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abordagem sistêmica na política patrimonial

No documento Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil (páginas 41-47)

Entretanto, foi no intercâmbio de saberes com outros campos de pro-dução de conhecimento, ocorrido ao longo do processo de registro dos SATs-RN, que essa abordagem sistêmica se amplifica para além do reconhecimento do valor simbólico dentro da dimensão histórica e cultural.

Uma breve incursão na trajetória do conceito de referências culturais na política patrimonial pode melhor auxiliar na compreensão da evo-lução desses entendimentos e o do que hoje, no campo das políticas patrimoniais, se denomina como sistema agrícola tradicional.

nação, atividade esta que, ainda hoje, costuma ser vista como eminen-temente técnica.

Quando se fala em referências culturais, se pressupões sujeitos para os quais essas referências façam sentido (referências para quem?). Essa perspectiva veio deslocar o foco dos bens – que em geral se impõem por sua monumentalidade, por sua riqueza, por seu ‘peso’ material e simbólico – para a dinâmica de atribui-ção de sentidos e valores. Ou seja, para o fato de que os bens culturais não valem por si mesmos, não têm um valor intrínseco. O valor lhes é sempre atribuído por sujeitos particulares e em função de determinados critérios e interesses histo-ricamente condicionados.

Fonseca (2003) também argumenta que a noção de referência cultural teria influenciado a elaboração do art. 216 da Constituição Federal brasileira no qual são definidos como patrimônio cultural brasileiro os bens culturais de natureza material e imaterial “portadores de refe-rência à identidade, memória e ação dos grupos formadores da sociedade brasileira”.

A Constituição aprovada em 1988 consagrou uma nova e moderna concepção de patrimônio cultural, mais abrangente e democrática. A Constituição ampliou o conceito de patrimônio cultural (art. 216), reconhecendo sua dupla natureza – material e imaterial – e incluindo entre os bens culturais as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver e as criações científicas, artísticas e tecnológicas dos diferentes grupos sociais brasileiros. A concepção adotada pela Constituição foi a de que não é possível compreender os bens culturais sem considerar os valores neles investidos e o que representam – a sua dimensão imaterial – e, da mesma forma, não se pode entender a dinâmica do patrimônio imaterial sem o conhecimento da cultura material que lhe dá suporte. (Santilli, 2010).

Dirigentes e técnicos do Iphan, principalmente a partir do final dos anos 1990, empreenderam esforços e investimentos políticos e intelec-tuais, os quais resultaram na promulgação do Decreto nº 3.551/2000 (Brasil, 2000), que institui o Programa Nacional do Patrimônio Imate-rial (PNPI) e o registro como instrumento de reconhecimento de bens culturais de natureza imaterial (Arantes Neto, 2005, p. 5)8.

8 Arantes Neto (2001) atribui ao Seminário Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção, realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), na cidade de Fortaleza, Ceará, no ano de 1997, o status de marco inicial desse processo de desenvolvimento de uma política nacional voltada à preservação do patrimônio cultural imaterial no Brasil.

Assim, nesse contexto de efervescência na construção de um novo olhar sobre o campo do patrimônio cultural, começam a ser desen-volvidas, pelo então recém-criado Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, pesquisas tendo em vista a elaboração de uma metodologia de inventário de referências culturais para subsidiar as ações de registro e realizar um levantamento de manifestações cultu-rais em todo o País.

Segundo Arantes Neto (2001), a noção de referência cultural no con-texto de inventários culturais é um termo que sugere remissão; ele designa a realidade em relação à qual se identifica e baliza ou escla-rece algo. No caso do processo cultural, “referências são as práticas e os objetos por meio dos quais os grupos representam, realimentam e modificam sua identidade e localizam a sua territorialidade.” Ope-rando com o conceito de referência cultural, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), aprofunda reflexões e experiências anteriores de inventário no âmbito do Iphan (Sant’Anna, 2003, p. 53).

Já nas experiências iniciais de implementação dessa política de inventário, referenciamento e valorização do patrimônio imaterial, a cultura alimentar foi abordada no escopo de inciativas-piloto de iden-tificação desenvolvidas pelo projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP)9. Nesse projeto, dentre outros, foram realizados inventários de sistemas culinários envolvendo derivados da mandioca e dos feijões. O inventá-rio dos modos de comer e fazer o acarajé gerou desdobramentos que resultaram no já mencionado registro do Ofício de Baianas de Acarajé no Livro dos Saberes em 2005.

