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Já se falou neste trabalho, e outras pesquisas72 confirmam, da desorganização que acomete a vida em geral da mulher com o desaparecimento do companheiro, às vezes “de toda uma vida”. Resta verificar como a mulher se vê neste novo e muitas vezes indesejado papel ou, melhor dizendo, qual a própria percepção que ela tem do que é ser viúva. Como foi assinalado, nas suas narrativas vários sentimentos emergem, como medos, estranheza, perda de identidade, sensação de desvalia, sofrimento, desamparo, vergonha, desvalorização como pessoa, desânimo, entre outros. Essas características com que se descrevem, acredito, estão embasando as condições de estigmatização e liminaridade instaladas com a viuvez, que discuti no capítulo 2. Mas as falas dessas mulheres, mais uma vez, dão bem o peso do que elas viveram.

O medo aparece com diferentes roupagens. Seja pela insegurança em relação ao tratar de burocracias no espaço público – “com medo que as pessoas não me dessem atenção”; seja em diminuir o padrão de subsistência – “você fica também com medo de chegar ao fim do mês não ter dinheiro, o dinheiro não ser suficiente (...) E a gente sabe que a pensão demora a sair...”. Nestas colocações de Marisa, parece claro, e ver-se-á isto em diversos momentos, que a ausência da figura masculina faz com que algumas viúvas sintam que perderam um respaldo fundamental na sociedade. O papel de protetor e provedor atribuído ao homem estaria firmemente introjetado em muitas delas, independentemente de já serem mesmo arrimos da família antes da morte dele. É a referência social de esposa que se perde, e que pode persistir até vários anos depois exceto, talvez aqui, para a viúva que já era separada.

Por outro lado, o medo de despertar piedade nas pessoas também é forte, como se vê em Silene:

-Eu num queria que NINGUÉM TIVESSE PENA DE MIM! Entendeu? (.2) Eu dei uma de FORTE, de DURONA! Porque eu dizia MESMO, sabe?, num quero que ninguém – ninguém tenha pena de mim! (.) Porque,

72Muitas pesquisas têm sido realizadas, numa perspectiva de base psicológica e/ou abrangendo população mais idosa de

classes populares, mostrando os processos do trabalho de luto e rearrumação social que têm lugar na viuvez. Ambas as abordagens, reconhecidamente válidas, não são focalizadas aqui pelo enfoque que me propus trabalhar. Para aprofundamento, ver Doll (2002) e Britto da Motta (2002), cujas referências mostram grande parte dos trabalhos naquelas áreas. Ambos os autores estão referenciados na bibliografia.

aí, achava... ‘Não, a viuvinha!’:: Naquele negocinho!... NADA! Num queria! NUM ADMITIA! Sempre quis ser a FORTE, pra ninguém ter pena de mim! (.2) Num sei se isso é orgulho, que danado é! ((rindo))

Este depoimento pode denunciar uma diferença importante na autopercepção da condição de viúva hoje em dia, onde muitas mulheres sentem que podem dar conta da manutenção da casa e da guarda dos filhos, coisa impensável em outras épocas, no mundo ocidental (Perrot, 1995: 174). Seria praticamente um aviso de que querem e estão aptas a serem independentes, e que a falta que por ventura sentem do marido é por outros motivos que não a necessidade material. Tal sentimento parece surgir um pouco mais tardiamente na viuvez, especialmente quando as pessoas no entorno pretendem permanecer tomando decisões pela enlutada. Assim, seriam mais freqüentes, de início, sentimentos de insegurança, como mostrado acima, com Marisa.

A sensação de estranheza ao ser chamada de viúva também está presente, algum tempo depois, como exemplifico com Wilma: “HORRÍVEL! (...) MAS, já fazia mais um tempo, num foi um choque que me desse assim, uma – UMA DOR, assim, que eu ficasse... Foi, ASSIM, uma coisa ESTRANHA. (...) Assim, eu nem sei! Eu achei estranho! Achei estranho, SÓ”. O mesmo sentimento é verbalizado por Sandra: “Olhe, no começo, eu num me sentia viúva não; eu achava tão estranho, tão estranho! Assim, quando ia botar, né?, estado civil: viúva. Eu acho estranho! Ainda hoje, eu acho estranho. Assim, a coisa internalizada... Viúva!”

A sensação de desvalia, de não ser nada sem o parceiro aparece em alguns depoimentos, mudando-se apenas as palavras. Alguém poderia argumentar que um tal sentimento seria mais freqüente em mulheres completamente dependentes e/ou com identidade social fortemente vinculada ao marido. É possível. Mas o que percebi em algumas narrativas é que esse nada representaria a falta que aquela pessoa fazia como companheiro e parceiro, muito difícil de aceitar pela enlutada:

-Eu acho que VIÚVA é como se... se você não fosse NADA! É como:: Eu num sei NEM EXPLICAR que danado é! Eu acho que era como:: é como se fosse um palavrão, uma coisa horrorosa, que eu num queria ouvir. Como um palavrão, que eu nunca gostei de dizer palavrão. Então, era uma palavra que eu num queria ouvir, num queria ver... É porque é uma situação que eu nunca pensei que fosse vivenciar, né? Eu acho que é como se fosse o FIM da vida pra mim. Viúva era:: acho que era isso:

como se a vida tivesse acabado junto com ele. A minha vida tinha acabado naquele momento. (Dolores)

Então, a palavra viúva parece vir também fortemente carregada de representação negativa – “um palavrão” –, revelando a morte social da esposa e sua entrada numa situação de marginalidade. Neste aspecto, ser chamada de viúva parece reavivar o sofrimento. Glenda diz que

-Horrível! Horrível! ((riso nervoso)) Inclusive, eu num digo que sou viúva. Eu fiz o meu currículo (.) Aí, a minha amiga tava fazendo: “_G., teu estado civil?” Ela já perguntou: “_Qu’é qu’eu coloco?” “_Casada!” Eu não coloquei viúva, no meu estado civil. Num sei:: é horrível! É horrível! É horrível!” ((chorando))

? Que é que significa, isso?

