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Numa sociedade em que as camadas médias são tão psicologizadas como a brasileira, como mostrou Gilberto Velho (1987; 1992; 1999), eventos desestruturadores como parecem ser a viuvez e a orfandade são indicações quase “formais” para a procura de ajuda psicoterapêutica. A sugestão à viúva de fazer esse tipo de acompanhamento aparece precocemente com a morte do marido, novamente sendo os parentes e amigos próximos da mulher enviuvada que primeiramente fazem a recomendação. Entretanto, as narrativas colhidas das minhas pesquisadas mostram que a maioria não se considerava necessitando desse tipo de ajuda, como relata Glenda: “(...) achou que eu também precisaria de um acompanhamento psicológico e tal. (...) eu fui [uma vez], mas também num voltei mais”; “Me levaram pra psicóloga também, sabe? Depois, acho que dois dias depois, ou três, eu já tava numa psicóloga. As pessoas tentam me ajudar. Mas é muita – muita coisa de uma vez só”, diz Diana. Como feito na fase inicial da morte do marido, aqui o grupo social também

procura medicalizar o luto, afastar a dor, negando e escondendo os sinais de sofrimento, numa confirmação da tendência de escamotear a morte, como visto por Thomas (1980; 1985).

Em muitos casos, a busca de apoio psicoterapêutico pela viúva foi feita visando os filhos: “E eu fui pra psicóloga, e a psicóloga disse que simplesmente eu tinha passado tanta peninha deles, porque eles não tinham pai, que eles faziam chantagem emocional comigo!” Já Diana, que no início tinha sido levada para uma psicóloga mas não tinha ficado com acompanhamento, resolveu procurar atendimento algum tempo depois, e fez um percurso bem maior :

-Aí foi que eu achei que eu precisava ir pra uma psicóloga, porque eu vi que eu tava MUITO ruim. (.2) E vi também que os meus meninos estavam precisando de mim. Então, eu fui vendo que eu precisava de uma ajuda, pra dar força àqueles meninos. (.) Porque aí, a gente que é mãe, né?, a dor do filho, o sofrimento do filho, é uma coisa que mexe muito comigo. Então, eu (.) fui procurar ajuda de psicóloga. Eu achei que precisava. O pessoal foi arranjando:: uma, duas, três, (.) e de nenhuma eu gostava. (.2) Uma ME FEZ::: chorou, chorou, chorou tanto, que eu acho que FICOU PIOR do que eu. Porque eu tava CHORANDO, e ela CHORANDO! E eu:: (.) ‘como é que ela vai me consolar, chorando desse jeito?!’ (.2) Aí, eu deixei de ir! (.) A outra me assustou: “Ah! Fui assaltada também!” E::: eu fui vendo que (.) num fui gostando. Num::: acredito muito no trabalho de psicóloga, não, sabe? Até agora, nenhuma, assim, que eu fui num:: achei que... e num gosto também porque fica olhando pro relógio:::, sabe? (...) Aí, foi quando (.2) eu fui pra uma psicóloga, e ela até me ajudou, essa! (...)eu procurei a psicóloga, que era pra ela me ensinar, me ajudar a trabalhar cum essas meninas, porque eu num tava sabendo mais.

Outras vezes o apoio psicoemocional vem de amigas ou parentas, que se tornam receptáculos de confidências e conselheiras. Dolores diz que “Pronto! A minha psicóloga foi N. ((amiga)) Ela me orientava muito... assim, me aconselhava, me dando força, e V., que também é psicóloga”. Já Silene encontrou numa cunhada o ouvido atento que ela precisava: “(...) toda vez, quando eu ligo pra ela, ela diz que vai cobrar, agora, todas as terapias; (...) e realmente, eu volto outra pessoa”. É interessante observar a relação que é feita da amiga com a psicóloga, numa alusão da “crença” na psicologia, que Gilberto Velho (1989: 24-25) tem apontado, o viés psicologizante, como uma característica das camadas médias.

Embora já referida como suporte pessoal-social, retomo a questão da religião especificamente enquanto apoio emocional. Algumas viúvas encontraram conforto maior ao se aproximaram mais de sua religião. Wilma, que segue o Espiritismo Kardecista, diz que “agora, sim, eu vivencio mais a minha religião porque eu tenho mais tempo; (...) eu me dedico mais, eu leio mais, eu estudo mais, e participo mais das atividades.” Também é o caso de Evânia, que é evangélica, como visto, e que começou a trabalhar na sua igreja, estudar profundamente a Bíblia e a pregar em outras igrejas: “Eu corria pra Bíblia, eu pedia meu refúgio, ia buscar a solução da minha vida na Bíblia”. Além delas, Diana também encontrou apoio na religião:

