• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II O tráfico de drogas pela lente da produção jornalística 2.1 Moralidade no discurso

A GUERRA NA ROCINHA

3.2 Jornais estudados

3.2.1 ABC Color

O jornal ABC Color foi fundado em 8 de agosto de 1967, por Aldo Zuccolillo (1929- 2018), com o lema “Um jovem jornal com fé na pátria”111

, no período da consolidação da ditadura comandada pelo coronel Alfredo Stroessner112. A abertura do jornal representou inovação, vanguarda tecnológica, renovação editorial e uma nova forma de relaciona- mento entre proprietários da mídia e jornalistas paraguaios (Cuevas, 2017). O periódico foi o primeiro do Paraguai a contar com composição a frio na impressão, o offset e ofere- ce escrita em castelhano e guarani. O sistema substituía o linotipo e também introduzia a impressão em cores, que até então não era usada nos demais jornais de grande circulação do país. Como forma de dinamizar a leitura, o projeto gráfico era distribuído no formato tablóide. Já no primeiro ano, o jornal era distribuído para todo o Paraguai, por meio de uma tiragem de 10.000 exemplares, montante que chegou a 75.000 nos anos 70. Em 13 de março de 2016, a tiragem do ABC Color chegava a 460.000 exemplares113.

110 Traquina cita os estudos de Hall et al. (1978; p.58)

111 Site do Jornal: edição comemorativa: http://www.abc.com.py/abc-color/abc-color-renueva-el-

periodismo-1359138.html

112 De acordo com Cabral Lopes (2016), a república do Paraguai viveu entre os anos de 1954 a 1989 a

ditadura militar comandada pelo coronel Alfredo Stroessner (1912 - 2006) do Partido Colorado, legenda que permaneceu no poder por 35 anos. O autor explica as características que permitiram a permanência do regime por tanto tempo: aparência de democracia, violenta repressão, corrupção institucionalizada e ideo- logia nacionalista. (Cf.: http://revistascientificas.una.py/index.php/RE/article/view/829)

113

Consulta averiguada no próprio jornal, Cf.: https://www.abc.com.py/edicion-impresa/notas/abc-tiene- 465000-lectores-diarios-y-2320000-seguidores-en-las-redes-1461332.html

No âmbito do jornalismo como profissão, o ABC Color também representou um divisor de águas para a comunicação no Paraguai. Para satisfazer a escolha editorial do jornal, que privilegiou a imagem, a direção introduziu o profissional fotojornalista na redação, prática inédita até então. Também foi a partir do ABC Color que a profissão de jornalista no Paraguai passou a ter reconhecimento por parte do empresariado do setor de comuni- cação. A política editorial do periódico incluiu a exigência de capacitação e dedicação exclusiva dos profissionais114. Granis (2010) afirma que como garantia de trabalhar ex- clusivamente para o periódico, os jornalistas tiveram o incentivo de melhores salários, outra inovação para a época, diante do cenário da comunicação local. “Antes da ABC, os jornalistas no Paraguai trabalhavam em mais de emprego em decorrência dos baixos salá- rios. Eles eram, portanto, suscetíveis a subornos, um fenômeno que o editor ABC Aldo Zuccolillo estava determinado a evitar”.

A história do ABC Color demonstra uma das páginas emblemáticas da imprensa sul- americana. Em 22 de março de 1984, o periódico foi fechado por decisão general Alfredo Stroessner. Dias antes, em 16 de março, o proprietário Aldo Zucolillo115 fora preso por não apontar as fontes utilizadas pelo jornalista Edwin Brítez, que fizera uma entrevista com o representante do partido colorado Miguel Ángel Gonzáles Casabianca. Felicita- ções em favor do encerramento das atividades do periódico ocorreram em todo o país, como descreve o próprio jornal na edição comemorativa de 2014. Entre elas manifesta- ções de apoio a Stroessner, estão frases que apontam o periódico com merecedor da deci- são por ser “parcial, mercantilista e agitar o povo paraguaio”. Somente em 1989, com a abertura democrática, as atividades do periódico foram retotomadas.

Embora a edição comemorativa a constar na página do periódico na internet relembre o passado de combate ao ditador, estudiosos da mídia paraguaia contrapõem o posiciona- mento e ainda indicam apoio ao regime militar. Cazal (1984) classifica o encerramento das atividades do jornal como uma coincidência no jogo de cena entre o ditador e os opo- sitores como forma de manutenção do regime em uma fachada de canal aberto ao contra- ditório e à democratização. Já Segovia (2010) afirma que o:

114

Cf.: https://www.abc.com.py/abc-color/abc-color-renueva-el-periodismo-1359138.html

ABC Color (...) nasce com elogios ao governo e, sobrevive até 1984, quando os planos do proprie-

tário se contrapõem frontalmente à ditadura stronista, já decadente (...). Em 1989, o jornal foi rea- berto, tendo o proprietário se autoproclamado como ícone da luta contra a ditadura (Segovia, 2010, p.37).

