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A Economia Política, como se verá a seguir, surge na Europa durante a segunda metade do século XVIII. Um dos seus fundamentos mais importantes é o trabalho livre, pois era somente por meio dele, segundo essa ciência, que se poderia sustentar a iniciativa pessoal e a emulação, principais motores do progresso, do bem-estar e do enriquecimento dos indivíduos e dos países. Todavia, por essa época, a concepção do trabalho livre e a maioria das novas idéias econômicas encontravam-se restritas a pequenos grupos de estudiosos. Quer na América, na África, na Ásia ou até mesmo em partes da própria Europa, a produção estava baseada majoritariamente em regimes de trabalho não-livres, tais como a servidão e a escravidão250. Em outros termos, a produção estava amparada na dependência e sujeição pessoal dos trabalhadores. Isto é, formas de trabalho não-livre em muito prevaleciam sobre o que era considerado por aqueles economistas como trabalho livre251. A escravidão era uma dessas formas de

250 Vale ressaltar que para muitos economistas a servidão era entendida como uma espécie de

escravidão, pois nesse julgamento não estava em questão a natureza dessa ou daquela forma de submissão do trabalhador, mas o fato dele não poder dispor livremente de sua iniciativa nem ter o poder de decidir sobre o destino dos frutos do seu trabalho. Pode-se inclusive afirmar que as expressões servidão e escravidão, no século XVIII, eram intercambiáveis, como se nota em Adam Smith, A riqueza

das nações, v.1, p. 328.

251 Ver a respeito DRESCHER, Seymour. Capitalism and antislavery. British mobilization in comparative

perspective. Oxford: Oxford University Press, 1987, p. 1. No final do século XVIII, ainda que o trabalho escravo fosse praticamente inexistente na França, estima-se que um terço da atividade comercial

trabalho não-livre e, embora ela já estivesse praticamente extinta nos países mais ricos da Europa, era predominante na maior parte das colônias americanas e no restante do mundo conhecido.

Ainda que a escravidão já tivesse sido abolida em todos os países europeus mais avançados e não se apresentasse como um sério problema interno, ela exercia amiúde enorme influência sobre eles, e, mesmo na França, até o final do século XIX alguns publicistas discutiam a necessidade de se adotar internamente o trabalho escravo252. França e Inglaterra, os dois berços da Economia Política, possuíam colônias

escravistas no Novo Mundo e algumas de suas cidades portuárias – como Liverpool e Marselha – haviam conquistado suas riquezas servindo como entrepostos ao tráfico de escravos e aos produtos coloniais. Os efeitos da política pró-escravista, que estava intimamente relacionada à política colonial, se refletiam diretamente nos países metropolitanos. A crítica ao monopólio colonial, que aos olhos de alguns economistas era um fardo para a metrópole, veio acompanhada da crítica à escravidão, considerada como uma das principais responsáveis pela baixa rentabilidade colonial253.

Mas a crítica dos economistas políticos à escravidão não era inédita. Essa instituição já vinha sendo criticada na Europa, em especial na França e na Inglaterra, ainda que de modo não-sistemático, desde o século XVII. Todavia, somente durante o século XVIII foi que tal combate se intensificara. Do lado inglês, a crítica à escravidão foi formulada pela filosofia moral e por grupos religiosos. Já do lado francês, os iluministas foram os responsáveis pela crítica a essa instituição.

francesa era dependente da escravidão, aí compreendidas todas as suas conexões. Ver a respeito BUCK-MORSS, Susan. Hegel and Haiti. Critical Inquiry, v. 26, n. 4. (Verão, 2000), p. 828.

252 Ver a respeito MELON. Essai politique sur le commerce. In DAIRE, Eugène. Économistes-financiers

du XVIIIe siècle. Osnabrück: Otto Zeller, 1966. A primeira edição é de 1734. Ver ainda De la nécéssité

d’adopter l’esclavage em France. Texte anonyme de 1797 presenté par Myriam Cottias e Arlette Farge. Paris: Bayard, 2007.

