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Nos primeiros meses do ano de 1881, o deputado Joaquim Nabuco percorreu alguns países europeus divulgando o movimento abolicionista brasileiro. Esteve em Portugal, na Espanha, na França e na Inglaterra. Em todas as cidades em que passava era recebido como um grande líder abolicionista e mantinha contato com personalidades e instituições empenhadas nas lutas abolicionistas ou que delas outrora haviam participado. Nabuco soube aproveitar muito bem essas ocasiões para divulgar a sua causa e a instituição que representava – a Sociedade Brasileira contra a Escravidão (SBCE) – e também soube se apresentar como o principal expoente da luta contra a escravidão no Brasil. Em seus discursos ou textos, produzidos durante essa viagem, houve sempre uma preocupação latente: dissociar aquilo que ele denominava como o “movimento abolicionista brasileiro” de uma ação filantrópica. Para Nabuco, o

abolicionismo no Brasil era uma ação de estadistas: “neste momento a escravidão é desconhecida na Europa, e, por isso, os movimentos abolicionistas são criticados como actos de philantropos, em logar de serem comprehendidos como acção política de estadistas”102.

Num texto produzido para um jornal português, Nabuco salientava que sua maior preocupação não era a sorte dos negros, embora fosse simpático a ela; aquilo que o preocupava era a sorte do país: aqui, mais uma vez se observa a sua intenção de dissociar o movimento abolicionista de uma ação filantrópica e o esforço por caracterizá-lo como um movimento que transcendia a preocupação com a liberdade dos escravos. O que conduzia a luta pela abolição no Brasil era uma ação política de homens preocupados com a possibilidade de estruturar o futuro do país nos marcos do trabalho livre e do progresso:

“Luctando pela Emancipação, faço-o sobretudo para livrar o meu paiz da escravidão e dos seus effeitos perniciosos, para libertar o solo, por assim dizer. A sorte dos negros inspira-me a mais viva sympathia; mas o que principalmente me preoccupa é a sorte do paiz, esterilisado pela escravidão, despovoado por ella, com uma população de dez milhões de livres, que dependem do trabalho forçado de um milhão de escravos; porque a escravidão tornou o trabalho uma conscripção repugnante, em vez de um voluntariado em que todos tomassem parte”103.

Essas passagens deixam clara a intenção de Nabuco de distinguir o abolicionismo brasileiro de outros abolicionismos, principalmente o inglês e o estadunidense, nos quais a religião desempenhou uma função central104. O motivo

102 Discurso de Nabuco no Banquete Abolicionista de 23 de março de 1881, ocorrido em Londres.

Reproduzido em SILVA, Leonardo Dantas (Org.). O Abolicionista, p. 82. Noutro discurso, também em Londres, Nabuco reproduz quase literalmente a mesma observação. Idem, p. 95. Vale ressaltar que a ênfase em afastar o epíteto de filantropo de algum modo indicava uma certa rejeição e crítica dos europeus à questão abolicionista brasileira, que Nabuco procurava cautelosamente contornar. Sobre o caráter secular do abolicionimo brasileiro, ver ROCHA, Antonio Penalves. Abolicionistas brasileiros e

ingleses, p. 73.

103 Carta de Nabuco ao Diario de Noticias (de Portugal), em 11 de janeiro de 1881. Reproduzida em O

Abolicionista, p. 59.

104 A distinção entre o abolicionismo inglês e o brasileiro é salientada pelo próprio Nabuco: “em outros

paizes a propaganda da emancipação foi um movimento religioso, pregado do pulpito, sustentado com fervor pelas differentes egrejas e communhões religiosas. [...] No Brazil, porem, o Abolicionismo é antes

desta distinção, segundo Nabuco, residia no fato de que o abolicionismo europeu estava voltado para as colônias, e, por conseguinte, os negros não eram elementos permanentes da população metropolitana. Tais características possibilitavam entender o abolicionismo europeu como um grande ato de generosidade para com as vítimas da opressão. No Brasil, porém, essa perspectiva era impossível, já que a população escrava e negra estava indissociavelmente ligada à constituição do povo brasileiro. Nesse sentido, o abolicionismo devia tratar de eliminar os dois tipos contrários criados pela escravidão: o escravo e o senhor, de modo a garantir que todos desfrutassem dos mesmos direitos civis105. Por isso, Nabuco reivindicava que se considerasse como um ato político e não filantrópico o movimento abolicionista existente no Brasil.