No emaranhado editorial do periódico, estão a liberdade de expressão, luta contra a dita- tura, a corrupção no âmbito estatal, defesa da propriedade privada e do livre mercado. A postura editorial combativa não passaria de uma manobra para esconder as reais inten- sões do grupo, cuja diversificação nos negócios é alvo de críticas de estudiosos da comu- nicação paraguaia. O contraponto está em artigos e matérias de apoio ao ditador e cum- plicidade ao regime, também manifestada na vida privada por meio de laços políticos com o Stroessner. Além do ABC Color, o grupo Zuccolillo é proprietário de empresas ligadas aos ramos de imóveis, de shoppings centers, de importação, da construção civil e das telecomunicações (Segóvia, 2010, Sanchez, 2009).

Uma revisão histórica do posicionamento ideológico do ABC dirá que ele próprio foi (e ainda é) um forte defensor de ditaduras latino-americanas; alinhado, na maior parte do tempo com o dita- dor Stroessner, financiou inclusive reuniões do Liga Mundial anticomunista, conforme registrado nos Arquivos do Terror do Paraguai (...). Os irmãos Zuccolillo ocuparam cargos públicos durante o governo Sternista e suas empresas forneceram, desde então, bens e serviços ao Estado para- guaio. Eles sempre foram abençoados pela Embaixada Americana em Assunção e recebeu finan- ciamento do NED (National Endowment for Democracy) e a IAF (Fundação Interamericana). Até hoje continua sendo o braço ideológico mais poderoso da direita paraguaia, embora eles tentem compor seu caráter decididamente faccional, dando algum espaço para discordar em suas páginas (Segóvia, 2010, p.57).

Aldo Zuccolillo é acusado de usar no discurso editorial do ABC Color mensagens para manter aberto o leque empresarial e lançar mão do que (Segóvia, 2010) denomina como “links estratégicos” para influenciar na estrutura de poder do Paraguai. Os quatro links, conforme o autor, estão sustentados nos eixos: a oligarquia latifundiária, as multinacio- nais, a máfia (tráfico de drogas, tráfico de armas, lavagem de dinheiro) e a política. No âmbito dos setores citados, o proprietário teria aliados como general Lino Oviedo (1943 - 2013116), associações rurais, multinacionais norte-americanas e ainda teria conspirado para a queda de Fernando Lugo (Grimaldi, 2009, Segóvia, 2010). Segóvia (2010) revela as ligações de Oviedo com o crime organizado, tráfico de armas, tráfico de drogas e la- vagem de dinheiro, situações desconsideradas pelo ABC Color.

116 Foi comandante do Exército paraguaio e permaneceu exilado no Brasil, mas retornou ao Paraguai, onde

Também, segundo o autor, estariam envolvidos com o tráfico de drogas e o crime organi- zado, integrantes da associação da Seita da Lua, a quem o periódico defenderia interes- ses. Em 2000, a organização adquiriu 700 mil hectares de terras no Chaco paraguaio, o equivalente a 2% do território nacional em uma área estratégica para a manutenção do trânsito de material ilícito porque abrange as fronteiras com o Brasil e com a Bolívia. O processo de aquisição foi alvo de várias denúncias à Justiça, questionamentos desconsi- derados nas páginas do pelo ABC Color.

Zuccolillo também mantém uma ligação marcante com a Associação Rural do Paraguai (ARP), uma das organizações mais poderosas da oligarquia paraguaia. A riqueza de seus membros é base- ada na posse da terra, na produção pecuária e, em alguns casos, nas atividades ilícitas de produção e tráfico de drogas (setor dos traficantes de drogas). É um grupo heterogêneo, mas boa parte deles é feita de fortuna durante o regime militar. Como afirmado nos relatórios da Comissão da Verdade e Justiça. A frequência de aparecimento do representante do ARP ou de mensagens e / ou estudos da Associação, é quase diariamente no ABC Color, o jornal é quase um porta-voz da instituição (Segóvia, 2010, p.54-55).

Ainda no pensamento de Segóvia (2010), interesses econômicos do grupo Zucolillo su- plantariam os nacionais e, por esta razão, o editorial do ABC Color é claro na defesa de grupos multinacionais que se aliam às oligarquias paraguaias. Essa crítica é evidenciada na ligação do grupo com a UGP (União de Grêmios da Produção), que reúne proprietá- rios de grandes áreas territoriais. O grupo também estaria ligado a multinacionais como a Cargill e Monsanto, esta última patrocinadora de formações aos jornalistas do periódico. Para o autor, Aldo Zuccolillo assumiu de maneira clara a posição em defesa do próprio capital e, por este motivo, interfere na agenda do governo paraguaio e influencia no posi- cionamento crítico da população daquele país, sem capacidade de questionar a qualidade da informação recebida117 diante de elevadas taxas de analfabetismo, baixa escolaridade, evasão escolar, currículo desatualizada e fragilidade na formação docente (Roesler, 2017).