253 WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Rio de Janeiro: Americana, 1975, especialmente o

capítulo VIII. Talvez o maior exemplo da crítica dos economistas às colônias tenha partido de Adam Smith, através do capítulo VII, do Livro IV, de A riqueza das nações, que trata das colônias. Ali Smith criticava a política colonial, secularmente adotada pelos estados europeus, ao dizer que em muitos casos os maiores beneficiários de tal política foram as colônias e não as metrópoles. Em relação ao monopólio comercial dos produtos coloniais, Smith alegava que as metrópoles, em muitos casos, ao contrário do que pensavam os defensores de tal comércio, mais perderam do que ganharam, justamente pelo desvio de capitais metropolitanos a que foram obrigadas a recorrer para a manutenção de toda a rede comercial, capitais esses que poderiam render mais se aplicados corretamente no comércio e na produção interna. Cf. SMITH, Adam. A riqueza das nações, v. 2, especialmente págs. 55-112.

Entretanto, é imprescindível salientar que não houve convergência entre elas. A crítica elaborada contra a escravidão por essas vertentes divergia tanto no plano teórico quanto nos propósitos práticos. Do lado dos iluministas, a escravidão era condenada com base na teoria política clássica; já do lado da filosofia moral inglesa e dos grupos religiosos, sem abrir mão desses parâmetros políticos, foi acrescentada a noção de benevolência e de caridade. Assim, os iluministas fundamentaram seus ataques ao escravismo demonstrando o quanto essa instituição contrariava o direito natural e a equanimidade existente entre os homens. Os ingleses, por sua vez, enfatizaram a filantropia como o fator humano responsável por garantir a liberdade254.

a) A crítica religiosa à escravidão

Em relação à crítica religiosa que motivaram os movimentos antiescravistas europeus, David Brion Davis afirma que os homens não poderiam compreender adequadamente as contradições morais inerentes à escravidão até que alguma transformação religiosa significativa alterasse suas idéias a respeito do pecado e da liberdade espiritual: “[os homens] não sentiriam uma obrigação de combater a escravidão como um mal positivo enquanto sua existência não parecesse ameaçar a segurança moral proporcionada por um sistema de valores que harmonizava desejos individuais com objetivos e sanções socialmente definidos”255.

Nesse sentido, até o século XVI a escravidão nunca foi vista como uma contradição moral, pois ela era entendida como uma espécie de expiação do pecado; ademais, havia uma crença – em relação estreita com a cosmologia em vigor – de que a subordinação era algo natural ao homem e uma condição legal a partir da queda de Adão. Segundo Brion Davis, somente quando houve uma alteração na noção de

254 Para uma apreciação mais detalhada da divergência existente entre essas duas correntes contrárias à

escravidão, ver SYPHER, Wylie. Hutcheson and the "Classical" Theory of Slavery. In The Journal of

Negro History, v. 24, n. 3 jul. 1939, p. 15.

255 DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização

pecado foi que a escravidão se tornou um elemento de tensão no sistema de valores da cultura ocidental.

A nova noção de pecado, porém, começou a ser gestada a partir de meados do século XVII quando algumas seitas milenaristas passaram a admitir que o homem, na busca de sua salvação, podia substituir os rituais e sacramentos da Igreja por uma nova concepção de história. Essa nova forma de conceber a história facultava ao homem a possibilidade de romper as barreiras do “estático” e do “estabelecido”, liberando-o para pensar a si próprio como uma pessoa inserida no tempo, como um ser passível de aperfeiçoamento.

Toda essa mudança, entretanto, não era uma novidade do protestantismo. Ela encontrava suas raízes nos ensinamentos milenaristas de um religioso calabrês do século XII, Joaquim di Fiore, que, por sua vez, retomava as três etapas da mística judaica. Tal concepção consistia em procurar entender a história como um processo contínuo em direção à perfeição. O homem teria caminhado de uma primeira era, que se baseava numa submissão escrava a um Deus autoritário, para uma segunda era, em que o temor àquele Deus autoritário cedia espaço a uma obediência filial a Cristo; a terceira era, que estava próxima, e que vinha instituir o Reino de Deus sobre a terra, desconhecia a servidão e a autoridade institucional256. Vale adiantar aqui que as concepções de progresso e de ciência do século XVIII retomam essas três etapas, pois ambas deixam de ser compreendidas como estanques e passam a ser vistas como se estivessem num contínuo movimento em busca de uma perfeição que só podia ser alcançada pela marcha do tempo257.