Esse ponto é extremamente importante para se entender a natureza do antiescravismo de Nabuco. Ele nunca negou sua preocupação em relação ao sofrimento e à sorte dos escravos e ex-escravos, mas, como ele próprio sublinhou, sua luta pelo fim da escravidão devia ser entendida nos marcos de um movimento político pela transformação das bases econômicas e sociais do país. Dito em outros termos, a luta pelo fim da escravidão, embora também devesse ser vista como um ato de humanidade, antes deveria ser entendida como uma medida política e também econômica com vistas a favorecer a modernização do país e a implantação do modelo de sociedade liberal.

Tanto assim que no prefácio que Nabuco escreveu à 1ª edição de seu livro O Abolicionismo, em 1883 – que de modo estranho não consta integralmente em algumas edições posteriores da obra – ele se preocupava em mencionar que o livro em questão seria acompanhado por uma série de outros trabalhos que cuidariam das demais reformas106 todas necessárias para garantir que o país gozasse de condições para

de tudo um movimento político, para o qual sem dúvida concorre o interesse pelos escravos e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brazil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade”. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, p. 18-9.

105 Idem, p. 19-20.

106 Evaldo Cabral de Melo nos informa que “[...] Sancho de Barros Pimentel escreveria sobre a

descentralização do Império e a reforma do sistema representativo, Rui Barbosa sobre a liberdade religiosa, Rodolfo Dantas sobre a instrução pública e o próprio Nabuco sobre a reconstrução econômica e a política externa do Império”. In Nabuco, Joaquim. Diários. 1873-1910. (Prefácio e notas de Evaldo Cabral de Mello). Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005, v. 1, p. 247. Ver também a esse respeito as cartas de Nabuco a Sancho de Barros Pimentel, de 23 de julho e 31 de agosto de 1883, in NABUCO, Joaquim.

competir com as demais nações. Fazia ainda questão de acrescentar que a abolição era o complemento da Independência, pois era o passo necessário para alçar o Brasil à condição de país livre.

Nota-se, através do prefácio de O Abolicionismo, que havia uma espécie de projeto, minimamente delineado entre Nabuco e seus amigos, cuja finalidade era reordenar as estruturas sobre as quais estava assentado o país, assim como apresentar propostas para o encaminhamento dessas questões. Embora um pouco longa, vale a pena citar tal passagem:

“Este volume é o primeiro de uma série cujo fim é apresentar á massa activa dos cidadãos Brazileiros, com os melhores fundamentos que seja possivel ao auctor estabelecer, as reformas que para nós são realmente vitaes, considerando-se que a vida de um paiz não é só vegetativa, mas é também moral.

Por numerosas razões, adduzidas, por assim dizer, em cada pagina do presente volume, a emancipação dos escravos e dos ingenuos, e a necessidade de eliminar a escravidão da constituição do nosso povo, isto é, o Abolicionismo, devia ter precedencia ás demais reformas. De facto, todas as outras dependem d’essa, que é propriamente a substituição dos alicerces da nossa patria. Os volumes seguintes terão por objecto: a reforma economica e financeira, a instrucção publica, a descentralização administrativa, a egualdade religiosa, as relações exteriores, a representação política, a immigração Européa; e, quem quer que seja o escriptor, serão todos inspirados pelo mesmo pensamento – o de elevar o Brazil á categoria de membro util da humanidade, e habilital-o a competir no futuro com as outras nações da America do Sul, que estão ainda crescendo a seu lado, fazendo d’elle uma communhão voluntaria para todos os associados, liberal e progressiva, pacifica e poderosa.

[...] Quanto a mim, julgar-me-ei mais do que recompensado, se as sementes de liberdade, direito e justiça, que estas paginas contêem, derem uma bôa colheita no solo ainda virgem da nova geração; e se este livro concorrer, unindo em uma só legião os abolicionistas Brazileiros, para apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em que vejamos a Independencia completada pela Abolição, e o Brazil elevado á dignidade de paiz livre, como o foi em 1822 á de nação soberana, perante a America e o mundo”107.