O jornal ABC Color reúne a equipe jornalística mais especializada do país. Com uma produção di- ária que varia entre 30.000 e 60.000 cópias, é a maior circulação no território paraguaio. Embora o número não seja alto (1% da população nacional), deve ser esclarecido que há uma cultura de lei- tura muito baixa no Paraguai, e é por isso que que uma grande parte do mercado de leitores é he- gemonizado por isso significa. Portanto, o jornal tem a capacidade de instalar permanentemente certas questões na agenda de todos os outros media, tanto escrita, rádio e televisão, e não apenas na media, mas nas câmaras do Parlamento e da sociedade em geral. Desta forma, pode influenciar

117 De acordo com o documento Encuesta Nacional de Demografia y Salud 1990, na primeira metade da

década de 1980, o analfabetismo atingia 25% da população paraguaia, ao mesmo tempo em que 70% ti- nham nível primário. Consultar Cf.: https://dhsprogram.com/pubs/pdf/FR30/FR30.pdf

o despedimento e / ou nomeação de autoridades, no crédito ou no descrédito dá a certos atores so- ciais e políticos, pode afetar os resultados das eleições, entre outras coisas (Segóvia, 2010).

Na imprensa paraguaia existe uma denominação específica para a maneira como o perió- dico influencia na opinião pública: é o chamado “efeito ABC Color”, que traduz o posici- onamento sobre o que deve ou não ser divulgado. Sanchez (2009) aponta que o conteúdo produzido pelo jornal é reproduzido todas as manhãs em rádios e canais de televisão. Assuntos considerados importantes são, assim, debatidos porque estão nas páginas do jornal e influenciam na maneira desigual em que a população paraguaia tem acesso à informação.

É a consequência de um dos principais problemas que afeta a sociedade paraguaia: desigualdade entre as pessoas no acesso médio de informação pública, resultado do acesso desigual a instru- mentos econômicos e simbólicos de participação na vida social. Nessa desigualdade, o campesino encontra-se em uma situação de profunda desvantagem em relação aos proprietários de terra. (Sanchez, 2009).

A capacidade de influência do periódico resultaria como fiel da balança na queda do ex- presidente Fernando Lugo118. Entre os muitos assuntos relacionados ao ex-presidente nas páginas do periódico, está a acusação de conexões com o grupo paramilitar “Exército do Povo Paraguaio”, ligado a conflitos rurais, assassinatos e sequestros. Sanchez (2009) aponta que a campanha editorial ligando Lugo ao grupo começa em 1999 indicando a “necessidade de impugnação do presidente”. A linha editorial do ABC Color, contudo, não foi sempre contrária a Lugo, mesmo tendo à frente do projeto governamental a re- forma agrária, bandeira que o elegeu. Interesses econômicos que ligariam os proprietários do grupo ABC Color a Juan Carlos Wasmosy119, Horácio Cartes120 e à instalação de em- presas ligadas ao setor de telecomunicações e multinacionais influenciaram na mudança.

A agenda política de Lugo, que enviou ao Congresso projeto prevendo a proibição da instalação de empresas a 50 quilômetros da fronteira com o Brasil e a limitação do uso de

118 Fernando Lugo assumiu a presidência do Paraguai em 2008, eleito pela coligação Alianza Patriótica

para el Cambio, rompendo seis décadas de poder do Partido Colorado. Foi o primeiro governo eleito de- mocraticamente desde o fim da ditadura militar naquele país. Sem contar com o apoio do parlamento, Lugo não conseguiu aprovar as medidas propostas na campanha. O impeachment foi consolidado após conflito entre campesinos e policiais, no dia 15 de junho de 2012. Dezessete pessoas morreram e o presidente foi acusado de não conseguir manter a ordem democrática e desrespeitar a Constituição. A proposta de afas- tamento foi aceita pela Câmara e o Senado, sendo consolidada em 24 horas.

119 Integrante do Partido Colorado, foi presidente do Paraguai entre 1993 e 1998. 120 Integrante do Partido Colorado, foi presidente do Paraguai entre 2013 e 2018.

produtos geneticamente modificados na agricultura também são apontados como raízes da campanha mediática contra o ex-presidente (Julia Varela y Federico Larsen; Stella Coloni, 2012; Grimaldi, 2012; Cardoso e Rosseto, 2017). Talavera (2015) aponta que entre as implicações sociais da interferência do grupo na política paraguaia está a perpe- tuação da pobreza, da desnutrição, da exploração de crianças e adolescentes e do abuso sexual infantil.