-(.10) Acho que tudo de::: eu acho que tudo que a pessoa num espera! ((chorando)) Significa solidão, sofrimento...

A sensação de desamparo, ao ser chamada de viúva, é referida principalmente em relação a saídas sociais, mas também quando ela sente que não tem mais com quem dividir alegrias ou tristezas do cotidiano, com quem compartilhar preocupações e encontrar soluções, com quem conversar ou silenciar, pelo simples fato de estar junto de quem ama. Mas o “desamparo” pode significar também as prescrições para a mulher de não sair sozinha - não apenas viúvas -, fortemente ancoradas na figura do homem que protege e guarda, em sociedades machistas. Atente-se para como se expressam algumas das viúvas da pesquisa: “-A - a – a – a chamada, SER CHAMADA DE VIÚVA, pra mim, é, foi uma sensação de DESAMPARADA! Era! Era como se alguém tivesse me dado... ‘Ela – ela é sozinha!’”; “Porque PRA MIM era duro, eu chegar ali sozinha! (...) Tem coisas que eu ainda num consigo fazer sozinha! É-é, a gente chega num local, é-é como se tivesse faltando aquele cabide ((rindo)) que a gente tinha do lado! Horrível! É horrível!”; “Eu num:: aceitava que estava viúva. Tanto é que eu NUM TIRAVA minha aliança do dedo. Eu achava que tava CASADA. Sentia... num queria TIRAR. Como se tivesse tirando ele de junto de mim de novo. (...) eu tava CASADA cum meu marido, ele lá em cima e eu aqui”.

A representação das viúvas como elemento perigoso e pouco recomendável, “tidas como sexualmente perigosas devido a sua suposta luxúria” (Perrot, 1995: 139) parece que continua como fantasma na imaginação popular de final do século XX, pois o sentimento de desvalia aparece explicitamente declarado na fala de Evânia:

-Eu tive – eu tive que buscar, em mim, um – um AUTO-RESPEITO, assim, sabe?, pra poder EU::, porque EU:: me sentia assim: As pessoas, agora, vão me JULGAR! Vão dizer que eu sou AQUELA, AQUELA OUTRA. Vão dizer que eu tô já cum meio mundo de gente, ANDANDO, NAMORANDO. E eu num tô. Porque eu num quero isso. (.) Sabe? (...) Tinha momento que EU TINHA UMA VERGONHA!!... (.hh) Parecia, parece que é uma mulher DESVALORIZADA!

A verbalização por algumas de que ser viúva parece com mulher que está disponível, ou à cata de homem, ou que não tem vínculo com homem algum, ou de namoradeira, ou de ter solidão, mostra alguns estereótipos que foram associados à figura da viúva ao longo do tempo. Mesmo com as mudanças contemporâneas ocorridas no perfil feminino, a viuvez ainda é sentida como carregada de preconceitos e exclusão.

Mas ser viúva pode também significar a conquista de mais equilíbrio, livrar-se dos altos e baixos da instabilidade financeira, de ter que buscar constantemente o seu espaço, enquanto pessoa, no relacionamento conjugal:

-[Não é] que eu esqueça de M. ((marido)), não! O que eu vivi tá vivido, foi uma coisa minha, foi uma coisa boa, tudo mais. (...) Assim, tudo isso... todo esse espaço que eu tenho hoje, eu conquistei enquanto casada, sabe? (.) Assim:: e ISSO é uma COISA MUITO BOA! Porque se eu tivesse conquistado isso agora, eu acho que aí é que daria culpa. Entende? (...) Olhe! Vou dizer uma coisa assim, que pode chocar (.) pode CHOCAR as pessoas, né? (...) Mas hoje, assim, eu como viúva, tô vivendo bem! Sabe? Tô vivendo bem, tô assim, COM MAIS equilíbrio. (.2) Né? M. me angustiava muito. Com mais equilíbrio! (...) tô vivendo isso. (Sandra)

Finalmente, ser viúva é ter que contar consigo mesma sempre, embora tendo um marido. Aqui recoloco a questão: a condição “viúva” poderia ser mais um sentimento do que estado civil? É o que parece sugerir outra vez o depoimento de Marúsia: “- É. É. NA VERDADE, eu acho que eu SEMPRE fui viúva. Eu já casei viúva. Eu era casada viúva. Porque H. ((marido)) num me acompanhava.(...) H. me expôs muito. Ele era uma pessoa que procurava dificultar minha vida em tudo.”

Estes dois últimos depoimentos remetem à constatação de que a forma de vivenciar a viuvez depende da forma como foi vivida a união. Britto da Motta (2002: 270) mostrou que casamento em molde tradicional, com subordinação explícita da mulher, mesmo se

inicialmente havia sido pautado em relações amorosas, poderia sofrer desgaste e se transformar, com o correr do tempo, em ligação desconfortável e/ou sofrida, cuja ruptura poderia trazer sentimentos de alívio e liberdade à viúva. Parece que é o que ocorreu nos meus dois casos, acima.