Nas próprias palavras de Nabuco, a eliminação da escravidão deveria preceder a quaisquer outras reformas (é necessário considerar essa expressão de modo bem preciso, ou seja, reforma é entendida como um aprimoramento, não como uma revolução), de modo a fornecer à nação novos alicerces materiais e morais. As reformas seguintes deveriam contribuir para moldá-la de acordo com os parâmetros do liberalismo, dotando-a da capacidade de progredir, de forma a torná-la poderosa, contudo pacífica. Nesse sentido, é clara a associação estabelecida pelo autor entre a necessidade de se abolir a escravidão e a criação das condições necessárias para o progresso, que, como se verá adiante, só poderia ser pensado através do trabalho livre e das formas de vida liberais. Tal fato nos fornece uma chave interpretativa, pois explicita o modo pelo qual Nabuco entendia a questão da liberdade, ou seja, para ele, a liberdade dizia muito mais respeito a um problema político ou público que propriamente individual.

Essa abordagem da escravidão foi muito bem explicitada por José Murilo de Carvalho, que alerta para o fato de que na tradição luso-brasileira, diferentemente dos outros países europeus e dos Estados Unidos, a condenação da violação do princípio da liberdade sempre esteve associada mais a razões políticas que filosóficas ou religiosas. Se durante o período colonial, os raros argumentos, baseados na fé, que foram apresentados contra a escravidão108 e contra a maldade dos senhores encontravam como obstáculo intransponível a razão colonial e os interesses do Estado português, depois da Independência, as diversas concepções dos interesses do Brasil é que determinaram a dinâmica da questão escravista109. Isto é, tanto os argumentos

contrários à emancipação quanto os favoráveis tinham como balizas de suas propostas o cuidado com o futuro do país, numa nítida referência às questões econômicas e sociais que adviriam com a adoção de uma ou outra medida.

Ainda segundo José Murilo, Nabuco não agia por filantropia, mas motivado por uma razão política, que praticamente obscurecia todos os demais argumentos

108 Cf. BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo,

1977. A 1ª ed. desta obra é de 1705; ver também ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado,

empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. Petrópolis: Vozes, 1992. A edição original é de 1758.

109 Cf. CARVALHO, José Murilo de. Escravidão e razão nacional. In Dados. Instituto Universitário de

presentes em sua obra sobre o valor da liberdade para o indivíduo moderno. Dada, portanto, sua preocupação com a nação e uma sociedade liberal pensadas a médio e a longo prazo, não é de se espantar que o progresso do indivíduo tenha ficado em segundo lugar para ele, o que talvez ajude a explicar que após a abolição praticamente nada tenha sido feito em favor dos ex-escravos110.

Deste modo, a ênfase na liberdade individual, erigida como um dos preceitos mais caros ao liberalismo, não desfrutaria da devida ressonância no pensamento de Nabuco. A liberdade dos escravos não era buscada para afirmar a liberdade característica de todo ser humano, garantida pelo direito natural, tal como teorizada pela filosofia política a partir do século XVII e principalmente do XVIII111. Ela era

buscada tendo em vista a construção do país, isto é, a liberdade defendida por Nabuco

110 Cf. CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 296-307. Aqui o autor se refere à concepção de liberdade

do indivíduo como um direito natural, tal como pensada por Locke, Montesquieu, Rousseau e os enciclopedistas. Sem entrar na discussão sobre o caráter da liberdade para esses autores, em especial em Locke, aquilo que José Murilo quer frisar é que esta concepção de liberdade não podia ser objeto de compromissos, pois tratava-se de um princípio universal que deveria obrigar a todos. Op. cit., p. 289.

