vida.

É nessa mesma metáfora dos controles – por entre os discursos e sua institucionalização – que a cuidadora de saúde (ou visitadora, como será nomeada posteriormente) chama a atenção da escala racionalizadora da saúde pública. Portadora de saberes práticos e da confiança da comunidade, recebe dessa mesma sociedade uma espécie de livre trânsito por entre aqueles que são, justamente, o alvo das ações políticas. Ela foi “acolhida pelo sistema” sem nenhuma entrada ruidosa: normalmente um profissional médico solicita seus préstimos, a escola a reconhece também, nos Distritos Sanitários elas comandam a vacinação, a coleta de material de exame, a bioestatística e a visita domiciliar e, alcunhada pelos próprios chefes de Distritos, de “enfermeira”. Devido, justamente, a esse seu papel social, foi nominada pelo sistema oficial de “prática de saúde”.

Mesmo assim esse status de “práticas” incomoda a visão sistêmica. No quadro de profissionais, os saberes costumeiros eram crendices, defeitos do caráter, disse a psicologia de David Carneiro. Era preciso domar esse corpo, torná-lo normatizado. Não se tratava de extrair seu saber, mas conseguir sua sujeição.

Treinar pessoas e transformá-las em visitadoras significou exatamente isso: habilitar e tornar hábil. Isso a colocaria no interior de uma engenharia do saber, no interior de uma hierarquia, no corpus de uma instituição e no interior de um dever fazer que partia de uma política pública como função do Estado e repercutiria na sua rotina no interior de uma das várias instâncias cuidadoras da saúde da população.

Procedimentos como esses, com bases racionais e cientificas, foram expandidos para vários setores da vida social. O objetivo da medicina social era realizar o controle integral da população através de espaços públicos e privados e com auxílio de áreas de conhecimento específicas. Essa perspectiva parece ser a comunidade de sentidos que criou sustentabilidade à classe de homens de ciência, como dito pelo médico sanitarista e diretor de profilaxia Souza Araújo: “[...] os médicos e engenheiros constituem os principais elementos superiores dos serviços de saúde pública”. Logo em seguida, no mesmo texto, frase seguinte, como quem se dá conta de um lapso de memória, emenda:

[...] É óbvio, porém, que, tal qual num exército, não se compreende um efetivo composto apenas de oficiais, também na saúde pública, os funcionários técnicos graduados necessitam ser assistidos por auxiliares em número suficiente e com preparo adequado, constituído pelas enfermeiras de saúde pública, educadoras ou visitadoras sanitárias, técnicos de laboratório, inspetores ou guardas etc., para não falarmos no pessoal burocrático, não especializado, atributos de qualquer organização. (SOUZA; VIEIRA, 1936, p. 24).

O narrador falando, ele mesmo do alto escalão do exército metafórico que constrói, mesmo reconhecendo a necessidade de auxiliares suficientes – composto por enfermeiras, educadoras ou visitadoras, técnicos, inspetores, guardas, professores, delegados de ensino, inspetores escolar, médicos –, do alto da sua graduação de oficial afirma, sobre esses auxiliares: com devido preparo adequado. Efeitos da engenharia. Esse mesmo sistema oficial e as fontes das quais faço uso fazem uma confusão de nomenclatura dessa personagem da saúde porque, a partir da criação de cursos de qualificação realizados ou pelos técnicos do Departamento Nacional ou pelos médicos pertencentes aos quadros da Saúde do Estado, adotou- se para todas a denominação de visitadoras ou educadoras sanitárias.

Percebe-se que, mesmo desejando definir uma nomenclatura, permanece um dúbio sentido: educadora ou visitadora. Na dúvida, as fontes permitem perceber uma fusão desses dois papéis. A engenharia do saber, no entanto, desejava que essa

não fosse apenas uma “prática”, o que afirmaria crendices em contraposição à ciência.