Deste modo, Deus pôde ser retratado mais como uma força revolucionária e transformadora do que como um Deus imóvel, ao qual o homem deveria se encaminhar. Assim, algumas seitas puderam enfraquecer toda uma concepção organizadora da ordem social, que se estruturava por meio da noção do pecado e, conseqüentemente, da busca de sua reparação. Quando o milenarismo e a idéia de

256 Ver a respeito SERVIER, Jean. Histoire de l’utopie. Paris: Gallimard, 1991, p. 378. Para uma melhor

apreciação da influência de Joaquim de Fiore na Idade Media, ver REEVES, Marjorie. The influence of

prophecy in the later middle ages. A study in Joachimism. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1993, especialmente a parte 1.

perfeição convergiram, pôde-se perceber que a ordem social estava alicerçada sobre a escravidão. Concomitantemente, com o desprestígio da teologia dogmática e a valorização da idéia de revelação, através da Luz Interior – adotada pelos quakers –, as racionalizações que identificavam os costumes antigos – entre eles a escravidão – com a lei natural passaram a ser contestadas258.

A partir dessas premissas foi possível contestar, portanto, a idéia de que os escravos eram simplesmente pecadores que expiavam suas culpas por meio de sua condição degradada, como se costumara afirmar e acreditar. Uma vez contestada tal idéia, seguiu-se a inversão – se assim se pode dizer – dos elementos da equação: os negros passaram a ser vistos como escravos do pecado porque eram escravos dos homens. Se os negros não levavam uma vida de acordo com as Escrituras, se sua condição era semelhante à de um condenado, à de um desgraçado, tais fatos não se deviam à expiação dos pecados de seus ancestrais, mas aos homens que eram seus proprietários. Dado esse raciocínio, o próximo passo não tardou a aparecer: não eram os negros os pecadores que deviam expiar suas faltas através da escravidão; a própria instituição da escravidão era, por excelência, pecado; assim como eram pecadores aqueles que lançavam mão dessa instituição ou que para ela de alguma forma contribuíam.

Como poderia então o homem se salvar se, ao possuir escravos ou contribuir para que outros possuíssem, ele impedia o seu semelhante de desfrutar da liberdade para a qual nascera? Como poderia se salvar se ele contribuía para o adultério quando separava as famílias ou então impedia que os matrimônios se concretizassem? Como poderia ele se salvar se violava as santas leis do Evangelho ao lançar mão da força física para obrigar outros homens, contra a sua própria vontade, a realizar tarefas para as quais não exprimiam o menor desejo ou muitas vezes nem sequer possuíam condições para tal? Vista por esse ângulo e concebida doravante como um entrave ao aperfeiçoamento moral, a escravidão passava a ser enxergada por algumas seitas, especialmente a dos quakers, não apenas como mais um dos vários males que os

afligiam, mas como a fonte primordial de toda a iniqüidade e que, por isso mesmo, não podia ser tolerada259.

Vale a pena chamar a atenção para alguns elementos importantes dessa nova conceituação da escravidão, que foi levada adiante por parte dos movimentos religiosos entre os séculos XVII e XVIII. A crítica à escravidão, formada na tradição religiosa, só foi possível pela reconfiguração conjunta da noção de pecado, de natureza humana e de progresso. Somente quando o homem passou a conceber a si mesmo como passível de aprimoramento e desejou participar da perfeição através de seu próprio esforço e não mais pela graça divina foi que ele pôde rever sua concepção de pecado e sua atuação diante dos problemas terrenos, até então considerados como decorrentes da queda original. Nessa nova perspectiva, o homem podia seguramente interferir de modo eficaz para a busca de sua perfeição e, nesse caminho, os problemas terrenos não mais eram entendidos como uma expiação do pecado original, aos quais deviam, portanto, se resignar. Agora eles eram vistos como passíveis de serem contornados e às vezes até evitados.

