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É interessante notar que todos os estágios da vida humana podem ser planejados de antemão, de alguma forma antecipados, preparando a pessoa para ocupar o papel e status que lhe cabem na sociedade, orientados por códigos culturalmente prescritos. Assim é com o nascimento, casamento/separação/divórcio, carreira profissional, entre outros. No caso da viuvez, não. Mesmo que haja previamente um conhecimento da doença ou um tempo de agonia, isto não parece diminuir o impacto da perda em algumas mulheres, visto que estas podem manter a esperança de que haja recuperação até que a morte se dê, isto é, a realidade da morte iminente não é entendida realmente pela mera percepção da gravidade da doença. Isto foi observado em pesquisas norte-americanas de base psicológica feitas por Roach & Kitson, citados por Lopata (1996: 75). Nesta perspectiva, a viuvez poderia ser considerada sempre como inesperada, embora, segundo aqueles autores, melhores serão as formas de recuperação de distúrbios psicológicos se a mulher já vinha desempenhando algumas atividades práticas, como retomada dos estudos, obtenção de emprego, aprendizado acerca de direitos legais, etc.

De qualquer maneira, a viuvez parece trazer em si uma marca de falta, de privação. Sempre experimentada como algo intempestivo, inopinado, desagregador. Segundo Britto da Motta (2002: 3), “[A viuvez] Representa uma súbita quebra do equilíbrio, real ou suposto, das relações de família e a urgência do estabelecimento de novos arranjos no grupo familial”. Não só. A vivência da ausência é permeada por sentimentos que vão desde revolta e desamparo inicial, como visto acima, até a aceitação “porque não tem outro jeito”, posteriormente. Dito assim, penso que, na viuvez feminina de camadas médias que pesquisei, a fase preliminar isolada no ritual funerário de hoje, se existe, seria extremamente curta; o mais provável, e é o que acredito, é que haja imbricação com a liminaridade, sendo constituinte desta. O próprio Van Gennep (1978: 126) já havia escrito

que a fase preliminar ou de separação, no rito funerário em geral, é curta, representada pela preparação do corpo para o funeral. Ora, como se viu, grande parte das mulheres estudadas não tiveram acesso a essa parte, por motivos já apontados, e, portanto, sua fase de separação vai se dar já na liminaridade. Assim, penso que na viuvez, especificamente, a fase de separação é a fase preliminar da liminaridade social em que a viúva é inserida.

É na observação de como é vivida a ausência do marido falecido que isso fica mais claro. Desde o “Eu nunca pensei!”, da maioria, até o “Eu fiquei com receio e me preparei muito!”, de uma viúva cujo marido tinha cardiopatia grave pregressa, todas passam por etapas de separação ou afastamento do morto, e gradual reinserção na coletividade, mas que nunca é igual ao antes. De qualquer forma, para quase todas, os primeiros meses foram de “muita tristeza, choro e sofrimento”, de uma “dor lá dentro”, de “um choro visceral! Choram todos os órgãos.”, de uma dor física, onde “eu pegava assim em mim, tudo meu DOÍA!”.

Esses primeiros tempos também remetem a exames de consciência, onde algumas descobriam alguma espécie de remorso ou arrependimento porque “devia ter abraçado mais, ter beijado mais”, “tanto que eu briguei pra ele tomar remédio, por causa dos regimes que ele num fazia... Eu devia ter deixado...”, “das vezes que deixei de tá cum ele pra tá naquele laboratório, de ter perdido horas [de estar] cum ele...”. Mas essa consulta interna também pode revelar um sentimento de que a “missão foi cumprida”, percebida tanto em Sandra quanto em Marúsia. Sandra diz que “NUM sinto culpa. Me sinto, assim, cum missão cumprida, em relação a ele. (...) Mas assim, depois, que ele morreu, eu sinto assim missão cumprida. Eu vejo a coisa ... como que tinha que ser”. Sensação similar está também na atitude de Marúsia, quando entregou os ossos do falecido aos irmãos, dizendo: “Ói, aqui. Tome! [Cumpri minha parte?] É.”

O descuido com a aparência física também fez parte da vivência da viuvez de algumas mulheres, pelo menos no início. Porque “eu num me sentia num estado de espírito de chegar no espelho, de passar um batom, me enfeitar.”; “eu num tinha mais... eu num usava um batom, num usava um brinco, num ligava pra mim.(...) Cansei de chegar na rua, na igreja, na loja cum roupa pelo avesso. Tanto fazia!”. Mas para outras não houve desleixo físico: “Continuei me pintando, usando meu batom, a maquiagem... nunca modificou, não”.

“Continuei usando bijuterias, jóias. Emagreci, fiquei nos meus sessenta quilos”. No caso de Marúsia, não houve mudança nenhuma, pois as que tiveram que ocorrer nela, foram mesmo na vida com o marido até se separarem – mais uma confirmação de que a viuvez é vivida conforme a experiência da união conjugal.

A esfera afetivo-sexual também se revela entre as pesquisadas. Das nove, sete não tiveram mais nenhum envolvimento sexual, o que não quer dizer que não sentiam falta de um companheiro. Mas aqui parece ser mais valorizado o amor platônico do que o erótico, a comunhão espiritual e de companheirismo do casal do que o aspecto sexual/genital. A falta verbalizada por algumas foi mais da companhia e do carinho, de não ter mais esse alguém com quem dividia os problemas, esse alguém que estava o tempo todo com a família, esse ombro para se apoiar. Outras sentem falta disso, e também de não ter mais ninguém para quem se arrumar, se enfeitar, namorar, ou de uma mão para segurar e que ajude a caminhar. No momento da entrevista, apenas uma admitia que estava com um relacionamento sexual, considerando uma coisa boa viver a sexualidade nessa “amizade colorida”, como ela própria nomeou.

