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Como observado, o Registro de Imóveis prima, sobremaneira, pelo respeito às leis e à Constituição. Um dos princípios vetores é a obediência à legalidade. Não se poderá inscrever um título defeituoso ou contrário à legislação, pois isso colocaria em risco todo um sistema pautado na segurança jurídica.

Esse é um dos fatores que contribuíram, por muito tempo, para que a Vila Dnocs ficasse à margem do registro imobiliário. Com efeito, os moradores começaram a erguer suas habitações em terras pertencentes ao Distrito Federal, ou seja, os barracos foram construídos em área pública. Não havia autorização por parte do Estado para que as pessoas pudessem ocupar o terreno e nem efetiva fiscalização para inibir essa ação.

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SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Noções fundamentais de direito registral e notarial. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2017, p. 57.

As pessoas não tinham, pois, qualquer título de propriedade sobre os lotes ou algum documento de concessão de uso da posse para que pudesse ser levado a registro no Cartório de Imóveis, a fim de legitimar a sua condição jurídica no imóvel. Como o modelo brasileiro é do título e modo, a inexistência de título impediria qualquer acesso dos moradores da Vila Dnocs ao fólio real e, com isso, não se teria a proteção legal do sistema registral.

Qualquer documento de propriedade sobre esta gleba que fosse levado para a análise do registrador imobiliário, certamente teria tido a qualificação negativa e as exigências não poderiam ser cumpridas pelos moradores porque as casas foram construídas sobre bem público e as posses, do ponto de vista jurídico-legal, eram sabidamente ilegítimas. Provavelmente esse era um fator determinante para que os agentes do Estado tentassem demover a ocupação irregular que começava a surgir naquela região, como destacou Noemia Porto:

A história da Vila para alguns moradores pode ser traduzida na ideia de resistência em face do Estado, isso porque havia rotineiras investidas e tentativas, algumas exitosas, de retirada das famílias e de eliminação da ocupação, sem, claro, resolver-se o problema concreto daquelas pessoas que demandavam por um lugar para viver em condições mínimas de dignidade. Ainda segundo Valdeci, houve mobilização e, para isso, inicialmente, foi constituída uma comissão composta por 9 (nove) moradores. Essa mobilização, e a representatividade local, foram importantes para que se desse início à tramitação de um projeto de lei que, no final dos anos 1990, pretendia regularizar a área, além de outros locais similares do Distrito Federal.81

Da mesma forma, não se poderia tentar averbar parte do imóvel no histórico do bem, uma vez que o sistema registral veda a abertura de matrículas parciais, a não ser que haja desmembramento da gleba, o que não era o caso. Toda aquela área estava matriculada em nome do Distrito Federal, mais precisamente em nome da TERRACAP82 e, pelo princípio da continuidade ou trato sucessivo, somente haveria inscrição do título se a alienante ou a concedente fosse essa Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal.

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PORTO, op. cit., p. 43. 82

Projeto de regularização urbana da Vila Dnocs, elaborado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional do DF CODHAB. Disponível em: http://abc.habitacao.org.br/wp-content/uploads/2018/01/P16-CODHAB-DF-Vila-DNOCS-REG-power-point.ppt. Acesso em: 4 jan. 2019.

O sistema registral, por questões de segurança, não admite que existam sobressaltos de titularidade. A especificidade subjetiva deve ser respeitada para garantir que não haja violação aos direitos inerentes à propriedade. A perfeita identificação das partes (alienante e adquirente) permite que não ocorra burla ao sistema do título e modo.

Outro ponto que dificultou o acesso dos moradores ao fólio real e concorreu para que a Vila Dnocs permanecesse sem a proteção do Registro de Imóveis foi a imprecisão espacial dos lotes. Não havia uma perfeita delimitação de onde o lote começava e terminava. O crescimento e o loteamento desordenados da área dificultavam a regularização da região.

