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ANEXO 5 – Roteiro semiestruturado de entrevistas de beneficiários

4.2 A versão étnica das organizações para o desenvolvimento e suas

Em 20 de janeiro de 1949, o presidente americano Harry S. Truman pronunciou o emblemático discurso que divulgou a expressão subdesenvolvimento, constituindo um episódio histórico que pode ser considerado, simbolicamente, como o ponto de partida político-organizacional para a estruturação e operacionalização global da ideia de desenvolvimento moderno. A Doutrina Truman, já estabelecida dois anos antes deste discurso através apoio estadunidense aos países europeus para reestabelecerem-se no período pós-guerra (Plano Marshall), indicava a intenção de promover uma estrutura organizacional global capaz de levar o modelo de desenvolvimento para os demais países7 (ESTEVA, 2010). Em 1950, é lançado, nos EUA, o Programa Internacional para o Desenvolvimento (Act for International Development, na sigla em inglês, AID) que, logo, seria estendido às Nações Unidas através da Resolução 200/1949, que criava o Expanded Programme for Technical

Asssistance, um programa para promover ações multilaterais em prol do 7 Cabe destacar que esta nova estratégia política estadunidense operacionalizou-se no marco do período da denominada “guerra fria”, quando países como EUA e URSS apontavam saídas e projetos para a reorganização social no pós-guerra.

desenvolvimento (VALLER FILHO, 2007).

De modo geral, a divisão entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, presente no discurso de Truman de 1949, pretendia estabelecer o sentido das mudanças a serem estabelecidas na operacionalização do desenvolvimento. Os países desenvolvidos estavam no ápice da piramide evolutiva, devendo ser seguidos como modelos e, inclusive, tutores para os países subdesenvolvidos, considerados em condição de atraso na implantação do modelo industrial típico dos países desenvolvidos (ESTEVA, 2010; FAÉ, 2009).

No contexto da política da convivência, estruturaram-se, inicialmente, as organizações socioinstitucionais que dariam forma às dinâmicas do desenvolvimento, as quais não se diferenciavam substancialmente de acordo com o país, a cultura, a etnia, o ambiente ou qualquer outro fator diferencial que pudessem apresentar o âmbito de implantação destas dinâmicas. As incidências étnicas, ambientais ou culturais que poderiam estar contidas nestas propostas de mudanças promovidas pelo discurso do desenvolvimento, por sua vez, não poderiam ser claramente reconhecidas ou identificadas. De modo geral, as dimensões étnicas e culturais eram negligenciadas quanto às suas particularidades e eram tratadas indiscriminadamente frente às propostas de cunho integracionistas. Poder-se-ia destacar que tais particularidades étnicas e culturais eram muitas vezes entendidas mais como um entrave ao estabelecimento das intervenções desenvolvimentistas do que como formas organizacionais a serem preservadas ou otimizadas. Little (2002, p. 41) comenta que para a maioria dos países, “os grupos étnicos foram

considerados como um estorvo: seja por serem supostos "vestígios" do passado assimilados na sociedade nacional, seja por serem supostos núcleos de proto- estados”. Pensamento que, todavia, hoje, é considerado por muitos críticos teóricos

do desenvolvimento como fundamentalmente presente neste discurso e que estruturalmente irradia-se através de intensas condições cotidianas, imprimindo dinâmicas como, por exemplo, as que alguns autores destacam como o fenômeno da colonialidade do poder, ou seja, dinâmicas sociais derivadas de instituições culturais historicamente constituídas (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2005).

Executado na década de 1950, o Programa Andino pode ser considerado como a primeira ação multilateral direcionada aos povos indígenas, sendo instituída sob o viés da política indigenista clássica. Com isso, as metas e objetivos estabelecidos pelas propostas de mudanças não diferenciavam-se substancialmente

das políticas desenvolvimentistas e ressaltavam a necessidade de acelerar a integração com os mercados capitalistas através da adoção da livre iniciativa, do lucro e da propriedade privada (DÍAZ-POLANCO, 2005). Em termos organizacionais, o Programa Andino foi desenhado pela ONU e OIT e exigia como premissa o cumprimento e adaptação, das partes envolvidas, às diretrizes e dinâmicas econômico-burocráticas aos moldes das instituições sociais modernas. As relações organizacionais, deste modo, constituíram-se principalmente em torno do modelo que associa organismos internacionais, instituições nacionais, organizações da sociedade civil, organizações de segundo grau e empresas, configurando um padrão organizacional presente no etnodesenvolvimento até a atualidade (SALVIANI, 2002).

