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É o momento de se observar agora uma outra vertente interpretativa do pensamento de Joaquim Nabuco. Ela formou-se a partir do final dos anos 1950 e início dos anos 1960 e foi se constituindo através de um conjunto de trabalhos, em sua maior parte realizados por acadêmicos vinculados à Universidade de São Paulo. Num primeiro momento, nenhum desses trabalhos esteve particularmente voltado para o estudo do pensamento e das ações de Nabuco. Suas obras, em geral, eram abordadas no âmbito de outras questões, em que o abolicionista aparece como o pensador que primeiro reconheceu a importância da escravidão na estruturação da vida do país, ou seja, como quem percebeu que a escravidão, ao organizar a produção, acabou por definir todas as relações sociais, inclusive as modalidades de convívio mais íntimas.

29 DUQUE-ESTRADA, Osório. A abolição (Esboço histórico) – 1831-1888. Brasília: Senado Federal,

2005. p. 20-1.

E foi justamente essa interpretação que chamou a atenção desses estudiosos, pois, segundo eles, ela ajudava a mostrar como a evolução histórica brasileira e seus percalços estavam intimamente atrelados ao desenvolvimento das forças produtivas. Como o grande assunto em pauta naqueles anos e que de certo modo “convocava” a intelectualidade brasileira a formular-lhe explicações era o desenvolvimento nacional31, surgiu um grande interesse em compreender a passagem do sistema escravista para o trabalho livre. O que estava em questão era explicar por que, nessa passagem, a maior parte da população brasileira não foi incorporada ao mercado de trabalho nem passou a contar com representação política.

Deste modo, esta vertente historiográfica viu em Nabuco o pensador que fez da escravidão o fator explicativo central da incompletude da nação, à medida que mostrou como ela havia dado forma a todo o sistema de produção e, conseqüentemente, à estrutura social, econômica e política brasileira, assim como sua herança se tornara uma das responsáveis por obstruir a adoção plena das formas de vida capitalistas. Dentre os principais autores que se agrupam ao redor dessa análise, pode-se destacar Paula Beiguelman, Fernando Henrique Cardoso, Antonio Candido e Emilia Viotti da Costa. Mais recentemente Luiz Felipe de Alencastro e Marco Aurélio Nogueira.

Essa perspectiva analítica reconheceu o limbo social e econômico ao qual os ex- escravos foram condenados. Porém, os estudos que surgiram estavam mais preocupados em apontar os motivos que impediram os escravos brasileiros de tornarem-se proletários à maneira do ocorrido com o fim da escravidão nos Estados Unidos ou com o fim da servidão na Europa. Ao privilegiar o caráter econômico que ditava a forma da modernização brasileira, tais estudos deixaram à sombra, entretanto, muitos dos preconceitos, especialmente raciais, que caracterizavam as medidas políticas e econômicas em implantação no final do século XIX. A exclusão de grande

31 Essa revisão teórica da formação nacional brasileira foi levada a cabo por um grupo de pesquisadores

ligados à Universidade de São Paulo e teve suas origens no final dos anos 50. Roberto Schwarz esclarece quais as principais indagações que norteavam aquelas pesquisas: “Como se sabe, as perguntas que dirigimos ao passado têm fundamento no presente. [...] Tratava-se de entender a funcionalidade e a crise das formas “atrasadas” de trabalho, das relações “arcaicas” de clientelismo, das condutas “irracionais” da classe dominante, bem como da inserção global e subordinada de nossa economia, tudo em nossos dias. O estímulo vinha da radicalização desenvolvimentista, a que a universidade respondia de modo oblíquo: por que a Abolição, além de não levar à Liberdade, não criou um operariado à maneira clássica?”, SCHWARZ, Roberto. “Um seminário de Marx”. In Seqüências

parte da mão-de-obra negra do mercado de trabalho no período posterior à abolição não pode encontrar uma explicação satisfatória somente nos elementos econômicos. Até hoje não surgiu contabilidade alguma que apresente as vantagens econômicas da não incorporação dos trabalhadores brasileiros livres aos processos produtivos nem tampouco da substituição de uma parcela de ex-escravos, que já estavam empregados como assalariados nas fazendas de café de São Paulo, mesmo antes da abolição, por imigrantes europeus.