As diretrizes desses primeiros processos de identificação, inventa-riamento e reconhecimento de bens são pautadas por uma ordem discursiva, ainda vigente, que se opõe à homogeneização e à perda da

9 Em decorrência da mobilização promovida pela Comissão Nacional e Comissões Estaduais de Folclore, foi criada a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em 1958, que passou por várias estruturas jurídicas na administração direta dos ministérios da Educação e da Cultura, e depois, na Funarte. Em 1980, transformou-se no Instituto Nacional do Folclore e, posteriormente, no hoje denominado Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Em 2005, o CNFCP foi incorporado à estrutura do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan.

diversidade cultural brasileira. Sobre esse aspecto assim se manifes-tou a museóloga Elisabete Mendonça (Nogueira; Mendonça, 2004, p.

37-38), coordenadora técnica dos inventários de sistemas culinários desenvolvidos pelo CNFCP naqueles anos iniciais de implementação da política de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil:

A sociedade contemporânea caracteriza-se por paradoxos profundos. A cres-cente globalização e transnacionalidade contrasta com os particularismos culturais e com a emergência de “velhas novas” identidades. À tendência à homogeneização opõe-se a preocupação com as culturas nacionais e regionais e com seu reconhecimento como marcos da diversidade cultural e como afirma-ção de identidades particulares.

[...]

Um desses campos diz respeito aos inventários dos sistemas culinários, nos quais se privilegiam, como ponto de partida, a mandioca e o feijão. Consumidos no país inteiro, esses itens básicos da alimentação popular ocupam posição pri-vilegiada na culinária brasileira, apresentando-se como símbolos de identidade regional e nacional.

Nesses inventários destacaram-se os “modos de fazer” em Belém e Salvador, relativos à farinha e ao acarajé, respectivamente, derivados da mandioca e do feijão, cujos saberes e práticas tradicionais se encontram enraizados no coti-diano das comunidades investigadas.

A farinha, chamada por Câmara Cascudo de “a rainha do Brasil”, embora produ-zida e consumida no país inteiro, tem na região amazônica a maior diversidade de espécies de sua matéria-prima, a mandioca, bem como os mais variados tipos de farinha, os mais diversos usos culinários, o maior aproveitamento de todos os elementos que fazem parte do seu processo de produção, e é também, nessa região que se apresenta como relevante referência cultural. De modo seme-lhante, o acarajé, embora conhecido em diferentes localidades do país, é em Salvador que representa uma importante marca identitária.

E ainda:

Considerando que a noção de sistema (ou sistemas) culinário(s) compreende um conjunto estruturado de elementos que abrange tanto os processos de trans-formação dos produtos quanto os universos simbólicos e as cosmologias a ele articulados, os espaços em que eles ocorrem também fazem parte desse con-junto. Por esse motivo, abordamos aqui as feiras e as chamadas comidas de rua como elementos constitutivos desse sistema.

Assim, quando o pedido de registro do sistema agrícola do Rio Negro como patrimônio cultural do Brasil foi apresentado no ano de 2007, o Iphan já havia realizado os primeiros inventários de bens de natureza imaterial; havia implementado de forma efetiva o registro de bens culturais de natureza imaterial e vinha buscando promover ações de salvaguarda para esses patrimônios em todo o território nacio-nal. Editais anuais de apoio e fomento à salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no País contribuíam para difundir as diretrizes e princípios do PNPI e para ampliar o escopo de realização de projetos concretos de mapeamento, pesquisa, apoio e fomento às expressões culturais tradicionais10.

A análise da documentação existente no Departamento de Patrimô-nio Imaterial do Iphan, produzida para o reconhecimento do SAT-RN como patrimônio cultural do Brasil, também permite observar que a construção de uma narrativa patrimonial para esse bem cultural dia-logava com debates internos ao próprio Iphan sobre reconhecimento de bens associados à cultura alimentar, em parte decorrente dos inú-meros pedidos de reconhecimento de receitas de “comidas típicas”.

Simultaneamente, à medida que novos inventários e pesquisas para a instrução de processos de registro se desenvolviam, fortalecia-se o entendimento dos técnicos e pesquisadores da área acerca do “caráter sistêmico” desses bens culturais.