De modo geral, é marcante a presença dos organismos internacionais no que tange a aproximar o desenvolvimento das populações indígenas, os quais concentram suas atividades, principalmente, na promoção de discursos, captação e distribuição de recursos, capacitação e distribuição de agentes e voluntários, produção e distribuição de material de divulgação, promoção e gestão de ações para o desenvolvimento, avaliação do andamento das atividades, etc. Sob este guarda- chuva institucional internacional, apresentam-se inúmeras outras organizações que estabelecem relações com as populações indígenas para cumprir com as indicadas pressuposições discursivas. Estas relações organizacionais são, por vezes, bastante complexas e torna-se difícil para as pessoas envolvidas perceber os diversos níveis de diálogo e, mesmo, associar as forças para que os benefícios desta conjuntura organizacional sejam prioritariamente direcionados aos grupos étnicos. Como se tem observado, o grande desafio para o grupo étnico local tem sido otimizar as “conexões que mantêm com grupos e instituições nos outros níveis - organizações

não-governamentais, órgãos governamentais, agências multilaterais de financiamento, etc. - para seu próprio benefício” (LITTLE, 2002, p. 43).

Portanto, tem-se registrado historicamente a prevalência de uma abordagem de orientação mercadológica nestas relações organizacionais, cujo objetivo central das ações de etnodesenvolvimento concentram-se em torno de uma tentativa de inserção mercadológica das etnias envolvidas (DÍAZ POLANCO, 2005; AGUIRRE BELTRÁN, 1984; BONFIL BATALLA, 1995; STAVENHAGEN, 1985; CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000; LITTLE, 2002; VERDUM, 2006). Neste sentido, o mercado tem sido utilizado como o principal substrato das relações organizacionais e das iniciativas em prol do etnodesenvolvimento, concentrando grande parte das mesmas

no âmbito das atividades econômicas sustentáveis (VERDUM, 2006).

Cabe ressaltar que os primeiros programas de etnodesenvolvimento (Programa Andino, Prodepine, PPG7, etc.) receberam duras críticas em relação às incidências das intervenções, as quais poderiam englobar outras orientações como, por exemplo, saúde, educação, moradia, produção agrícola através de uma abordagem similar às intervenções realizadas nas sociedades nacionais. Como elemento diferencial, nestes âmbitos, a presença dos “antropólogos do desenvolvimento” era entendida como mais uma ferramenta para a integração destes grupos étnicos em tais intervenções. Desta forma, a administração nacional foi assumindo o controle sobre as demais dimensões intervencionadas, enquanto as ações de etnodesenvolvimento direcionaram-se para o âmbito das atividades econômicas sustentáveis, onde o mercado aparecia como dimensão dialógica de caráter multicultural (VERDUM, 2006).

Com isso, a principal diferença em relação ao modelo hegemônico de desenvolvimento tem sido a peculiaridade de se admitir aproximações mais “relativistas” em relação ao mercado e às atividades econômicas, em que os grupos étnicos possam paulatinamente absorver suas dinâmicas. As conjunturas organizacionais, neste contexto, têm experimentado diferentes formas de relacionamento com o mercado e, além disso, têm observado a presença de alguns perigos inerentes a esta conjuntura.

Por exemplo, em avaliação realizada nos “Projetos Demonstrativos Tipo A” (PD/A – PPG7), Little (2002) registrou a presença de alguns “micro-modelos de relacionamento com o mercado”, entre os quais destacou o:

- fortalecimento das atividades de subsistência;

- estabelecimento de economias paralelas (subsistência + mercado);

- terceirização das atividades produtivas com fiscalização por parte do grupo local;

- controle total do processo econômico para parte da organização local; - criação de um valor econômico étnico para seus produtos.

Não obstante, cabe destacar que a maioria dos casos concentra-se em torno dos três primeiros micro-modelos, sendo escassos os casos de controle total do processo econômico e de criação de um valor econômico étnico, este último com apenas um caso registrado (LITTLE, 2002).

derivados da utilização da abordagem mercadológica através da conjuntura organizacional estabelecida para as ações de etnodesenvolvimento, os quais incidem, principalmente, sobre os preceitos da autonomia cultural, provavelmente, atraindo consequências negativas para o desenvolvimento de suas características étnicas. Observam-se três perigos de maior iminência neste contexto.

O primeiro perigo refere-se a cooptação dos grupos étnicos locais por organizações e forças maiores em que os mesmos estão inseridos em conjunturas políticas e econômicas de tal forma que acabam perdendo o poder de decisão e ação dentro da mesma (LITTLE, 2002).

