• Nenhum resultado encontrado

Das nove mulheres, duas estavam junto aos maridos quando ocorreu o falecimento, um se dando em casa, o outro no hospital. Para três delas, o evento aconteceu fora de suas vistas, enquanto aguardavam informações, nas dependências do hospital onde foram buscar atendimento. E as quatro outras ficaram sabendo por terceiros, quando o desfecho fatal já se tinha dado. Algumas daquelas cujos maridos foram assassinados, passaram também pela experiência de ter que esperar a liberação do corpo pelo Instituto Médico – Legal (IML) e/ou de prestar depoimento à polícia, imediatamente depois do óbito.

61 Pela convenção dada pela Medicina Legal, este prazo é superior ao que é definido para a morte súbita, como visto no

As primeiras sensações experimentadas, em sua maioria, são de irrealidade e de negação do fato :

-Eu num tô vivendo isso! (Dolores);

-Rezei, rezei, mas logo o cirurgião chegou pra dar a notícia, sabe? Mesmo assim, é como se não tivesse sendo comigo, como se fosse uma coisa com outra pessoa. Eu num acreditava que tava ouvindo aquilo, NÃO. Num era, aquilo num era comigo! (Diana);

-Aí, eu me apavorei. Foi horrível! Horrível! Né? Num acreditei. Achava que num era verdade, que num era, que tinha sido engano::: (Glenda);

-AI, MORTE::: FOI HORRÍVEL! (.2) A morte dele::: (...) Aí, minha reação na hora, qual foi? Foi ARRUMAR A CASA!... (...) ((chorando baixinho)) Durante a madrugada. (.10) (.hhh) Aí::, NUM ACORDEI minha sogra, num acordei NINGUÉM!::: Comecei ARRUMANDO A CASA! Mas, meu Deus! Que LOUCURA! ARRUMANDO A CASA! Como que diz assim: “O corpo vem pra casa, a casa tem que tá arrumada. (Silene);

de choque:

-Eu acho que o choque, mesmo sabendo que a qualquer momento isso podia acontecer [cardiopatia pré-existente]... Mas eu nunca me preparei pra isso. De tal sorte que, na hora que aconteceu, eu percebi que ele não... que ele – que ele tinha ido embora. Que não tinha mais muito o que fazer. Mas eu corri, eu simplesmente... (Marisa);

de pesadelo ou sonho:

-UM PESADELO! (.) Porque no – no começo logo, eu nem (.2), assim, eu num tive aquela dor, aquela tristeza muito grande, porque parecia que num – num tava acontecendo comigo aquilo ali. Parecia que (.) que aquilo era UM SONHO e que ia PASSAR! (Diana);

-Não, era uma coisa como se fosse MENTIRA! Entendeu? Era um comportamento como se AQUILO não fosse verdade, fosse um SONHO, e que eu ia me acordar a qualquer momento. (Silene);

de desespero:

-Com 10 minutos depois, eu sabia que ele tava MORTO. (.15) E foi aí que a minha vida começou a DESABAR, sabe? (Evânia).

Outras formas de reação imediata aparecem em algumas das mulheres entrevistadas. Para Wilma, o primeiro impulso foi proteger as filhas, numa demonstração clara do quanto estava impregnada do seu papel de “cuidadora”:

-Eu vim direto pra casa. Porque, aí eu fiquei pensando na reação, no problema das minhas filhas, né? (.hh) Todas três tavam em casa; só uma que tinha ido lá::, e A.((filha)), quando chegou lá, chegou assim, num desespero muito grande, e eu tive que cuidar dela. E corri pra casa, antes que os telefonemas começassem a chegar. E cuidar da minha sogra, cuidar da minha mãe, e – e ver todo esse pessoal.