No entanto, a questão de recasamento divide o grupo. Quando referem sentir falta do amor, é ao marido morto que algumas endereçam o pensamento e as comparações. Glenda atribui ao destino se voltar a se casar, porque “se depender de mim, eu num quero mais ninguém, não”. Wilma também fala que pode “até se casar, porque não sou contra o casamento, porque a experiência que eu tive de casamento foi a melhor possível. Só que precisa que apareça uma pessoa que eu me apaixone, e que a pessoa se apaixone, pra poder ver se vale a pena”.

Para Marisa a questão de não querer outro relacionamento afetivo-sexual passa pelo viés da fidelidade, pois “parece até uma traição”, e porque “não é fácil se adaptar a outra pessoa”. Atribui à sua idade a dificuldade de recomeçar uma união com outra pessoa, já que “eu não tenho mais tempo de construir com outra pessoa, não tenho mais tanto tempo”. Silene diz que nunca apareceu ninguém para casar novamente. Relata que, nos últimos anos, a contar da data da pesquisa, apareceu uma pessoa por quem se interessou, e que seria a única pessoa com quem teria coragem de refazer a vida. E explica: “eu só me aproximei dele porque ele foi uma pessoa de antes de A. [marido]; porque com um desconhecido seria

como se eu fosse traí-lo. Seria uma traição”. Aqui, é possível pensar se este sentimento de fidelidade não é, outra vez, um valor de camada média: o manter a ligação com marido para além da morte, herança burguesa da sociedade patriarcal. Já no caso de Evânia, ela espera entrar em novo casamento:

Porque eu:: eu sei que a gente pode ser feliz SOZINHA! (.5) Eu sei que a gente pode ser feliz sozinha. Agora, EU SOU QUEM NUM QUERO! (...) Faz falta um companheiro! (.hh) Tanto que, hoje, eu digo assim: ‘Meu Deus, eu queria um companheiro..’ – eu digo pra Deus: ‘Ó, Deus, eu queria uma pessoa assim. E o Senhor sabe que num é nem o lado:: SEXUAL. O Senhor sabe. É mais companheirismo, mesmo.’(...) Assim: os MEUS, que – que vivem comigo, os que estão mais próximos de mim, ninguém tá PREOCUPADO cum::: meu CORAÇÃO::: (.5) Se eu tô TRISTE, se eu tô ALEGRE, se eu sinto FALTA:::, sabe? E eu SINTO!:: Eu sinto falta! Eu sinto falta, num é agora do P. Eu sinto falta dum COMPANHEIRO. Eu – eu queria meu coração ACELERANDO! (.) Eu queria ME ARRUMAR! (.) Que quando eu tô APAIXONADA, eu fico BONITA! Eu sinto falta de amor, eu sinto falta de alguém me cheirar, de alguém me dar um carinho, de alguém me chamar pra tomar, PELO MENOS, um sorvete ali, sabe? (.2) Agora, num perco a esperança, não, que vai (.) chegar esse dia. Porque eu acho que (.) P. ((marido morto)) fez o papel dele; (.2) o tempo dele certo. (.20) Morreu na hora certa? NÃO! (.5) MAS MORREU! (.5) Mas MORREU! (.2) Eu aprendi que TEM QUE ENTERRAR O DEFUNTO! Num posso CARREGÁ-LO mais comigo! (.5) Num é?

Duas das mulheres enviuvadas não queriam tornar a casar, embora quisessem amar. Sandra já vivia um relacionamento na época da entrevista, como se disse. Mas não queria morar junto, ainda: “Não, não. Por enquanto, é viver esse namoro.” E Dolores disse que saiu com um homem uma vez, mas ficou com medo e preocupada em ser vista num barzinho, acompanhada: “o pessoal passa, vê eu conversando com esse homem... Onde é que eu estava com a cabeça quando aceitei?” Mas disse também que “gostei tanto daquele aperto de mão!” Agora, afirmou que “Casar eu num quero não. Queria uma pessoa assim, pra sair, pra conversar, pra me orientar.” Britto da Motta (2002: 270) encontrou uma recusa ao recasamento em freqüência elevada em viúvas por ela estudadas, diferentemente dos meus casos.

Finalmente, a vivência da viuvez vai tomando novos contornos. Torna-se quase consenso entre as entrevistadas a alegação de que os primeiros dois anos seriam os mais

difíceis de viver. Gradativamente, a dor vai modificando-se, entra-se na “de aceitação”. Marisa coloca isto tudo assim:

-O tempo ajuda muito a gente. Pra mim a dor não é a mesma. A dor hoje é mais vazia. Naquele momento, era mais contundente, agora ela é mais vazia (...) é você administrar o vazio. O vazio que fica. (...) Mas talvez seja mais doída, é como ferida que fica, não é?... Fica sem cicatrizar... Porque cicatrizado, mesmo que a gente veja a cicatriz, você não sente a dor. E sem cicatrizar ele, de vez em quando, você... quando dá uma batida nele... você sente que está ...

Todas essas emoções e sentimentos apontados na vivência da ausência do marido desaparecido, vão sendo trabalhadas, metamorfoseadas, canalizadas, e me parecem representar a elaboração do luto psíquico que, de uma forma ou de outra, todas as enlutadas estariam conseguindo realizar. Os sinais externos das dores internas podem ser visíveis ou não. De qualquer forma, entretanto, vejo que a maioria das informantes era bem coerente consigo mesma, e a mudança que se apresentava ao público era decorrente de uma mudança no âmbito pessoal. É o que exponho a seguir.