Ressalte-se que essas três mudanças parecem ter contribuído muito seriamente para os propósitos coloniais da Inglaterra, uma vez que podiam ser mobilizadas em forma de ação, através da idéia de aprimoramento civilizacional e, por outro lado, praticamente não apresentavam nenhum risco à ordem social260.

b) A crítica iluminista à escravidão

Na Europa, a outra vertente crítica à escravidão foi tributária direta das idéias produzidas pelo Iluminismo. Essa crítica secular do escravismo pôde contar então com dois tipos de argumentos: um, que se baseava no direito natural e defendia que a liberdade era um atributo inseparável do ser humano; outro, que entendia a escravidão como um sério obstáculo para o ordenamento jurídico e para o bem público do país.

259 Idem, p. 346-63. 260 Idem, p. 402-3.

Esse segundo argumento ajudou a criar e a difundir a idéia de que a escravidão era menos produtiva (ou, em última instância, lucrativa) que o trabalho livre. Mas pode-se adiantar que ambos, tanto o argumento originado do direito natural, quanto o que pregava a maior lucratividade do trabalho livre em relação ao escravo, serão acampados pela Economia Política e utilizados no combate à escravidão.

Em relação ao primeiro, as idéias políticas de John Locke foram fundamentais para o desenvolvimento da noção moderna de direito natural. Ainda que o filósofo inglês não condenasse a escravidão em seus escritos, e até a defendesse como legítima diante de certas circunstâncias261, Locke construiu a noção de que a sociedade é composta por indivíduos autônomos, que encontram sua verdadeira humanidade ao exercer a condição de proprietários262. E, para ele, a propriedade de si mesmo deveria consistir na mais importante dessas propriedades – por assim dizer, a primordial. Essa idéia fora utilizada por seus discípulos para sustentar que a natureza e a sociedade somente seriam compatíveis se os indivíduos pudessem contar com uma espécie de centro inviolável de autonomia e autodireção. A partir desses desenvolvimentos teóricos, a visão tradicional sobre a escravidão, que entendia o escravo como propriedade de outrem e destituído de quaisquer direitos, ficava irremediavelmente prejudicada.

261 Para os propósitos deste trabalho basta apontar que nos escritos de John Locke convivem lado a lado

a idéia de igualdade natural entre todos os seres humanos e a idéia de desigualdade econômica e política. E foi justamente através da harmonização entre igualitarismo e desigualdade que se tornou possível a Locke legitimar a escravidão em certas circunstâncias, ainda que defendesse a liberdade natural de todos os homens. Rolf Kuntz nos lembra que “não se pode interpretar seus escritos [de Locke], corretamente, sem levar em conta a idéia de igualdade como fundamento de toda a construção política. E não se pode ser fiel às suas idéias, ao tentar reproduzi-las, sem mostrar seu compromisso com a desigualdade econômica e política”. KUNTZ, Rolf. Locke, liberdade, igualdade e propriedade. Instituto de Estudos Avançados, 1997. (Coleção Documentos. Série Teoria Política, 34), p. 19. Essa perspectiva parece ser compartilhada por outra intérprete de Locke: “A presença do escravo, no Segundo tratado, nada apresenta de ‘contraditório’ com o liberalismo: prática e teoricamente, do ponto de vista heurístico ou ético, a justificativa da escravidão é uma conseqüência última, que deriva dos seus pressupostos: o poder atribuído ao espécime perfeito, de confiscar, de modo total, os predicados constitutivos da pessoa humana, naqueles considerados defeituosos e nocivos”. FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. “All the word was America”. John Locke, liberalismo e propriedade como conceito antropológico. In REVISTA USP, n. 17, 1993, p. 49.

262 Cf. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Ensaio sobre a origem, os limites e os fins

verdadeiros do governo civil. Petrópolis: Vozes, 1994, especialmente capítulos II e V; ver ainda KUNTZ, Rolf. Locke, liberdade, igualdade e propriedade, p. 19; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. “All the word was America”, p. 40.