Já Marúsia, separada há anos, recebeu a notícia pelos filhos, foi para a residência do ex-marido, e agilizou as primeiras providências. Diferentemente da reação de grande pesar que teve em relação à morte do noivo-companheiro, que foi assinalada em capítulo anterior, o lidar com o ex-marido morto é relatado com muita tranqüilidade e mesmo euforia:

-Aí, quando eu cheguei lá, eu acho que ele num tinha uma hora de morto. Aí, eu fui, peguei, limpei ele, mudei a roupa dele, vesti ele. (.5) Aí, assim... (...) AGORA, assim, (.) era uma coisa que eu realmente num tava sentindo a morte dele, sabe? Parecia uma coisa assim, uma pessoa estranha. (...) Fiquei tão feliz! Só num fiquei mais porque ele demorou muito. Devia ter morrido DEZ anos antes!

Aqui se insere uma outra reflexão62: até quando a mulher estaria vinculada ao marido pelo casamento. É interessante atentar para as definições que os dicionários dão à ação vincular: 1. prender com vínculo; 2. firmar a posse de; 3. impor obrigação; 4. sujeitar (grifos meus). Estariam esses enunciados subentendidos nos vínculos do matrimônio? É de se supor que sim, se se remete ao que foi visto sobre a instituição da família de modelo patriarcal, páginas atrás. No caso de Marúsia, embora a separação legal e afetiva já houvesse acontecido, pelo menos da parte dela, o vínculo parece ter sido mantido pelo social63 - até que a morte os separasse -, pois as atitudes dessa viúva parecem apontar para

isto: os filhos a chamaram, ela foi até o apartamento do ex-marido, apanhou o corpo do chão, limpou, trocou a roupa, chamou a funerária, ajudou a botar o corpo no caixão, levou para enterrar; depois de dois anos, tirou os ossos, botou numa caixa, e entregou aos irmãos dele: “Ói, aqui. Tome!” A sua “missão” de esposa havia terminado. Começaria a de viúva?

62 Assinalo isso apenas como reflexão porque não tenho mais dados com que comparar. Penso que é um outro ponto que

pode ser aprofundado em outras pesquisas, e é possível que surjam resultados interessantes.

De qualquer forma, as manifestações de pesar ou de indiferença pela perda de alguém podem ser decorrentes do que essa pessoa representou para outras, ou seja, o prestígio que ela teve ou não em vida na sua relação com os demais, seja pela afetividade que gerou no seio da família e das amizades, seja como celebridade no grupo social maior. Para Edgard Morin (1997: 32)

A dor provocada por uma morte só existe se a individualidade do morto estiver presente e reconhecida: quanto mais o morto for próximo, íntimo, familiar, amado ou respeitado, isto é, “único”, mais violenta é a dor; nenhuma ou quase nenhuma perturbação [tem lugar] se morre um ser anônimo, que não era “insubstituível” (grifos do autor).

Neste sentido, DaMatta (1997: 140) também se posiciona em termos semelhantes, pois aponta que na sociedade brasileira, enquanto sistema relacional, o tratamento dispensado aos mortos é intenso e a rede de relações sociais muito mobilizada por ocasião do óbito.

E assim, com a constatação da perda, instala-se a anomia, indesejada ou não (como em Marúsia). Se o indivíduo que morre era dessas pessoas “insubstituíveis” para as pessoas que ficaram, de que fala Morin, a vida nunca mais será a mesma. Para ninguém. Mas a sociedade conclama a reorganização do grupo, pois a vida não pode parar. Acionam-se rituais com a finalidade precípua de por ordem no caos que se instala. Parentes e amigos do morto e da agora viúva se mobilizam para efetivá-los, assumindo as providências que buscam restabelecer a ordem perdida e apreender uma nova realidade. É nessa perspectiva que relembro palavras de Mary Douglas (1991: 81):

O ritual permite, assim, concentrar a atenção, na medida em que fornece um quadro [de referência], estimula a memória e liga o presente a um passado pertinente. Facilita, deste modo, a percepção. Ou antes, transforma-a porque modifica os princípios de seleção. Não basta, pois, dizer que os ritos nos ajudam a viver com mais intensidade uma experiência que teríamos vivido de qualquer maneira. (...) O rito não só exterioriza a experiência, não só a ilumina, como a modifica pela própria maneira como a exprime.