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A Violência Feminina Enquanto Autodefesa, Retaliação ou Auto protecção

2. A Abordagem Feminista à violência íntima perpetrada por mulheres: da simetria à assimetria de género na violência íntima

2.2. Diferenças entre a violência íntima perpetrada por homens e por mulheres

2.2.3. Motivações Para a Violência Física e Função do Comportamento Violento

2.2.3.2. A Violência Feminina Enquanto Autodefesa, Retaliação ou Auto protecção

Quando as mulheres recorrem à violência física, a investigação tem vindo a demonstrar que é mais provável que tal aconteça contra um parceiro violento do que contra um parceiro não violento. Nesta perspectiva, o recurso à agressão física por parte das mulheres poderia ser visto como uma função do tipo de relacionamento que experienciam e não potenciado por uma característica própria inerente à mulher

(Saunders, 1990; Magdol et ai., 1997). Não obstante, pouco ainda se sabe sobre a autodefesa enquanto motivação principal subjacente ao uso da força física por mulheres (Saunders, 1990), tendo este assunto vindo a ser alvo de grande debate académico. Mais uma vez, para podermos definir qualquer acto como de autodefesa é imprescindível a consideração dos elementos contextuais em que o acto ocorreu, assim como a dinâmica interaccional entre os protagonistas (Dobash & Dobash, 2004; Nazroo, 1995), preocupações mais da metodologia qualitativa tipicamente utilizada pelas feministas do que da metodologia quantitativa dos sociólogos do conflito familiar.

Uma outra questão tem a ver com a própria definição conceptual, ou seja, o que é que pode ser considerado autodefesa, retaliação, auto-protecção ou agressão primária. Segundo Dobash e Dobash (2004), os actos de auto-protecção poderão incluir comportamentos como "levantar os braços para aparar um murro", um acto de autodefesa poderá incluir "dar um murro" para se defender da agressão e um acto de retaliação poderá incluir "devolver o murro". Este tipo de "nevoeiro" conceptual torna a questão da autodefesa ainda mais complicada, quando, por exemplo, a mulher agride na ausência de agressão prévia pelo companheiro. Poderemos considerar este acto como agressão primária, uma vez ter sido a mulher a iniciar a violência, ou poderá ser também este um acto de autodefesa? Sob determinadas circunstâncias, quando as mulheres sentem ameaça de perigo iminente sobre si ou sobre os seus filhos, perigo de morte ou de ofensas físicas graves, recorrem ao uso da força física sobre os seus companheiros antecipadamente, mesmo que o perigo exista apenas subjectivamente e na ausência de agressão por parte do homem. A iniciação de um episódio de violência física feminina pode constituir uma resposta a um perigo percebido quando já existe uma longa história de abuso na relação (Straus, 1993).

É sabido que a violência física e sexual masculina é usualmente precedida de insultos e outros tipos de abuso psicológico, podendo as mulheres interpretar estes comportamentos como sinais de aviso, sendo as primeiras a agir com violência com a intenção de prevenir que os seus parceiros venham a utilizar a violência (Saunders, 1990). Muitas mulheres são as primeiras a agredir com base num medo bem fundado de serem batidas ou sexualmente abusadas pelos seus parceiros. Assim, mesmo tendo sido a mulher a iniciar o episódio violento, tal pode constituir um acto de autodefesa (Kurz, 1993). Segundo alguns autores, quando se trata de perigo "percebido", as mulheres tendem a legitimar este tipo de actos agressivos como autodefesa (Saunders, 1990).

Em vários estudos, a autodefesa tem sido apresentada como o motivo principal para o uso da força física feminina nas suas relações íntimas (Saunders, 1990;

Cascardi & Vivian, 1995; Hamberger & Guse, 2002; Bachman & Carmody, 1994; Melton & Belknap, 2003). Saunders (1990) cita vários estudos que encontraram 29% a 4 1 % de violência exercida por mulheres em autodefesa, quer se trate de violência severa ou de violência menor. Resultados idênticos foram encontrados por Dobash e Dobash (2004), acrescentando que os homens não utilizaram o termo "autodefesa" para justificar os seus actos violentos, ao contrário das suas esposas que alegaram frequentemente autodefesa ou au to-protecção como justificação para o uso da força física sobre os seus maridos. O dado mais curioso é que 54% dos homens concordaram com a justificação de autodefesa das suas esposas... Neste estudo surgiram mulheres que claramente respondiam aos ataques dos seus parceiros na sequência de sentimentos de "raiva reactiva" ou então como resultado de um efeito cumulativo de várias agressões sofridas num período prolongado de abuso.

Quer se trate de estudos com amostras de estudantes universitários, de mulheres batidas (Saunders, 1986, cit. Saunders, 2002), de utentes de clínicas maritais (Cascardi & Vivian, 1995) ou de mulheres ou homens presos por violência conjugal (Busch & Rosenberg, 2004; Henning & Feder, 2004), o motivo mais frequentemente apontado para o exercício da violência física por mulheres é a autodefesa. Num estudo com população universitária, enquanto as mulheres apresentavam o dobro da probabilidade de indicar a autodefesa como motivo para o uso da força física, os homens tinham o triplo da probabilidade de apontar a intimidação como motivo (Makepeace, 1986, cit. Saunders, 2002; Nazroo, 1995).

Sejam os motivos para o exercício da violência física feminina a autodefesa, a retaliação ou a auto-protecção, é provável que, em alguns casos, tais reacções resultem em escalada da violência masculina (Straus, 1993;2004; Dobash & Dobash, 2004). Nas palavras de Bachman e Carmody, (1994), "fighting fire with fire" nas agressões íntimas pode, não só aumentar o nível da agressão, como também o risco de ferimentos graves.

De um modo geral, a investigação sobre as motivações para a violência íntima parece apoiar a existência de claras diferenças de género. As mulheres predominantemente relatam recorrer à violência enquanto autodefesa ou como retaliação a violência prévia, infligindo menos dano físico e experienciando mais medo. Ao contrário dos homens, as mulheres raramente demonstram intenção de magoar seriamente os seus parceiros, mesmo quando recorrem a armas (Nazroo, 1995). Os homens, em contraste, parecem ser mais motivados para usar a violência no sentido do exercício do poder, para dominar e controlar as suas parceiras, provocando dano físico mais grave e maiores níveis de intimidação. Segundo o estudo de Nazroo (1995), "almost all of the female violence described here does not carry that sense of

intrinsic "wrongness" that Straus attributes to all violence, because it is clearly not intimidating and nowhere near dangerous. If anything it reflects the powerless position of these women" (pp. 489).

2.2.4. Implicações Políticas, Sociais e Preventivas da Violência íntima