-(...) o padre quando falou, ele disse assim, uma coisa assim:: uma coisa muito assim, sabe?, que eu achei que era uma mensagem pra mim. E comecei a prestar mais atenção nas palavras do::: dos pastores, dos padres, e das pessoas assim. Porque dizia assim, por coincidência, dizia assim que “Deus lhe quer sorrindo. Deus num quer lhe ver triste, Deus lhe quer sorrindo”. E aí começou a falar assim, uma série de coisas que eu entendi (.) que tava sendo uma mensagem pra mim, sabe?, nessa missa. (.) Aí eu (.) me fortaleci. Comecei a – a pro - buscar (.) uma – uma religião, uma forma de – deficar mais forte; me fortalecer mesmo, e de trazer a felicidade pra meus filhos.

Aqui me vem uma reflexão sobre o que Segalen (2002) fala da plasticidade do rito, e sua atualização com as mudanças sociais. Nesta sociedade complexa urbanizada, o processo civilizador impôs o controle das emoções de tal forma, além da felicidade e da alegria como paradigmas, que até os representantes/intermediários de Deus na terra recomendam escamotear sentimentos considerados negativos, como tristeza e dor.

Um outro ponto interessante é que quase todas fizeram um movimento em direção ao espiritismo, mesmo aquelas que diziam que não acreditavam em nada além da vida, isto é, que “morreu, acabou”, como Silene. A busca da transcendência foi claramente anunciada por algumas, na sua procura por uma explicação para o que consideravam sua tragédia pessoal. A morte inesperada de uma pessoa tão próxima e compartilhada por elas, especialmente de quem não tinha uma doença de base, precisaria de uma resposta que, talvez, só a religião pudesse dar, visto que a ciência não o fez. Tanto é que as perguntas primeiras e mais freqüentes são ‘Por quê?’ e ‘Por quê comigo?’ Esse momento de busca do espiritismo seria, também, uma tentativa de saber como estava o marido morto, “vivendo”

em uma outra dimensão. Muitas referem que começaram a melhorar da dor quando sentiam que ele estava bem. Eis alguns depoimentos que me parecem bem representativos:

-Aí, sim, foi quando minha ... concunhada, ela é católica também, mas não é praticante, e... como a mãe é espírita, ela lê muito livro espírita, e me aconselhou esse Violetas na Janela ((ela me mostra o livro referido)). Aí, eu comecei a ler. Aí, foi a partir daqui ((bate no livro)), na segunda semana, que eu comecei a melhorar UM POUQUINHO, melhorar assim... vi... queria acreditar...(...) eu queria acreditar em alguma coisa. Porque a minha revolta era porque ele tava sofrendo igual a mim. O pessoal: “Ele tá bem, tá melhor do que você”. Eu dizia: “Num tá! Ele tá sofrendo igual a mim! A separação dói pra ele como dói pra mim. Eu sei que ele tá sofrendo.” Então, eu não aceitava que o pessoal dissesse: “ Não se preocupe não, que ele tá bem, ele tá perto de Cristo.” “ Ele tá perto de Cristo, mas ele tá sofrendo com a minha ausência, e a gente tem que tá é junto. Ou eu ia também, ou ele não tinha ido, ele tinha que ficar comigo.” Era assim, desse jeito. (...) Comecei a ver: “Poxa, então, ele não tá sofrendo, ele tá dormindo”. Eu comecei a acreditar nisso, eu precisava de acreditar em alguma coisa, que ele num tava sofrendo. Porque a partir do momento em que eu vi que ele num tava sofrendo, aí foi que eu comecei a... me trabalhar. Então, ele tá dormindo, ele num vai acordar agora não porque... Aquí tá dizendo que a moça passa pra outra vida, mas que fica dormindo, e que tem assistência de pessoas... de médicos, enfim. Então, eu comecei a acreditar nisso. Era importante pra mim acreditar nisso. E fui lendo livros espíritas, e acreditando, e achando que... e foi a partir daí que fui melhorando, melhorando aos pouquinhos. Mas, foi muito... doloroso! Nisso passou quase dois anos, quase dois anos. Agora é que faz dois anos, né? (Dolores)

-Aí, EU tenho interesse em perguntar. Entendeu? Inclusive, eu já -já cheguei a perguntar como é que eu faria p’ra saber como é que ele está ... a essas pessoas espíritas. Já - já tentei, assim, procurar saber se eu tinha condições de – de - de SABER como é que tá. Porque eu tenho muita curiosidade, num sabe?, de saber. Porque eu acho que num acaba por aqui. Num - num é possível! Eu acho que num existe isso, que acabou... Não, acho que DEVE ter uma continuidade. Ele TÁ VIVO! Em algum canto, ele tá vivo, ele tá continuando. Sem mim::: mas, tá continuando! E eu tenho certeza que, um dia, eu vou p’a lá, p’a junto dele, continuar junto cum ele! (Glenda)