111 Sobre esse ponto é necessário fazer algumas ressalvas. É possível encontrar no pensamento liberal

uma série de nuanças a respeito do modo de se compreender a liberdade. Autores consagrados como pilares do liberalismo não hesitaram em sacrificar a liberdade diante de outros princípios, tais como a propriedade ou a “raça”. Portanto, aqui, é preciso entender o conjunto de proposições liberais como ideologia, e do mesmo modo o conjunto de proposições formulado pela Economia Política, pelas teorias do progresso e pelas teorias cientificistas. Esse cuidado com as promessas não cumpridas do pensamento liberal facilita inclusive a compreensão do próprio posicionamento de Nabuco, pois ao mesmo tempo em que ele se apresentava como um dos paladinos do pensamento liberal brasileiro, suas ações apontavam numa direção que muitas vezes desautorizavam os princípios liberais. Desta forma, o posicionamento singular de Nabuco, quando visto em relação ao sistema capitalista, expunha a essência do funcionamento deste sistema e ajudava a compreender o modo peculiar pelo qual as práticas liberais eram adotadas no país. Ver a respeito ADORNO, Theodor W. Sobre a lógica das ciências sociais, in COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986, p. 48; sobre as promessas não cumpridas – e que já poderiam ter sido – do liberalismo e do sistema capitalista, ver ADORNO, Theodor W.; Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985; ver ainda Ellen M. Wood, para quem a igualdade formal de direitos se torna inócua diante das desigualdades reais: “é o capitalismo que torna possível uma forma de democracia em que a igualdade formal de direitos políticos tem efeito mínimo sobre as desigualdades ou sobre as relações de dominação e de exploração em outras esferas”. WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo. A renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 193; ver em Losurdo, como o avanço do liberalismo, em muitos países, veio acompanhado de uma restrição democrática em que se procurou afastar boa parcela da população dos processos decisórios ou negar-lhes simplesmente os direitos políticos. Ou então, como que numa espécie de desenvolvimento desigual e combinado, a des- racialização das metrópoles européias significou a racialização das populações coloniais. LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo. Triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora UNESP, 2004, especialmente p. 82. Por último, ver em Losurdo como o avanço do movimento liberal trouxe consigo formas severas de coerção, entre elas a escravidão, sobretudo àqueles que não participavam da classe dominante, quer política ou economicamente. LOSURDO, Domenico.

era necessária para a implantação de um modelo de civilização material e moral que, porventura, requeria o fim do trabalho escravo e a implantação do trabalho livre.

No fundo, tal procedimento guardava uma semelhança muito grande com o dos pró-escravistas, pois em ambos os casos o negro era visto somente pelo viés econômico, ou, em último caso, pela função que ele, como escravo ou homem livre, desempenhava na sociedade: para os pró-escravistas, como escravo, o negro era lucrativo e deveria permanecer nessa condição; para os antiescravistas, como escravo, o negro não era lucrativo e arruinava o futuro do país, devendo, portanto, ser libertado.

Todavia, a rigor, não é possível falar que Nabuco concebera um projeto bem acabado de modernização nacional. Na realidade, são propostas de intervenção imediata ou a curto prazo, sem uma coordenação bem clara e sem qualquer definição detalhada. Em síntese, pode-se afirmar que elas apresentam apenas uma espécie de direção a ser seguida nas reformas. Tal fato não lhes diminui a relevância, não obscurece os objetivos perseguidos e nem escamoteia a sua diretriz liberal e a sua intenção.

Essas propostas são derivadas de uma análise da sociedade brasileira, análise esta toda estruturada sobre o trabalho escravo e sobre a relação existente entre a forma pela qual se organizava a produção e se constituía a sociabilidade. Certamente Nabuco fora o primeiro analista brasileiro a procurar compreender a estruturação do país a partir da escravidão e como essa instituição acabou por dar forma, não somente às relações de trabalho, mas à política, à economia, às formas mais elementares de relacionamento social, à composição do povo e da classe dominante, e também à montagem e funcionamento das instituições governamentais, civis e inclusive partidárias, à distribuição social e econômica dos poderes. Enfim, ele conseguiu mostrar o verdadeiro caráter de um sistema escravista, aquilo que de fato distingue uma sociedade com escravos de uma sociedade estruturada a partir da escravidão, qual seja, o trabalho escravo como o organizador de todas as instâncias da sociabilidade, não somente daquelas envolvidas diretamente com a produção e o trabalho.