Na memória das reuniões inicialmente realizadas entre Iphan, Acimrn e pesquisadores parceiros, são sempre ressaltados desde as análises iniciais do pedido até mesmo o alinhamento de entendimentos quanto a essa dimensão sistêmica do bem cultural. Como, por exemplo, no tre-cho a seguir, extraído de relatório de reunião com a Acmirn, a qual foi realizada em Santa Isabel do Rio Negro entre os dias 11 a 15 de junho de 2007:

10 Em 2011 a linha de ação dos editais do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial foi reconhecida pelo Comitê Intergovernamental da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial como um dos programas que melhor reflete os princípios e objetivos da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Entre os anos de 2005 e 2015 foram apoiados 75 projetos inéditos e realizadas 65 premiações de ações já desenvolvidas.

Foram beneficiadas instituições governamentais e não governamentais, contribuindo para a conformação e fortalecimento de uma rede de agentes atuantes no campo da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial.

[...] Entende-se por sistema agrícola, as manifestações culturais associadas aos espaços manejados e as plantas cultivadas, ao conjunto de saberes, práticas, pro-dutos, formas de transformação dos produtos agrícolas e sistemas alimentares locais, quer dizer, o complexo que vai das roças até os alimentos, seus modos de consumo nos diversos domínios da vida social [...] (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2007).

Como visto, para os técnicos e dirigentes do Iphan, a noção de “sis-tema” sempre esteve articulada à compreensão do conceito de

“sistema cultural” associado a uma perspectiva hermenêutica de apreensão da realidade, ou seja, buscando, a partir de um lugar de fala e produção de conhecimentos específicos, a compreensão de sig-nificações histórico-culturais de símbolos, objetos, espaços, lugares, ambiências, formas de expressão.

Em nota técnica produzida no ano de 2008 para a apresentação do SAT-RN aos conselheiros do Iphan, que debateriam acerca da perti-nência ou não da solicitação de registro apresentada pela Acimrn, assim se expressou a antropóloga responsável por acompanhar o pro-cesso (grifos nossos):

A solicitação de Registro em questão refere-se ao reconhecimento como Patrimô-nio Cultural do Brasil do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, entendido como um conjunto estruturado formado por elementos interdependentes, quais sejam as plantas cultivadas, os espaços, as redes sociais, a cultura material, os sistemas alimentares, os saberes, as normas e os direitos. [...]

Por ser o sistema agrícola do Rio Negro categoria ampla, composta de vários elementos, a Gerência de Registro, representada por[... ], juntamente com as gerentes de identificação [...], e do Apoio e Fomento [...] realizaram reunião em [...] com a coordenadora do projeto [...], duas lideranças indígenas [...], represen-tantes da ACIMRN e FOIRN, para tratar do conceito de sistema agrícola enquanto bem cultural passível de ser Registrado [...]

O objetivo principal dessa reunião era iniciar uma discussão com relação à noção de sistema agrícola, ou melhor, definir a delimitação desse bem cultural que se constitui de elementos variados e interdependentes. [...] Portanto, com o intuito de melhor definir a base social que vivencia e elabora o bem cultural e os saberes envolvidos na feitura de uma comida, discutiu-se a possibilidade de considerar não o produto em si, mas o processo para a sua criação, isto é, o conjunto de saberes, práticas e outras manifestações associadas que envolve espaços manejados, as plantas cultivadas, as formas de transformação dos pro-dutos agrícolas e maneiras de se alimentar. Em suma, o complexo que vai das

roças até os alimentos e seus modos de consumo em diversos contextos sociais (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2008).

A memória dos debates ocorridos na reunião anteriormente men-cionada nos permite observar que os agentes envolvidos buscavam compreender e explicitar, dentre outros elementos não menos impor-tantes, aquilo que caracterizaria o sistema agrícola do Rio Negro como uma referência cultural.

Ao apontar a necessidade de se “definir a base social que vivencia e elabora o bem cultural”, tratava-se de tentar responder à pergunta central de um processo de patrimonialização: referência cultural de/para quem?

Quem são os sujeitos sociais que mantêm vivas e atualizam as práti-cas culturais em questão? Para quais grupos identitários esse sistema agrícola se constitui enquanto definidor de uma identidade cultural?

A caracterização do Sistema

No documento Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil (páginas 41-47)