Paula Beiguelman, por exemplo, em seu livro Formação política do Brasil, de 1967, aponta que o alvo do abolicionismo europeu é apenas “o status jurídico do escravo e não o sistema econômico em que a escravidão se insere e que lhe pode sobreviver”. Uma atitude mais crítica, segundo Beiguelman, teria se desenvolvido no Brasil durante o século XIX, por volta de 1878-1888. Essa nova atitude conjugaria “a teoria crítica do sistema baseado na economia tropical e [a] adoção da perspectiva dos dominados”32, fato que teria levado os pensadores a buscar novos instrumentais teóricos que lhes possibilitassem estabelecer e analisar as determinações do sistema.

Para a autora, Nabuco se destacaria entre aqueles que se dedicaram ao tema justamente em virtude de seu pensamento assumir a perspectiva dos dominados, o que resultaria “uma atitude fundamentalmente crítica com respeito à marginalidade da massa da população não-escrava no sistema econômico”33. Desse modo, na perspectiva analítica de Beiguelman, Nabuco teria sido o primeiro a mostrar como a escravidão não devia ser entendida apenas como mais um elemento de toda a estrutura sócio-econômica do país. Ela era, por assim dizer, o elemento ordenador, a responsável direta pelo funcionamento desse sistema, pela sua capacidade de perpetuação e pelo seu caráter avesso a qualquer inovação34.

32 BEIGUELMAN, Paula. Formação política do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Pioneira, 1976, p. 176-7. 33 Idem, p. 254-5.

34 Ver também BEIGUELMAN, Paula. Joaquim Nabuco. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 26. Para uma

posição semelhante a respeito da análise de Nabuco sobre o papel da escravidão na sociedade brasileira, ver MELLO, Evaldo Cabral de. “O caráter orgânico da escravidão”. In Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 12/12/1999, p. 13, texto do qual se transcreve um pequeno trecho: “ela [a escravidão] é a instituição que ilumina nosso passado mais poderosamente que qualquer outra. É a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social e a estrutura de classes, o Estado e poder político, a própria cultura”. Nessa mesma perspectiva, ver, do mesmo autor, os textos Um livro elitista?, in NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 5ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, v.2, p. 1321-7 e Reler “O Abolicionismo”, in Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 27/02/2000, p. 18.

Essa constatação permitia trazer para o primeiro plano da discussão política uma série de considerações a respeito de como tal instituição moldara todas as instâncias sociais da vida brasileira. Através dessa nova visão, era possível, portanto, perceber como a exclusão a que estava submetida a maior parte da população não decorria da vagabundagem ou da inferioridade racial, mas derivava diretamente do bom funcionamento do sistema escravista. Nabuco conseguia assim trazer para a ordem do dia a precariedade das condições de vida daqueles a quem Beiguelman designou como “dominados”. A sua miséria doravante não poderia mais ser entendida como desapreço pelo trabalho; ela era fruto de uma opção feita pelo país em favor do trabalho escravo, donde competia também ao país reconhecer que a solução desse problema não passava pela via pessoal, por uma resposta individual, mas por uma decisão de todo o corpo político.

Ainda segundo Paula Beiguelman, a partir do momento em que se estabeleceu esta nova perspectiva, tornou-se possível ao abolicionismo – ao contrário da grande lavoura, que defendia a escravidão, a imigração e aceitava a “ociosidade” do brasileiro praticamente sem contestação alguma – interpretar a famigerada “ociosidade” como uma conseqüência do funcionamento do sistema escravista. Ou seja, ao transformar a escravidão no elemento ordenador de todas as esferas sociais da vida brasileira, o abolicionismo teria conseguido demonstrar que a não inserção de significativas parcelas de trabalhadores nacionais ao sistema de produção não se devia a um descaso destes em relação ao trabalho ou a alguma espécie de vagabundagem, mas decorria do fato de que os trabalhadores livres haviam sido afastados dos meios de produção em virtude da forma pela qual se organizava a produção escravista:

“Enquanto a lavoura, defendendo a escravidão ou a imigração, aceita a ‘ociosidade do brasileiro’ como um dado, o abolicionismo a interpreta em termos de padrões desenvolvidos num sistema que lhe veda a cultura da terra e, na cidade, não o aproveita como operário industrial. Ao estereótipo do brasileiro que ‘não quer trabalhar’, o abolicionismo contrapõe o dever patriótico de conseguir que ele queira e possa fazê- lo”35.

