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ANEXO 5 – Roteiro semiestruturado de entrevistas de beneficiários

7.1 O estudo empírico das conjunturas institucionais de participação para o

7.1.3 Os gestores beneficiários: o Tekoha Ytu

A terceira unidade de análise observada durante a realização deste projeto de tese foi denominada de conjuntura dos gestores beneficiários. Tal conjuntura compreende as relações que estabelecem-se junto ao espaço de organização dos beneficiários. Neste caso, este espaço de organização é denominado pelos próprios beneficiários de Tekoha Ytu, sendo a palavra Tekoha a forma guarani e mbya guarani para designar aquilo que nós, aproximadamente, chamamos de território ou espaço comunitário.

Desde 2008, o Tekoha Ytu vem recebendo intervenções através de projetos de etnodesenvolvimento realizados na plataforma da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID) e, neste contexto, tornou-se também uma conjuntura de participação para o desenvolvimento. As pessoas da comunidade mbya guarani de Ytu, neste caso, participam de tais intervenções na condição de beneficiários.

A condição de beneficiário de projetos de CID resulta, de modo geral, de uma relação direta com os parceiros locais, onde devem emergir laços de confiança suficientemente fortes para que ambos concordem e queiram operacionalizar os discursos e atividades propostos pelos gestores proponentes. Deste modo, a conjuntura dos beneficiários é aquela que emerge diretamente do lócus ao qual se pretende que seja desenvolvido. Portanto, um espaço físico ao qual se pretende que, através de intervenções planejadas e esforços coletivos, seja potencializado, construído e conduzido o desenvolvimento.

Pelos beneficiários, com isso, perpassa a esperança de que sejam incorporados uma série de elementos propostos pelas intervenções, em que os mesmos devem:

- dialogar e acordar com extensionistas e agentes do desenvolvimento sobre a realização dos projetos em seu espaço comunitário;

- constituir-se burocraticamente para poder firmar acordos institucionais, formalizando e legalizando as intervenções;

- permitir e participar de diagnósticos e planejamentos sobre as ações a serem realizadas nas intervenções;

- desempenhar parte das ações planejadas;

- acompanhar, discutir e avaliar o andamento das atividades realizadas nas intervenções;

- receber fluxo constante de informações e indicações sobre possíveis procedimentos e atividades a serem realizadas;

- oportunizar e permitir o transito constante de representantes institucionais e demais pessoas relacionadas as intervenções no espaço comunitário;

- internalizar as mudanças propostas para a comunidade, etc.

Devemos considerar que espera-se que a conjuntura dos beneficiários coexista com um espaço de ampla transformação, visto que a mesma configura-se como espaço físico escolhido para que o desenvolvimento seja promovido de forma mais rápida. Neste sentido, os gestores beneficiários são aqueles que a participação exige uma predisposição as transformações estabelecidas pelas propostas de mudanças que acompanham as intervenções para o desenvolvimento.

Não obstante, também devemos considerar que tal conjuntura estabelece-se, geralmente, em um contexto em que estes beneficiários encontram-se em situação de vulnerabilidade social. Assim, as propostas de mudanças atreladas as intervenções para o desenvolvimento são particularmente tentadoras, no sentido de atrair a atenção para possibilidades de alcançar melhorias em termos de qualidade de vida que corriqueiramente não estão tão presentes em seu espaço comunitário.

Participar na conjuntura dos beneficiários geralmente implica estar em meio a um contexto em que são indicadas transformações em diversos aspectos da vida pessoal como, por exemplo, na forma de relacionar-se com o ambiente, a educação, a agricultura, a saúde, etc. Enfim, em torno dos beneficiários é que se realizam as transformações que são esperadas para o “terreno”, o espaço próprio e legitimado para que o desenvolvimento seja objetivado.

A conjuntura dos beneficiários é aquela que contempla a transformação do próprio espaço comunitário e, portanto, compreende também as formas de organização comunitária. A estrutura do tekoha, neste contexto, traz consigo as possibilidades que condicionam os modos de ser mbya. O tekoha é, conforme a

própria tradução etimológica do termo, o lugar onde se expressa a cultura (teko) mbya guarani. Não obstante, como conjuntura dos beneficiários é também o lugar onde será operacionalizada e experienciada a cultura do desenvolvimento.

Antes um espaço de expressão da cultura mbya guarani, o tekoha hoje recebe as possibilidades emergentes da temporalidade da participação, as quais colocam em evidência modalidades de ocupação projetadas para que o desenvolvimento se expresse.