O segundo perigo emerge da modalidade de diálogo organizacional que tem sido chamado de “projetismo” e, consequentemente, estabelece os “dilemas do projetismo”. Tal modalidade de diálogo organizacional prevê que o trabalho acerca de diversos discursos seja “traduzido” em um documento denominado “projeto” que será apreciado para a aprovação ou não dos recursos e financiamentos distribuídos por programas governamentais, organismos internacionais, fundações, ONG's, etc. Segundo Little (1998) e Pareschi (2002), a modalidade de diálogo organizacional apresentada pelo projetismo é de caráter puramente ocidental, burocrática, modernizante e dispõem de um viés "curtoprazista" na forma de abordar os problemas cotidianos de um grupo étnico determinado. Assim, a busca pelo cumprimento das exigências do “projetismo” pode ser a fonte principal para muitos conflitos internos nestes grupos.

Já o terceiro perigo inerente ao estabelecimento destas relações e conjunturas organizacionais no etnodesenvolvimento consiste na emergência de um novo tipo de “paternalismo” que deriva, principalmente, da monopolização do poder por parte de algumas instituições e organizações, em que os grupos étnicos podem perder o total controle de seu território, das relações internas e externas, tornando- se exclusivamente dependente de alguma destas organizações, convivendo, assim, em situação de tutela8 (BAINES, 1994 apud LITTLE, 2002).

Portanto, pode-se perceber que em torno da dimensão organizacional do etnodesenvolvimento podem ser observadas algumas problemáticas importantes no que se refere à operacionalização deste discurso. Fatos que demonstram como é difícil operacionalizar o desenvolvimento e, simultaneamente, cumprir com o

8 Para contextualização deste tipo de perigo e de sua incidência na expropriação do controle de um projeto originalmente proposto por uma organização indígena, verificar a análise do projeto PRODECO, no Equador, realizada por Palenzuela & Olivi (2011).

compromisso de preservar a autonomia cultural. O jogo colocado sobre o tabuleiro não pode abrir mão de suas regras econômico-burocráticas – da inegociável filosofia administrativa - fundadoras do mesmo, consequentemente, o conhecimento destas regras e as fichas da participação não se distribuem uniformemente, ademais, seus próprios jogadores não apresentam objetivos comuns. Neste sentido, trata-se de um jogo bastante caótico que nem sempre os grupos étnicos são os principais beneficiados.

A temporalidade da participação introduz dinâmicas variadas que devem ser conjugadas pelas pessoas que nelas ocupam-se. De modo geral, vão condicionando-se as possibilidades que emergem das experiências participativas, vão delimitando-se as práticas desenvolvimentistas. O fenômeno da participação

para o desenvolvimento, mais do que atrair as pessoas para diretamente interagirem

em um diálogo político aberto, apresenta possibilidades de ocupação em que o diálogo é bastante delimitado. Ao menos é o que o estudo destas experiências vêm demonstrando aos que se dedicam a tal, indicando, inclusive, que tendências conjunturais perigosas podem resultar das mesmas.

Participação e desenvolvimento encontraram-se após uma longa trajetória discursiva e prática por caminhos bastante distintos, contudo, a convergência entre as suas rotas estabeleceram formas peculiares de abordá-los. A participação exigia uma nova premissa às estruturas do desenvolvimento, que a operacionalizou a sua maneira, transformando também aquilo que era conhecido acerca da própria participação.

As organizações socioinstitucionais do desenvolvimento necessitavam das pessoas e não pouparam esforços para atraí-las, iniciando um processo de valorização do uso deste conceito que influenciou tanto a instituição das novas modalidades participativas, como a ressignificação da mesma em relação à polaridade conceitual que a colocava em oposição à representação. Iniciou-se, portanto, um processo lato sensu de construção conceitual e ideal sobre a participação que não considerou, de forma integral, os elementos que no debate stricto sensu caracterizavam seu ideário.

Apesar desta transformação, a operacionalização dos enunciados participativos pelas organizações socioinstitucionais dedicadas ao desenvolvimento não deixou de aportar esperanças discursivas de que tais organizações atentavam para a instituição de formas de diálogo social menos impositivas. De acordo com

Sangreman & Santos (2012), o processo de valorização da participação associado à abordagem multidimensional do desenvolvimento compôs o cenário para a emergência de um novo paradigma para a CID, o “paradigma da eficácia da ajuda” ou “paradigma do Monterrey Consensus”. Distintamente dos dois paradigmas anteriores - “dos projetos setoriais” e “do ajuste estrutural”9 - o contemporâneo “paradigma do Monterrey Consensus” caracteriza-se pela atenção às demais dimensões do desenvolvimento e, principalmente, pela necessidade de contar com instâncias de valorização da participação.

5 PARTICIPAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

5.1 Nuances históricas da emergência dos enunciados participativos no