Há que se considerar, portanto, que tal análise traz consigo um método interpretativo que elege o trabalho escravo como o núcleo a partir do qual decorrem todas as mazelas que envolvem a sociedade. Nada lhe é indiferente, ou melhor, tudo

lhe está submetido e é por ele administrado. Outra característica desta análise é a atemporalidade atribuída à escravidão, expediente com o qual ele perpassa Egito, Grécia, Roma, Idade Média, Rússia, Estados Unidos e Caribe como se todos esses lugares tivessem vivenciado um único modelo de trabalho escravo e de sociedade escravista sem maiores distinções. Ao assim proceder, Nabuco acabava por construir uma imagem imutável da escravidão, muito mais fácil de ser combatida porque facilmente estereotipada e associada à decadência. Noutras palavras, ao trazer à lembrança Egito, Grécia, Roma e Idade Média, Nabuco sugeria que a decadência ou atraso por que passaram essas civilizações tinha relação direta com a escravidão112.

No fundo, sua análise era até mais severa: para ele a decadência era uma conseqüência incontornável de todos os povos que lançaram mão da escravidão e dela não souberam se desfazer no momento oportuno. Em relação aos seus exemplos mais recentes, como a Rússia, as Antilhas e os Estados Unidos, todos eram mobilizados com vistas a chamar a atenção para o fato de que qualquer sociedade que se pretendesse moderna teria necessariamente de abolir o trabalho escravo e implantar o trabalho formalmente livre113. Nestes exemplos não estava em causa a especificidade de cada país e as peculiaridades do trabalho não-livre; era o exemplo que importava: a manutenção ou não da escravidão.

E Nabuco foi eficiente em sua missão de apresentar o escravismo como o principal óbice a travar o desenvolvimento do país. Ao mostrar que a escravidão era a responsável por toda a estruturação social e econômica, ele soube transformá-la também num problema que dizia respeito a todos os grupos sociais e ao próprio Estado brasileiro, uma vez que ela impedia a formação plena da nação e barrava o acesso da maior parte da população aos direitos civis e políticos.

112 Esse procedimento, aliás, provavelmente Nabuco o tenha tomado de outros autores. Augustin Cochin,

antiescravista francês e publicista, utilizou a mesma estratégia para criticar a escravidão. Independentemente das diferenças de tempo e de contexto histórico, o país que adotasse essa instituição estava irremediavelmente condenado à desordem, às dívidas e, em último caso, à ruína. Ver a respeito, COCHIN, Augustin. L’abolition de l’esclavage. Paris, Jacques Lecofre et Guillaumin, 1861, v. 1, especialmente Introdução, págs. xxvi e segs. Agradeço ao Prof. Antonio Penalves Rocha esta indicação.

113 Cf. NABUCO, Joaquim. A escravidão. (Compilação, organização e apresentação de Leonardo

Dantas Silva). 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1, 25, 35, 58-64; O Abolicionismo, p. 26, 122, 173, 176; Campanha abolicionista no Recife, p. 36, 41, 74; NABUCO, Joaquim. Campanhas de

imprensa. [1884-1887]. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, 71; SILVA, Leonardo Dantas (Org). O Abolicionista, p. 82, 95.

Entretanto, ao difundir a concepção de que o trabalho escravo era o responsável direto por todos os problemas que atingiam o país, e ao defender que somente com sua eliminação se poderia falar num liberalismo constituído sobre bases não-mentirosas114,

Nabuco acabou não explicando a junção de liberalismo e escravidão há muito existente no Brasil e em outros países. Igualmente se esquivou de abordar os desenvolvimentos econômicos gerados a partir da escravidão e a montagem de toda estrutura produtiva que ela comandou. Da mesma forma, não entrou em sua avaliação o fato de que a escravidão fora a responsável direta pela formação dos engenhos, das fazendas, e, conseqüentemente, das cidades, assim como de praticamente todas as benfeitorias realizadas no país em aproximadamente quatro séculos. Na argumentação de Nabuco, aquilo que estava em questão era a associação de escravidão e decadência, no intuito de mostrar que uma reforma do sistema produtivo era indispensável e inadiável, sob pena do país vivenciar uma bancarrota irreversível, uma vez que a escravidão não