O fenômeno da participação para o desenvolvimento apresenta-se de forma marcante para os beneficiários, introduzindo referências que indicam a emergência de outras possibilidades cotidianas para este espaço conjuntural. Ao entrelaçarem- se às estruturas desenvolvimentistas, os beneficiários entrelaçam-se também ao escopo simbólico que relaciona este discurso com esperanças de alcançar melhores situações conjunturais. Participar para o desenvolvimento, assim, é introjetar-se também ao conjunto de relações que vinculam-se à difusão e operacionalização deste discurso, abrindo os espaços comunitários e pessoais para as transformações que derivam destes processos. Como espaços de expressões culturais, tekoha e desenvolvimento associam-se para conformar novos sentimentos, ações e interpretações, aportando distintas possibilidades cotidianas que emergem das vivências dos beneficiários em torno dos modos de ser do desenvolvimento. É através destes processos que estas pessoas podem expressar suas significações para contribuir na construção de significados a partir de suas próprias experiências participativas.

2ª SEÇÃO: A LIBERAÇÃO DO “ENTE” DO SER QUE ESTÁ NO

MODO DE SER DO DESENVOLVIMENTO

8 A SEMIÓTICA DA PESSOA

“Todos os objectos das inclinações têm somente um valor

condicional, pois, se não existissem as inclinações e as necessidades que nelas se baseiam, o seu objecto seria sem valor”.

Immanuel Kant (Fundamentação da metafísica dos costumes) Mesmo neste momento de valorização das perspectivas inter/transdisciplinares, não é usual observar a utilização do conceito de pessoa em produções intelectuais. Paradoxalmente, é raro encontrar, na sociologia e na antropologia, algum debate ou trabalho que explicite sobre a utilização deste conceito nas construções intelectuais. De modo geral, a utilização do conceito de pessoa está concentrada nos trabalhos elaborados sob o cânone das tradicionais disciplinas que desenvolveram as discussões sobre o mesmo, a teologia, a filosofia, refletindo, na contemporaneidade, em aportes importantes para a teoria do discurso do direito (FERRATER MORA, 1971; GÜNTHER, 2006). Não obstante, emergem alguns estudos no campo da bioética, herdeiros do personalismo, que o atraem para dar subsídio ao debate sobre a construção dos direitos da natureza (ENGELHARDT Jr., 1998; SGRECCIA, 2002). Neste contexto, o conceito de pessoa recebeu atenção especial a partir dos estudos renovadores de ética aplicada realizados por Peter Singer (2000), em que o mesmo retoma o conceito para estabelecer uma diferenciação conceitual entre ser humano e pessoa, atentando para subsidiar as discussões da bioética acerca do aborto e das possibilidades em torno da emergência dos direitos da natureza.

De nenhuma forma, poderíamos contemplar algum tipo de abandono ao conceito em questão, entretanto, é observável, na antropologia e na sociologia, um tipo de ruptura com o mesmo, em que outras formas de tratamento ao ser humano são preconizadas como, por exemplo, indivíduo, agente social, ator social, sujeito, autor, etc. (DURKHEIM, 1999; GIDDENS, 2003; BOURDIEU, 1998; BERGER & LUCKMANN, 2001). Como podemos observar, o ser humano como unidade de análise pode ser objetivado através de um amplo conjunto de abordagens epistemo- ontológicas.

Para buscar elucidar sobre o que estamos tratando quando utilizamos o conceito de pessoa, poderíamos iniciar realizando a mesma pergunta colocada por Peter Singer: - todo ser humano é uma pessoa? No estudo da história ocidental

podemos observar que o processo de personificação era limitada a poucos, em que era comum a impossibilidade de mulheres, escravos e estrangeiros em participar deste processo. Na atualidade, ainda temos muitos casos semelhantes, em que grupos sociais e indivíduos são desprovidos de personalidade plena como, por exemplo, os indígenas brasileiros. Não é tão simples alcançar uma resposta definitiva para esta questão, mas se queremos avançar na construção de significados sobre a participação, devemos também explorar mais detidamente o conceito de pessoa, pois é esta entidade que constituiu-se historicamente como objeto para estabelecer possibilidades de ação participativa.