De fato, os lotes eram cercados por pedaços de madeira ou nem isso havia. Os limites e os vértices dos terrenos não eram delimitados com precisão e não havia como identificar geometricamente cada lote. Essa imperfeição na extensão horizontal da terra é um impedimento para o registro de qualquer título, na medida em que a legislação imobiliária (Lei 6.015/73, art. 176, § 1º, inc. II, item 3, alínea b) exige a precisa identificação do imóvel urbano para a escrituração no livro registral, devendo-se indicar “suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e de sua designação cadastral, se houver.”

Na falta de todas estas informações, o princípio da especificidade objetiva não autoriza o ingresso de eventual título nos assentos registrais, pois o registrador imobiliário deve tutelar a segurança jurídica e o sistema imobiliário não pode se coadunar com imperfeições e indefinições, a ponto de gerar incertezas na população e uma falta de credibilidade neste serviço público.

Até que houvesse vontade política para se iniciar um diálogo visando uma tentativa de regularização da área pelo Estado, a Vila Dnocs continuaria na informalidade e as moradias erguidas na região não teriam a devida proteção do sistema registral imobiliário.

5 A PROBLEMÁTICA DO PARCELAMENTO DO SOLO URBANO

A partir do século XX, com o aumento demográfico nas cidades, houve uma preocupação na ordenação do solo urbano, uma vez que a demanda habitacional foi diretamente afetada pelo crescimento da população. À medida que mais pessoas buscavam os centros urbanos para viver, havia um incremento diretamente proporcional na necessidade de se conseguir moradia digna para todos.

Ocorre, porém, que a escassez habitacional foi determinante para que alguns indivíduos encontrassem meios alternativos de sobrevivência, passando a residir em praças, embaixo de viadutos ou ocuparem terrenos sem qualquer infraestrutura mínima, com vistas a erigir uma morada. Diante da ausência de uma política habitacional direcionada à população de baixa renda, ocupações irregulares do solo foram acontecendo à plena luz do dia e, muitas vezes, contavam com a omissão do Estado em fiscalizar e impedir recorrentes danos urbanísticos e ao meio ambiente.

Por conta disso, o constituinte reconheceu a obrigação da União instituir diretrizes gerais para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, como meio de reforçar o caráter federativo do Brasil. Esta competência constitucional material se soma à atribuição da União, Estados e Distrito Federal de legislar concorrentemente sobre direito urbanístico (CF, art. 24, inc. I).

Os Municípios (deve-se incluir o Distrito Federal), por sua vez, podem legislar sobre assuntos de interesse local, suplementar a legislação federal e a estadual no que couber e promover adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (CF, art. 30, incs. I, II e VIII e art. 182). Verifica-se que o menor ente federado dentro do sistema brasileiro será o responsável direto por regulamentar o uso do solo para fins urbanos.

Andou bem o legislador em definir determinadas competências na própria Constituição, diante da fundamentalidade dos direitos da propriedade e da moradia e

do princípio vetor da função social, dificultando as alterações casuísticas das responsabilidades em implementar políticas habitacionais e fiscalizar a ocupação desordenada das cidades.

No plano jurídico, o direito urbanístico pode ser entendido como um ramo do direito público dotado de regras e princípios próprios para servir de conjunto normativo a regulamentar a ocupação, parcelamento e uso do solo, com o escopo de proporcionar o desenvolvimento pleno e sustentável das cidades.

A constitucionalização do direito urbanístico denota a relevância do tema e exigem do Poder Público medidas voltadas para a preservação dos centros urbanos e a melhoria da qualidade de vida da população, servindo de mandamento impositivo para a promoção de ações e programas habitacionais, fiscalização de invasão de terras públicas e privadas, ordenação do território e tutela do meio ambiente. A ocupação do solo não pode ficar à mercê da vontade particular, devendo o ente estatal estar atento ao desenvolvimento urbano.

A fim de evitar o desordenado crescimento urbano dos Municípios e do Distrito Federal, foi editada a Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que trata do parcelamento do solo urbano (LPS).