Deste modo, a noção de liberdade que Locke associara ao governo civil, negando o poder autoritário de um príncipe, foi aplicada logo a seguir à relação senhor- escravo. O escravo nascera livre: ele tinha, portanto, todos os direitos de reivindicar sua condição natural. O senhor não poderia apelar para nenhum princípio ou direito – que não fosse a força – para justificar o seu (des)mando.

Seguindo os passos de Locke, Montesquieu também se colocou contra a escravidão. É certo que tais posições geraram inúmeras controvérsias, uma vez que o filósofo francês não condenou de modo claro todas as formas de escravidão. Em sua obra Cartas persas (1721), concebida no início de sua carreira de escritor, Montesquieu, embora fosse satírico em relação à escravidão, acreditava que essa instituição pudesse prestar bons serviços ao Estado e aos particulares263, posição que dificulta uma compreensão precisa de seus pontos-de-vista. Tal perspectiva parece não ter sofrido alterações significativas em suas obras posteriores. Somente com a publicação de O Espírito das leis, em 1748, sua concepção acerca do caráter pernicioso da escravidão tomou uma forma mais elaborada e explícita, ainda que algumas ambigüidades não tenham sido totalmente dirimidas, fato que levou alguns de seus intérpretes a sustentar posições divergentes acerca dessa sua crítica.

Contudo, mesmo nessa obra, ele ainda admitia que a escravidão estava de acordo com a natureza nos países quentes, sendo ali necessária e legítima:

“Mas, como todos os homens nascem iguais, é preciso dizer que a escravidão é contra a natureza, ainda que em alguns países ela seja fundada sobre uma razão natural; e é necessário distinguir estes países daqueles em que as próprias razões naturais a rejeitam, como os países da Europa, onde ela foi tão afortunadamente abolida”264.

263 Ver a respeito a carta 116, na qual se comenta sobre o grande número de escravos existentes em

Roma e sobre o fato de serem manejados de modo a proporcionar inúmeras vantagens ao Estado. Já na carta 119, a mesma idéia de utilidade da escravidão está presente, mas desta vez em forma de crítica ao sistema adotado na América. MONTESQUIEU, Lettres Persanes. In Œuvres complètes de Montesquieu. Avec les notes de tous les commentateurs. 2 vols. Paris: Chez Lefèvre, 1839, v. 2.

Essa passagem do famoso livro XV de O Espírito das Leis apresenta um pouco mais claramente a ambigüidade do pensamento de Montesquieu. Embora reconheça que a escravidão é contra a natureza, uma vez que ela fez os homens “iguais”, ele ainda admite que em alguns países a escravidão está fundada em razões naturais, que, justamente por isso, merecem ser preservadas. Essas razões estão relacionadas com o clima, mais especificamente com o clima quente, que, segundo Montesquieu, retira a coragem dos homens de realizar os trabalhos penosos. A única alternativa então seria obrigá-los a executar esses trabalhos por meio da coação e do medo de castigos. Todavia, nos países de clima temperado, como os da Europa, não havia razões naturais para a existência da escravidão265.

Mas, de qualquer modo, ao reconhecer que a escravidão era contra a natureza e que os escravos eram maltratados por seus senhores, Montesquieu estabelecia a idéia de que essa instituição milenar era perniciosa. Tal reconhecimento dava à sua moral uma base sólida, pois estava fundada na observação e na experiência – condições muito apreciadas pelo século XVIII. Nesse sentido, a escravidão não podia mais ser vista como útil já que estava condenada de antemão. Aqui reside a principal diferença entre Montesquieu e seus antecessores. Para esses, contanto que os senhores não brutalizassem seus escravos, a moral estaria salva. Para Montesquieu, entretanto, era impossível evitar as conseqüências perniciosas intrínsecas à escravidão, pois, antes de tudo, essa instituição era contrária à natureza. Uma vez reconhecido esse fato, só restava admitir que ela acarretava mais prejuízos em vez de benefícios266. A partir de então, a condenação da escravidão passava necessariamente pela demonstração de