A antropologia filosófica nos conduz a uma aproximação com o conceito de pessoa, uma forma de tratamento que, desde o início, deixa transparecer as condicionalidades presentes na existência humana, sem deixar de contemplar, simultaneamente, o círculo que encerra o ser humano como seu próprio fim (KANT, 2007). A pessoa, neste sentido, não seria parte de um simulacro onde o ser humano é colocado completamente em evidência para estabelecer um paradigma de determinada realidade social. A pessoa, ao contrário, já é o ser social que denota ao ser humano uma ideia de inacessibilidade integral. A priori, já é uma existência condicionada que deixa transparecer uma clara distinção entre suas relações fenomenológicas e cartesianas. Esta complexidade conceitual presente no conceito de pessoa nos permite partir de pressupostos indefinidores do ser humano para tentar, simplesmente, evidenciar os distintos e, talvez, infinitos modos de ser emergentes das diversas temporalidades a qual o mesmo pode direcionar-se.

Deste modo, ao optar pelo conceito de pessoa deixa-se claro a contemplação de um ser humano imerso, como mínimo, em relações derivadas de um mundo fenomenológico e um “mundo” cartesiano. O conceito de pessoa, com isso, apenas deixa explícito que a vida humana encontra-se “mascarada” pelas temporalidades sociais e contextos que nos permitem acessar, minimamente, um direcionamento fenomenológico do ser e, ademais, de saber que nunca podemos realizar uma leitura completa e eternamente válida do mesmo (HEIDEGGER, 1998).

O conceito de pessoa nos permite escapar da tentativa falha de alcançar o ente humano, ou seja, de realizar uma objetivação coisificadora do ser humano. Nos permite partir do pressuposto de que colocamos em evidencia apenas um “ente” que emerge das relações com uma das diversas temporalidades. A objetivação não coisificadora, portanto, visa liberar o “ente” que interage com o campo temático e

analítico conformado pela temporalidade em questão, neste caso, da participação. De modo geral, busca traçar uma perspectiva sobre a pessoa que emerge desta temporalidade.

Etimologicamente, a palavra pessoa é considerada uma derivação da forma grega “πρόσωπον” (foneticamente, prós ponoo ), cujo significado seria “máscara”. Mais especificamente, se tratava de uma máscara que cobria o rosto dos atores nas peças teatrais da Grécia Antiga, principalmente, na tragédia. Já na forma latina, derivada do etrusco, podemos observar esta mesma referenciação à ideia de máscara, contudo, contempla-se uma derivação diferenciada a partir do verbo “persono” (infinitivo “personare”), a qual incide na forma per sona (sonar através de algo, de um orifício, fazer ressonar a voz). Neste caso, o ator fazia sua voz ressonar através do orifício da máscara e, assim, o ator mascarado era alguém personificado, “personatus” (FERRATER MORA, 1971; SINGER, 2000).

Como podemos sugerir nesta leitura etimológica da palavra pessoa, a sua própria origem atribui o sentido de que o acesso de um ser humano por outro, aparentemente, está sempre permeado por “películas”, “filtros” ou máscaras que limitam o pleno e objetivo alcance ao ser humano enquanto ente. Esta ideia de inacessibilidade parece ser a grande convergência entre as diferentes linhas de pensamento derivadas das ciências humanas e sociais. A motivação para a construção de distintas nomenclaturas para a indicação do ser humano enquanto unidades de análise, por sua vez, encontra-se mais concentrada na capacidade e formas com que o ser humano apresenta para adaptar-se e interpretar as dinâmicas das realidades sociais e, simultaneamente, transformá-las. Deste modo, as divergências se constroem a partir dos pressupostos estabelecidos pelos próprios intelectuais em seus modos de direcionamento para a observação das relações humanas e de suas realidades. Por exemplo, dos pressupostos apresentados em relação aos graus ou níveis de consciência do ser humano, às formas organizacionais, às motivações comportamentais, etc. Portanto, não é incomum deparar-se com inúmeras explicações cabíveis e, muitas vezes, complementares para o mesmo caso. O que deve ser ressaltado é que, apesar da tentativa objetivadora instituída pelas ciências humanas e sociais em seu processo de modernização, a clara distinção entre os pressupostos analíticos apresentados pelas diferentes linhas de pensamento acabou por explicitar, novamente, as inclinações filosóficas presentes nestas construções científicas (HUSSERL, 1996; PEIRCE,

2012; FOUCAULT, 1999). Ao utilizar o conceito de pessoa, busca-se refletir claramente as inclinações filosóficas presentes na construção desta tese.