-Ela VIA MUITO – eu não:: acredito em nada dessas coisas – mas ela via MUITO O - o pai. E via: “_Olhe ELE AÍ! Ele tá subindo, ele tá subindo!” (.) Os irmãozinhos maiores, né?, ficava tudo ridicularizando ela... Ela via muito! Até vir pr’aqui, pro apartamento, em janeiro de 83, ela via muitas vezes: “_Ó, Painho. Entrou aí na cozinha.” (...) Eu, como num tenho medo nem acredito nessas coisas, PRA MIM... Mas ela via DEMAIS! (.2) Aí,

minha irmã, C., na::, é::, católica – hoje em dia num é mais, ela é - é evangélica – mas dá muita crença; um dia ela levou pra uma (.hh) amiga dela, que era espírita, aí disse: “_Não, diga a S. que, mande perguntar a ele, quando ela disser que está vendo o pai, o que que ele está precisando.” COINCIDENTEMENTE, depois disso, ela não o viu MAIS! (Silene)

Apesar de se dizerem descrentes de uma comunicação com esse “outro mundo”, esses depoimentos mostram uma ambigüidade que pode ser decorrente do já apontado sincretismo que permeia a sociedade brasileira, como foi mencionado em Freyre (2000), e DaMatta (1997) a respeito da relação do grupo com os mortos e o além, aqui entre nós. Gilberto Velho (1999: 54) também discute a relevância que tem na população brasileira o entrecruzamento de crenças em espíritos e manifestações mediúnicas e adeptos de todos os outros credos. De qualquer forma, a crença no “outro mundo” é uma constante universal, como visto no primeiro capítulo desta dissertação. Ou talvez esta seja também uma questão de sobrevivência pessoal: a necessidade de crer em “alguma coisa mais”, como muitas viúvas declararam. É possível que em pesquisas longitudinais e num tempo mais prolongado no futuro, os depoimentos se modifiquem (ou não), o que indicaria a vantagem de se continuar a pesquisa com o mesmo grupo.

Outras formas de recursos terapêuticos são acionadas, seja no campo da biomedicina ou medicinas alternativas, como massagens, energização dos chacras, acupuntura, etc. É impressionante a diversidade e a quantidade de sistemas de cura de que se lança mão com a finalidade de subtrair a dor que denuncia a perda, de forma que todos sejam novamente felizes. Para isto, medicaliza-se e psicologiza-se mais ainda a situação de viuvez.

Por outro lado, algumas vezes, uma doença física se instala ou recrudesce após a morte do marido, e vários fatores contribuem para isso, como assinalado por Doll (2002), dentre os quais a constituição física, a estrutura psíquica e o ambiente social podem jogar importantes papéis. Outras vezes, a viúva, quando esposa, já tinha uma doença de base que não foi adequadamente cuidada devido a desvelo para com o marido doente, como mostra Marisa:

-Eu costumo somatizar minhas... minhas emoções, muito. Então, depois de algum tempo, eu comecei a ter muito problema de estômago. Então, eu tive que fazer muita:: endoscopia. Fiquei com gastrite. Aliás, eu já

estava com um pouco de gastrite antes, que foi também::: eu pegava um páreo meio duro, porque ele estava doente, e::: aquilo me deixava também muito perturbada, então eu já tinha um pouco. Eu não me cuidava, porque não dava tempo me cuidar. E eu acho que a gente, também, um pouco, AGÜENTA o tranco. Depois, então, eu tive que ir muitas vezes a médico por problemas DE GASTRITE. Até que um médico que era conhecido da família começou a achar que meu problema... eu precisava tomar um calmante. E ele passava, mas eu... num dei importância não. Tomei só quando eu tava MUITO::: nervosa, que eu tomava um. Mas não tomei regularmente.

Então, todos esses aspectos descritos até aqui, como apoios e recursos de que lança mão a mulher enlutada pela perda do marido, podem ser de maior ou menor expressão tanto no seu processo de reintegração social como na reorganização de sua identidade pessoal. E todos eles são refletores de normas culturais e códigos de valores estabelecidos pela sociedade maior da qual faz parte a mulher viúva. Por outro lado, enquanto integrante de grupos heterogêneos, como característica já discutida para as camadas médias, é de se supor que a vivência da viuvez seja também particularizada em alguns outros aspectos. Isto foi o que procurei mostrar neste capítulo.