De fato, Beiguelman está correta em afirmar que um dos objetivos principais do abolicionismo, e da política liberal que o coordenava, era proporcionar que o trabalhador, tanto do campo quanto da cidade, tivesse acesso ao trabalho. Da mesma forma está certa em apontar como um dos maiores méritos do movimento a negação de que o brasileiro era apático ao trabalho ou que sua “indolência” decorria da degeneração racial. A grande novidade do discurso abolicionista estava, segundo Beiguelman, na substituição desses estereótipos pela compreensão do funcionamento do sistema escravista.

Contudo, o que Beiguelman não colocou em suspeição foi o caráter do trabalho a ser exercido pela população livre pobre, num sistema montado a partir do trabalho livre, em uma sociedade que se desejava liberal. Ou seja, não há um questionamento sobre o fato de que Nabuco não apresentou de modo sistemático e sério propostas efetivas de integração do brasileiro ao regime de trabalho livre. Como se verá mais adiante, suas propostas de reforma agrária e de absorção da mão-de-obra dos ex-escravos e homens livres pobres mais parecem promessas lançadas aos eleitores que propriamente um plano minimamente estruturado de como realizá-las – tal procedimento, no fundo, parece sugerir uma dificuldade de ajustamento e de efetivação entre suas propostas. Admitida essa dificuldade, só é possível pensar na incorporação dos brasileiros como trabalhadores livres a partir da sua admissão como substitutos imediatos dos escravos nas grandes plantações. Tal cenário sugere mais uma preocupação em garantir a mão-de-obra suficiente para se manter as fazendas em funcionamento e, conseqüentemente, a produção que garantia os recursos fiscais do Império, que propriamente um cuidado efetivo com a sorte da população livre pobre.

Outro ponto sobre o qual Paula Beiguelman chama a atenção – que certamente foi um dos principais motivos da sedução exercida pelo pensamento de Joaquim Nabuco sobre a sociologia uspiana dos anos 1960 e 1970 – decorre do fato de que o abolicionismo, ao entender a escravidão como um sistema, percebia que ela era a responsável pela organização da produção brasileira. Tal entendimento abria perspectivas inéditas para uma posição crítica em relação à política, à situação social e econômica da população, à pobreza dos valores espirituais, à educação e à própria

administração do Estado36. Ao mostrar essa especificidade nacional, Nabuco não só

demonstrava a ineficiência de qualquer tentativa de reforma do sistema, mas afirmava que a única possibilidade de dinamizar o país e integrá-lo à ordem liberal mundial seria através do fim do trabalho escravo.

Nesse ponto, é inegável o caráter heurístico trazido pelo abolicionismo, mais especificamente pelas análises de Joaquim Nabuco. Contudo, é necessário lembrar que Paula Beiguelman não se detém na crítica aos desdobramentos ou até mesmo às propostas abolicionistas para o período pós-abolição. Também não há uma avaliação crítica dos limites explicativos do abolicionismo, uma vez que o posicionamento a favor dos “dominados” se dá a partir da perspectiva daqueles que dominam, o que, em teoria, não desabona tal crítica. Entretanto, essa perspectiva nunca leva em consideração os anseios dos “dominados”, ou seja, em momento alguns eles são inquiridos sobre seus desejos ou sobre o que eles entendiam como uma vida sem dominação. Nesse sentido, o abolicionismo, ao negar o sistema escravista, automaticamente e de modo autoritário, estava predeterminando o lugar que o ex-escravo deveria ocupar na nova ordem.

O ex-escravo era elemento importante na constituição de um sistema econômico baseado no trabalho livre. Estava-lhe reservado, como trabalhador livre, a mesma vaga que lutara para dela se libertar enquanto era escravo. O ideal de progresso social e econômico, expresso pelo modelo da Civilização Ocidental, exigia a integração desse ex-escravo como trabalhador livre na agricultura voltada para a exportação. Tal situação leva à pergunta se, de fato, o abolicionismo tomara o partido dos “dominados” ou se, mais uma vez, aos “dominados” estava previamente determinado o lugar social a que deveriam se conformar.

Outro expoente do pensamento sociológico brasileiro que se debruçou sobre o tema da escravidão, mais especificamente na sua relação com o avanço do capitalismo e a formação nacional, foi Fernando Henrique Cardoso. Em sua obra Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, inicialmente uma tese de doutorado, que foi publicada em 1962, o sociólogo vê o escravismo como um modo de ser coerente e completo, pois para aqueles que o defendiam ou existia a escravidão ou então adviria o caos, já que o

sistema escravista representava a ordem e todos os princípios reguladores da vida, sem os quais a nação sucumbiria. Deste modo,

“[...] na ideologia escravocrata coexistiam valores e princípios com a defesa mais ou menos consciente de interesses imediatos. Se todos os que se apegavam aos interesses próprios camuflavam a ‘sórdida realidade’ em nome de valores e princípios, nem todos os que defendiam o ‘partido da ordem’ faziam-no movidos por ‘motivos racionais’, em termos dos interesses pessoais, embora, uns e outros, acabassem por alinhar-se entre os defensores da espoliação social sem travas. Pelo fato mesmo de ser uma ideologia [...], o escravismo fazia dos mais puros e íntegros, isto é, dos que mais se apegavam aos princípios independentemente dos interesses em jogo, os mais cegos e menos ‘objetivos’. E transformava os que mistificam porque se apegavam à ‘sórdida realidade’ nos aparentemente mais lúcidos e mais ‘objetivos’”37.

Segundo Cardoso, essa ambigüidade do comportamento escravista também se reproduzia, embora por outras razões e de maneira inversa, entre alguns abolicionistas. Entre estes últimos, somente aqueles que se apegavam a princípios e negavam o presente de modo conseqüente eram capazes de ser ‘objetivos’. Daqui o fato, para o autor, de que “o abolicionismo não foi a formulação possível de um ‘ponto de vista dos escravos’”38, pois a consciência possível do escravo só poderia se manifestar através da negação da escravidão, obtida por meio da revolta:

“[...] a liberdade transformava-se no Bem Absoluto e a escravidão aparecia como o Mal Absoluto. A fuga e o assassínio do senhor significavam para a consciência escrava a procura do Bem e o extermínio do Mal. Nenhuma perspectiva social de futuro, entretanto, podia ser entrevista pelos escravos nesta situação. No melhor dos casos, a ação coordenada dos negros poderia levá-los à formação de quilombos, numa tentativa de retorno à situação tribal. Em geral, a consciência de revolta não chegava a exprimir- se no ato de negação da situação escrava, limitando-se à reelaboração subjetiva do

37 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. O negro na sociedade

escravocrata do Rio Grande do Sul. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 216.

sentido do mundo: na fabulação e nas crenças religiosas, o negro se libertava e se transformava em senhor”39.

Joaquim Nabuco, segundo Fernando H. Cardoso, teria conseguido fugir das mistificações, tão comuns entre outros abolicionistas, e se tornara o melhor representante do “abolicionismo autêntico” porque “percebeu que o sistema escravista não implicava apenas a degradação do escravo, mas a constituição de uma sociedade totalmente organizada sobre a escravidão e marcada por ela”40. Nabuco teria percebido

que os alvos do abolicionismo deveriam transcender o problema do negro, sem relegá- lo para segundo plano, mas incorporando-o à questão do trabalho livre, que se constituía no principal interesse do país:

“A ‘liberdade ou a compaixão pelo negro’ não aparecem como racionalizações para permitir pura e simplesmente a introdução de imigrantes e a generalização do trabalho livre requerido pelo capitalismo nascente. Ao contrário, esses processos se legitimam pela inclusão do negro neles: reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a

união das raças na liberdade, tal era o objetivo de Nabuco”41.

Cardoso, nas poucas páginas dedicadas a essa questão, não se pergunta, em momento algum, sobre o caráter e o significado da inclusão do negro na generalização do trabalho livre, requerido pelo nascente capitalismo brasileiro. Ou seja, para o autor, já que o negro escravo, limitado pela “consciência possível” que tinha da realidade, não possuía condições de planejar um futuro que abarcasse outras possibilidades além da mera rebelião contra o senhor ou de uma fugaz organização tribal, seria licito que outros planejassem a sua vida.

Ao proceder desta maneira, Cardoso não faz mais que advogar uma prorrogação, ou melhor, a extensão dos poderes do “Mandato da raça negra”, com o qual Nabuco se auto-investira: além da delegação “inconsciente” de um mandato para lutar contra a escravidão, uma nova delegação daria o direito a outrem de, em virtude

39 Idem, p. 218. 40 Idem, p. 220. 41 Idem, p. 220-1.

da limitada “consciência possível” do negro, designar-lhe a forma de vida e o papel que deveria desempenhar assim que abandonasse o trabalho escravo42.

Disto, porém, o que importa registrar é que Cardoso endossou sem quaisquer questionamentos as afirmações de Nabuco sobre a necessidade de se manter os escravos afastados da campanha abolicionista e jamais colocou em suspeição o famigerado “Mandato da raça negra”. Ao contrário, ele aceitou pacatamente os argumentos do pernambucano a esse respeito e ainda tentou apresentá-los de modo mais sofisticado ao pretender ajustá-los à teoria marxista da história.

Cardoso também não apontou as divergências entre as justificativas apresentadas para criar a ficção do “Mandato da raça negra” e outras passagens da obra de Nabuco. Um dos principais argumentos levantados pelo pernambucano com o intuito de se auto-proclamar detentor de um mandato para lutar pelos negros escravos, sem que estes participassem conjuntamente dessa mesma luta, foi o de que incitar os escravos a rebelar-se contra seus senhores seria expor a classe mais influente e poderosa do Estado à “vindicta barbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao nivel dos animaes e cujas paixões, quebrado o freio do medo, não conheceriam limites no modo de satisfazer-se”43. Celia M. M. de Azevedo já havia assinalado que essa imagem da vindita dos escravos vinha de São Domingos44 e estava em contradição com uma outra imagem dos escravos, construída por Nabuco em Minha formação, obra na qual o autor expressa uma recordação da escravidão “como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo, alguma

42 Sobre o “Mandato da raça negra”, ver NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, em especial o terceiro

capítulo.

43 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, p. 25.

44 Cf. AZEVEDO, Celia M. M. de. Quem precisa de São Nabuco? Estudos Afro-Asiáticos, n. 23, v. 1,

2001, p. 90. Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo, também utiliza a rebelião de São Domingos como uma maneira de intimidar os pró-escravistas. Para isto ele recorreu a um discurso que seu pai fizera no Senado em 1870: “Senhores, este negocio [o adiamento indefinido da questão servil] é muito grave; é a questão mais importante da sociedade Brazileira, e é imprudencia abandonal-á ao azar. Quereis saber as consequencias? Hei de dizel-o com toda a sinceridade, com toda a força das minhas convicções: o pouco serve hoje, e o muito amanhã não basta. As coisas politicas têem por principal condição a opportunidade. As reformas por poucas que sejam valem muito na occasião, não satisfazem depois, ainda que sejam amplas. Não quereis os meios graduaes; pois bem, haveis de ter os meios simultaneos; não quereis as consequencias de uma medida regulada por vós pausadamente, haveis de ter as incertezas da imprevidencia; não quereis ter os inconvenientes economicos por que passaram as Antilhas Inglezas e Francesas, correis o risco de ter os horrores de S. Domingos”. In NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, p. 68-9.

coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera porque o fermento da desigualdade não pode penetrar nela”45. Ou ainda, ao relembrar os escravos de sua madrinha:

“Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado... A gratidão estava ao lado de quem dava. Eles morreram acreditando-se os devedores... seu carinho não teria deixado germinar a mais leve suspeita de que o senhor pudesse ter uma obrigação para com eles, que lhe pertenciam... Deus conservara ali o coração do escravo, como o do animal fiel, longe do contato com tudo o que pudesse revoltar contra a sua dedicação. Esse perdão